“Minha única condição é que só saia depois de morta. Artista morto vale mais. Além do mais, não quero ninguém me perturbando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais”. Assim escreve Rita Lee, na nota de abertura do livro “O Mito do Mito: de fã e de louco todo mundo tem um pouco” (Globo Livros), lançado nesta segunda-feira (29).
Entrelinhas, a sentença dada pela artista, morta em maio de 2023, deve ser lida com parcimônia. Rita se equivoca ao analisar as variáveis do peso de sua obra, uma vez que seus livros já vinham recebendo atenção nos anos anteriores à sua partida. Por outro lado, por si só, a publicação desta primeira autoficção adiciona mais do que uma nova camada à própria criação.
Inédito na literatura brasileira contemporânea, o projeto é fruto de uma escrita que levou mais de uma década para ser concluída, entre pausas e fases de intensa criatividade. Ao propor uma autoficção, agora compartilhada pelo editor, phantom e amigo Guilherme Samora, “O Mito do Mito” vira de ponta cabeça os moldes literários atuais.
A empreitada se centra nos bastidores de uma consulta inventada. Curiosa, Rita tem a sorte de conseguir um horário para encontrar o psicanalista Eric von Kasperhauss. Concorridíssimo, por sua vez, impõe a ela uma condição: que a consulta se dê após o pôr do sol, num velho casarão que resiste ao desmonte imobiliário da cidade de São Paulo. Outra vez, como nas canções, o espaço se faz um personagem.
A princípio sozinha, a rockstar embarca em uma jornada de verve vampiresca e com toques cinematográficos. Envolto em uma combinação de elegância e humor, o livro evoca momentos da própria trajetória, como a atmosfera criada para o LP “Rita e Roberto” (1985), lançado há 40 anos. Como se brincasse com os limites da ficção, do ensaio e da memória, a artista acaba se pautando por dois de seus temas favoritos: mistério e fanatismo.
Ao longo de suas páginas, a obra propõe elaborações e devaneios sobre os tipos de fãs, sem se esquecer, claro, de humanizar a autora. É assim que, com detalhes, faz um adendo à própria autobiografia, best-seller que, em 2024, foi adaptado aos teatros. Relembra, entre outras coisas, o dia em que presenteou David Bowie, no camarim do já extinto Olympia, em São Paulo, com um cristal phantom. “Emociona sentir os corações fanáticos”, diz ela, em um dos trechos.
Irônico, “O Mito do Mito” endossa ainda um caráter recorrente na obra de Rita — naturalmente, ela se reposiciona a cada criação um passo adiante no que diz respeito ao tempo. “Não acho que velhos fãs são seduzidos por novos ídolos. Falando por mim, acredito que fãs de verdade permanecem fiéis tanto na saúde e na riqueza, quanto na doença e na pobreza do ídolo”, escreve, declarando-se e, em paralelo, reconhecendo seu próprio tamanho.
As observações da irmã Virgínia, seu álibi nesta visita esotérica e que, em certa altura, também faz intervenções, nos lembram a importância de se manter questionador — outro aspecto que torna o enredo dinâmico. Os diálogos e as lembranças que são tema da consulta são sagazes e fazem com que o leitor tenha em mente a voz ainda pungente da própria Rita, que narra peripécias de banheiro ao lado de Sônia Braga, em Brasília.
Igualmente, é essa tônica que pavimentará um apêndice em que a própria autora propõe uma brincadeira final. À la “teste do Buzzfeed”, lista os vários tipos de fãs na intenção de que cada um se identifique.
A história de Lee com a literatura é antiga e data dos anos 1980, quando lançou e narrou a história de “Pedro e o Lobo” (1989) – era gênese de uma produção infantil que se encerrou somente em 2023, com a publicação das aventuras do ratinho cientista “Dr. Alex”.
Mais tarde, a cantora decidiu que era hora de contar a própria história, levando “Rita Lee: uma autobiografia” ao topo dos mais vendidos. Isso aconteceu repetidas vezes, originou uma peça de teatro bem-sucedida, além de galgar uma indicação ao Prêmio Jabuti, o mais importante da cena literária nacional. Duas semanas após sua morte, contaria aos fãs bastidores do périplo contra o câncer em “Rita Lee: uma outra autobiografia”, um relato íntimo, honesto e de humor refinado sobre aqueles últimos dias.
De tudo o que já tinha feito, o que mais se aproxima de “O Mito do Mito” talvez seja o livro de contos “Dropz”, lançado em 2017 e, até então, o favorito de Roberto de Carvalho. Companheiro de vida e de trabalho para quem se dedica o novo projeto, ele também aparece, em terceira pessoa, quando von Kasperhauss elenca perguntas sobre eventuais feridas do ego masculino. Afinal, Rita “era a figura de frente na música”.
“Minha criatividade é mais abstrata, a dele é mais concreta. Ele me ajuda em algo muito importante: a realização. Por mais que eu sonhe, que eu goste do campo das ideias, sou capricorniana e o que mais me dá prazer é ver um trabalho realizado, solto no mundo”, responde, honesta. “Isso, em termos musicais, significa a fome com a vontade de comer e ainda sobre espaço para a sobremesa. E sei que ele [Roberto] gosta de me ver sonhando”.
Ainda não está claro o que ainda há no baú de Rita Lee. Por ora, a artista propõe uma imersão em sua mente, fazendo-se uma amiga genial através de uma literatura que tem como principal função mantê-la sempre por aqui. Por meio das palavras de Lee, como um oráculo, o infinito eterno dos universos paralelos pode estar a poucas páginas de distância.
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