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Podcast “Praia dos Ossos” escancara repressão à liberdade feminina; leia a nossa review
O som furioso de ondas quebrando na praia é quem faz as honras do podcast “Praia dos Ossos“, que chega aos aplicativos neste mês de setembro. Causa uma certa expectativa, até mesmo um pouco de inquietação. Claro. Enquanto a apresentadora Branca Vianna e a pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux caminham pela zona portuária de Búzios, no Estado do Rio de Janeiro, o histórico de um feminicídio cometido ali mesmo vai assumindo um sensível protagonismo.
Ela, a vítima, era uma mulher livre e considerada à frente de seu tempo. A chamada “Pantera de Minas”, como ficou conhecida Ângela Diniz, era uma socialite que estampava capas de revista e não raro posava nas colunas sociais dos anos 1970. O réu confesso, por sua vez, era o magnata Doca Street, que logo se veria uma figura machista e mal-acostumada. A vida de luxo e repleta de fama do casal era marcada por brigas constantes que tinham como estopim o ciúme desenfreado do empresário.
Os atracos terminavam sempre em uma reconciliação previsível, que envolvia Ângela indo buscá-lo na porta a fim de levá-lo de volta ao quarto, onde transavam para selar a paz. Naquele dia ela decidiu botar um ponto final na relação e, para a surpresa de Doca, não mudou de ideia.
De fato, o roteiro da produção está mais para “Crônica de Uma Morte Anunciada”, célebre novela de Gabriel García Márquez, do que para o clássico “A Sangue Frio”, de Truman Capote”. Sem rodeios, o ouvinte já começa a narrativa sabendo como e o quanto foi trágico o destino da protagonista. Mas o trunfo da produção está mesmo no fato de que esta não se restringe apenas ao resgate de um crime que tomou conta dos noticiários há quase 50 anos. De forma delicada, não dramática, ela finca raízes em questões ligadas ao pleno exercício da liberdade feminina no Brasil, direito que não foi respeitado pelo assassino de Ângela.
“Acho que essa imagem perdura porque, apesar dos muitos avanços que as mulheres conquistaram desde os anos 70, ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, em que o seu comportamento é controlado e regrado pelos homens, por suas expectativas e necessidades”, diz Branca, que é fundadora da Rádio Novelo e também apresentadora do podcast “Maria Vai Com as Outras”, da revista Piauí.
“Praia dos Ossos” também é assertivo ao mostrar como Diniz, morta às vésperas do réveillon de 1977, foi duplamente vítima ao ser alvo de uma tentativa bem-sucedida de inversão de papéis. Sob uma ótica escancaradamente deturpada e sexista, a mídia endossou o status de celebridade que tinha Doca ao comprar o discurso de seus advogados. À época do julgamento houve uma tentativa de incursão da ideia de que uma mulher que desafiava o patriarcado e suas regras tinha como destino inevitável a morte, um ritual punitivo, muitas vezes frio e sanguinolento.
“O que aconteceu foi um susto, na verdade, interpretado por muitos, especialmente as mulheres, como um aviso de que essa modernidade estava longe ainda”, diz Branca. “Seria necessário lutar muito para garantir nossos direitos mais básicos, como por exemplo não sermos assassinadas por terminar um namoro”. Em certos momentos, levando-se em consideração princípios ético-morais basilares da profissão, chega a ser vergonhoso observar o tratamento dado pelos veículos de imprensa ao caso.
Uma das maiores produtoras de podcast do Brasil, a Rádio Novelo, responsável por “Praia”, mostra mais uma vez por que tem se tornado referência no assunto ao abraçar novas possibilidades criativas. Nesse dossiê sonoro que conta com descrições sinestésicas da narradora, dá-se acesso a uma riqueza de detalhes que nem mesmo as falhas provocadas pela ação do tempo foram capazes de barrar. Com a ajuda de um locutor, contratado para a ocasião, trechos de matérias publicadas à época substituem a ausência de arquivos sonoros perdidos – não deixa de ser um alerta para a preservação da história do audiovisual brasileiro.
“O pesquisador audiovisual do projeto ia batendo de porta em porta e sendo informado que o acervo de tal emissora se perdeu, que as fitas de outra não estão catalogadas e acesso não estava liberado, que ninguém sabe o que foi feito de tal gravação”, lembra Flora. “A solução ficou bonita, mas toda vez que conseguíamos um pequeno fragmento de material original era de arrepiar.”
Mas não é só. Merecem atenção também os relatos feitos no presente, em geral por pessoas remanescentes de uma época que se entrelaça a todo instante com a realidade. Em 2019 foram mortas 1.314 mulheres, todas pelo simples fato de serem mulheres. É como se uma Ângela fosse assassinada a cada 7 horas, em média.
Das figuras mais marcantes, a xará Ângela Teixeira de Melo contribui ao desmentir uma das teorias criadas para atribuir um motivo ao crime, para além do ciúme doentio de Doca. Teria ela tido a coragem necessária de falar à época, com o circo montado em torno do caso? O piloto Fritz d’Orey, outro grande amigo de Ângela, assume o papel de aproximar o ouvinte da verdadeira Pantera de Minas, diferente da persona criada pela socialite. Confidente, ele foi uma das poucas fontes que se emocionou ao se lembrar da amiga ao traçar um breve perfil psicológico.
Uma das figuras principais do primeiro capítulo, entretanto, é a da copeira Ivanira Gonçalves de Souza, que trabalhava para a família. Hoje ela é a única sobrevivente do time de empregadas que estava na casa da Praia dos Ossos naquele 30 de dezembro. É a partir do depoimento dela, marcado por uma sinceridade e uma riqueza de detalhes que só quem viveu poderia descrever, que se torna impossível não sentir vontade de maratonar os 7 episódios que estão por vir.
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O Papelpop conversou com as responsáveis pelo podcast para desvendar o processo de criação. Você lê a íntegra abaixo.
Papelpop: Embora “Praia dos Ossos” revele algumas diferenças, o alcance de podcasts do gênero true crime é enorme dentro e fora do Brasil. Tomemos como exemplo recente o ‘Caso Evandro’. A que atribui esse interesse?
Branca Vianna: Sou ouvinte assídua de podcasts, e como produtora acompanho a indústria de perto, portanto sei que esse gênero faz muito sucesso. Porém, não gosto de true crime nem em podcasts, nem em documentários, nem em literatura. Nunca me interessei por isso. Acho que a única série realmente criminal que segui foi o podcast ‘Serial’, pelo imenso sucesso que alcançou. Tornou-se um podcast incontornável, e foi uma série extremamente bem feita. Para quem produz, é uma lição de como conduzir uma narrativa em áudio. Há uma única série criminal, que no entanto não é true crime, de que gosto muito e que serviu como inspiração para o ‘Praia dos Ossos’: ‘In the Dark’, especialmente a primeira temporada. É diferente das outras porque, apesar de contar a história de um crime não-resolvido, o foco é o sistema municipal de polícia e justiça nos Estados Unidos. O programa examina o funcionamento dos departamentos de xerifes, mostrando como os erros cometidos naquela investigação específica, sobre o desaparecimento de um menino, são comuns a quase todos os xerifados do país, são problema estruturais do sistema de segurança pública americano. Não é apenas contar o crime e a investigação, mas levar o ouvinte a entender as causas e consequências mais amplas daquele caso. Isso sim, me interessa.
Embora o Caso Doca Street tenha acontecido há praticamente meio século, ainda é possível traçar paralelos com o presente, fazer análises das transformações ocorridas desde então… A forma com que as esferas jurídica e midiática trataram esse assunto me deixaram muito intrigado, chocado pra ser bem sincero. Que lição esse crime deixa para o jornalismo, especificamente?
Branca: Você tem razão. A forma como o caso foi conduzido por todos os envolvidos: justiça, polícia, mídia e opinião pública, é chocante hoje e foi chocante na época também. Em 1979, quando ocorreu o julgamento do Doca, o Brasil estava em um momento de mudança, de avanço. Era o começo do fim da ditadura militar, os exilados estavam voltando, havia um desejo de modernidade muito forte no país. O caso foi um susto, na verdade, interpretado por muitos, especialmente as mulheres, como um aviso que essa modernidade estava longe ainda e que seria necessário lutar muito para garantir nossos direitos mais básicos, como por exemplo não sermos assassinadas por terminar um namoro.
Flora, “Praia dos Ossos” é fruto de uma pesquisa detalhada que reúne documentos, áudios e até mesmo imagens que fizeram parte da cobertura jornalística à época. Como pesquisadora, qual foi o maior desafio na construção do projeto?
Flora Thomson-DeVeaux: O maior desafio na construção do projeto não foi o tamanho da bibliografia – eu tinha acabado de defender minha tese de doutorado, e depois de encarar a fortuna crítica machadiana pouca coisa ia conseguir me assustar –, foi pegar um levantamento enorme a partir de milhares de textos e tentar transformar isso em algo enxuto e delicado. Enquanto uma tese nos deixa expressar uma narrativa fragmentada e ideias complexas ao longo de centenas de páginas, o áudio é um formato que pede simplicidade e concisão máximas. Sem isso, o ouvinte se perde ou se entedia. Foi fundamental o trabalho conjunto com os roteiristas, Aurélio Aragão e Rafael Spínola: eu ia guiando os dois pela apuração e eles iam enxergando caminhos, formas de apresentar a história do jeito mais cadenciado e bonito. Talvez a maior frustração tenha sido a pequena taxa de sobrevivência dos registros audiovisuais daquela época, sobretudo a cobertura de rádio do caso. Enquanto eu conseguia consultar dezenas de publicações e milhares de reportagens, o pesquisador audiovisual do projeto, Antônio Venancio, ia batendo de porta em porta e sendo informado que o acervo de tal emissora se perdeu, que as fitas de outra não estão catalogadas e acesso não estava liberado, que ninguém sabe o que foi feito de tal gravação… Falamos disso no primeiro episódio e explicamos o jeito que a gente deu pra contornar a falta: pegamos trechos de reportagens impressas e pedimos para um locutor gravar. A solução ficou bonita, mas toda vez que conseguíamos um pequeno fragmento de material original era de arrepiar.
Esta é uma pergunta que direciono para ambas. O “mito” criado em torno da figura de Ângela Diniz segue sendo muito forte ainda hoje… Por que acreditam que isso acontece?
Flora: Essa pergunta me lembra de um trecho da matéria que Artur Xexéo e Augusto Nunes escreveram na Veja, depois do primeiro julgamento do Doca: “Gustave Flaubert deu a Madame Bovary um copo de arsênico. Leon Tolstói deu a Ana Karênina as rodas de um trem. Eça de Queirós deu a Luísa de ‘Primo Basílio’ uma febre tifoide. Machado de Assis deu a Capitu uma morte solitária”. A questão é que a história da mulher livre cuja liberdade a leva à morte é muito, muito antiga – assim como a tradição de essas histórias serem contadas por homens.
Branca: Como todo mito, aquele criado em torno de Ângela Diniz não representa a pessoa que ela foi, ao menos não inteiramente. Há pinceladas de verdade na imagem de Ângela como uma mulher livre e destemida, mas não na de mulher fatal, uma categoria que não existe e é fruto da sociedade patriarcal em que vivemos. O que é uma mulher fatal? Existe também homem fatal? O que seria isso? Acho que essa imagem perdura porque, apesar dos muitos avanços que as mulheres conquistaram desde os anos 70, ainda vivemos em uma sociedade patriarcal, em que o comportamento das mulheres é controlado e regrado pelos homens, por suas expectativas e necessidades.
O podcast tange o tempo todo questões como o que significa ser mulher no Brasil e as próprias discussões feministas, que tomam fôlego. Se fosse feito há 10 anos, por exemplo, acredita que a força e o impacto desse enredo seriam diferentes? Mais do que isso: o que significa lançar “Praia dos Ossos” neste momento que o Brasil vive?
Flora: É difícil saber como esse podcast chegaria em outro momento. Acredito que a história arrebataria os ouvintes do mesmo jeito, assim como Ângela fascinava as pessoas em vida e o público brasileiro acompanhou avidamente a história da morte dela. Mas o tipo de discussão que o podcast está suscitando hoje, é muito rico e plural. Acho que isso é porque estamos num momento em que a violência contra a mulher em todas suas formas, desde a violência discursiva até o feminicídio, está sendo mais enxergada, em que o retrocesso é muito patente e em que temos um vocabulário para articulá-lo.
Branca, e que conselho você dá para quem está começando a ouvir “Praia dos Ossos”?
Branca: Recomendo que quem está começando a ouvir ‘Praia dos Ossos’, para começar, que ouça em ordem. Para quem chegar no podcast mais adiante, volte ao início senão vai ficar tudo muito confuso. E mantenha a cabeça aberta para absorver todas as referências distantes, vindas de 44 anos atrás, chegando a suas próprias conclusões de acordo com sua experiência pessoal e conhecimento de mundo.
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“Praia dos Ossos” está disponível nos aplicativos e tem novos episódios sempre aos sábados. Ouça em sua plataforma predileta.
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