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“Quis brincar com personagens e cores que remetem a um Brasil”, diz Céu sobre disco “Novela”

Em disco mais recente, Céu parece olhar para trás repetidas vezes. O gesto não deve ser visto com desdém — ao contrário, inclusive.

Além de aceitar a sugestão de gravar o álbum “Novela” sem toda a parafernália eletrônica que marcou sua sonoridade mais recentes e dando lugar para instrumentos no estúdio, a artista paulista de 44 anos acabou mirando no início da própria carreira.

Era preciso se reencontrar enquanto criadora, passada uma pandemia que reconfigurou a indústria da música e a vida de todo mundo.

O disco evoca também, logo no título, a ideia de um formato que consagrou a televisão, em toda a América Latina, como um sinônimo de relevância, bem como o espelho de comportamentos e emoções profundos.

Para Céu, as teledramaturgias do cotidiano se transformam em música modernas, que se enlaçam entre gêneros como hip hop, MPB, pop e soul.

Em 12 faixas, a cantora cria uma jornada que destaca dribles, espreitas e uma curiosidade pelo drama, revendo desfechos previsíveis que a reafirmam, mais do que nunca, como a protagonista da própria narrativa.

Agora, a vencedora do Grammy Latino sai em turnê com o projeto a partir deste sábado (13), com show no Circo Voador, no Rio de Janeiro, e segue com datas pela Europa, América do Norte e Brasil, nos meses subsequentes.

Em entrevista ao Papelpop, feita por telefone, Céu comenta a relação que estabeleceu com a fantasia dos folhetins, a importância de viajar e as implicações de se colocar em um mundo superexposto. Abaixo, você lê os principais trechos da conversa.

***

Papelpop – Assistia muita novela quando criança?

CÉU – Sim, assistia todas! Desde as que passavam na [extinta TV] Manchete. Posso listar “A história de Ana Raio e Zé Trovão”, “Pantanal”, “Pedra Sobre Pedra”… Noveleira desde sempre!

PP – “Novela”, o disco, da mesma forma que um bom folhetim, é feito de vários núcleos. Ao longo desse álbum, diria que o protagonismo está nas mãos de quem?

C – Aqui eu sou a protagonista da minha própria novela, mas, como você mesmo disse, há um peso muito grande também em relação ao outro. É que apresento o meu recorte pessoal, mas escolho um caminho de encorajamento. O disco começa já com ‘Raiou’, uma música que reflete esse sentimento. Na letra, eu falo para mim mesma, mas também falo para os outros, pra gente. A questão da novela ser algo popular me pega muito. Não sou, obviamente, uma artista superpopular, não tenho o alcance de outras estrelas consideradas propriamente pop, mas sei que falo de maneira simples. Me definem por aí como alguém poética e sofisticada, mas não sei se concordo totalmente. Tento ter uma linguagem simples, agora mais que nunca novelesca, traçar um diálogo que pressupõe conexão. Esta é, em resumo, a ideia de ‘Novela’.

PP – As situações e os temas abordados nessas novas composições são universais, ao mesmo tempo em que nos levam a pensar que existe nas coisas mais simples uma complexidade. O que descobriu ser mais curioso nessas ‘teledramaturgias do cotidiano’?

C – Alguns discos meus foram feitos a partir da criação de personas, que variavam de acordo com o momento em que vivi. Em ‘Tropix’ (2016) e ‘APKÁ!’ (2019), encarnei uma robô pautada por digitalismos. Em ‘Caravana Sereia Bloom’ (2012), um pouco antes disso, criei uma sereia do asfalto. No primeiro e segundo álbuns, fui bem ‘eu mesma’, sem saber do que se tratava. Fui sentindo e em busca de um encontro comigo mesma.

‘Novela’ entra um pouco nesse lugar. Ele nasce num período pós-pandemia, num período muito sórdido, obscuro. Tudo mudou, houve muita pressão. Pra mim, que sou uma artista que gosta de fazer álbuns, que gosta de som, levou um tempo pra entender qual era a fórmula. Me senti achatada com tantos formatos, jeitos novos de fazer. O conceito proposto pelo Adrian Younge [multi-instrumentista norte-americano, produtor do álbum], de fazer as gravações sem computador, não era necessariamente o meu. No entanto, isso acabou imprimindo o conceito todo da história.

Trabalhar sem um computador é uma guerrilha completa. Não há conforto algum e aí você se propõe, simplesmente, ver o que acontece. Me joguei e não sabia pra onde ir. Foi importante. Fui até Los Angeles e em poucas horas de estúdio tínhamos um esqueleto do disco. Foi extremamente desafiador também. ‘Novela’ se dá nesse lugar em que falo de sentimentos, de situações e em que boto à prova. O que foi, foi. O que deu, deu. O que tá ruim, ficou. É um trabalho humano. Parece que tudo fica lindo quando está pronto e na rua, mas diria que essas canções foram feitas na raça.

PP – Nem de longe o resultado soa melodramático. Fico pensando se, ao compor e selecionar estas faixas, você também não quis brincar um pouco com essa ideia que a gente tem, já preconcebida, das novelas. Quer dizer, a maioria tem um enredo meio manjado, previsível… Mas você nunca se repete.

C – É legal esta pergunta. Conceitualmente, amo a novela. Há mesmo uma previsibilidade nos roteiros, mas também rola uma terapia coletiva em que todos refletimos sobre um determinado assunto. Há enredos que despertam em nós a discussão de algo que se desenvolve real, mas que, pode ser também, acaba não indo a lugar algum. Existem histórias ruins, novelas deslumbrantes. Mas o que permanece e é mais interessante é esse movimento de sentar com os outros e ter uma coisa para falar. Existe um pacto em que todo mundo meio que sabe no que essa história vai desembocar, mas seguimos comentando. Fora que o drama, em geral, tem um perfume bem latino-americano, apesar de os turcos também serem noveleiríssimos… O romance e a passionalidade encontram eco no meu lugar de artista.

Sinto que pintei um quadro ao fazer esse disco, quis brincar com personagens e cores que remetem a um Brasil. Essa coisa esdrúxula, meio Jorge Tadeu [personagem de Fábio Junior na novela ‘Pedra Sobre Pedra, exibida em 1992] fazendo xixi na árvore para regá-la e prosperar. O fantástico é uma coisa que me interessa, esse surrealismo latino-americano, essa estética de Gabriel García Márquez. O espírito que a gente tem me permitiu brincar sem juízo de valor. Bom, agora estou aqui tentando entender, junto com todo mundo, se vai funcionar [risos].

PP: Com tantas datas fora do Brasil, acho que a resposta é sim. E isso também faz de “Novela” uma espécie de ‘disco irmão’ do ‘Caravana’, não?

C – Concordo, mais ainda porque reflete quem sou eu. Eu ando pra caramba. É meu sétimo disco e, às vezes, fico chocada pensando se o povo ainda gosta de mim [risos]. Me entendo muito como ser humano estando em movimento. A andança me inspira. Um lugar incrível de compor, pra mim, é quando sobe o avião. Tô ali, não tem muito o que fazer e eu acabo escrevendo música. Nessas horas, me assunto e me dou conta: ‘Existe uma carreira’.

PP – Em “APKÁ!”, você já havia abordado de forma mais literal as nossas relações com o digital. Em “Novela”, as palavras inerentes a esse universo é que se fazem mais presentes. “Crushinho” e “High na Cachu” são bons exemplos. Você sempre se manteve reservada, nunca curtiu superexposição… O quão saudável esse movimento é pra você? Como não dar uma de Sade e se manter completamente desligada? 

C –Interessante você citar a Sade, que é minha musa desde sempre. Acho que os espaços que a gente dá, como eu até já comentei com você em outras entrevistas, são muito mais curiosos que a realidade escancarada. Os mistérios são muito legais. Gosto de ter espaço para imaginar quem é você, para gente se conhecer aos poucos. Não preciso saber tudo o que você está pensando, e vice-versa. Não sou tão interessante assim, estou apenas batendo o meu tambor aqui e querendo melhorar. Estou aprendendo…

PP – O que é fundamental, uma vez que o mundo nos desgasta, nos drena a todos. 

C – Absolutamente. Sinto que o ser humano precisa se entender mais coabitando, e não protagonizando. Tá que eu escolho ser a protagonista da minha novela, tenho as rédeas da situação, mas o gesto de ser reservada também é estar no controle. Em ‘High na Cachu’ em que falo simplesmente sobre estar parada e coabitando, confluindo numa cachoeira… O ‘estar’ também pode ser suficiente para o ser humano. É uma forma de querer viver que me atrai, que me é cara. Se dá certo eu já não sei, não represento muitos números por causa disso, com certeza [risos]. Se eu fosse mais o perfil de um reality show, talvez tivesse um desempenho maior. É o meu jeito, sigo assim, é o que acho saudável. Não gosto de hipocrisia, de falar algo e fazer outra coisa. Tenho duas crianças e tiro o celular delas pra que não fiquem penduradas na tela e, de repente, estou eu vidrada num telefone. São muitas pequenas coisas que me fazem ser assim, mas estou tentando.

***

“Novela”, o mais novo disco de Céu, está disponível em todos os tocadores de música.

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