Já faz quase 30 anos desde que Laura Pausini veio ao Brasil pela primeira vez. Ela era uma estrela em ascensão que havia acabado de ganhar o festival de San Remo e se consagrava cantando músicas românticas. Dentro de pouquíssimo tempo, dominaria as rádios da Europa e da América Latina em dois, três e, às vezes, até quatro idiomas, simultaneamente.
Foi assim que o músico Tiago Iorc passou a enxergá-la como uma figura onipresente. “Ouvia na infância o clássico da música italiana que chegava ao Brasil, os tenores tradicionais que entravam aqui meio sorrateiramente. Mas a Laura marcou, a voz dela sempre me emocionou”, contou, em bate-papo com o Papelpop.
“Acho bonito como a música dela se conecta com quem tem que se conectar e como isso se espalha depois que vai pro mundo. Laura encontra os corações que precisa tocar”, disse o cantor.
Em 2023, os dois lançaram “Durar (Uma Vida Com Você)”, single cantado em português. No idioma original, a faixa integra o novo disco bilíngue da artista, intitulado “Anime Parallele/Almas Paralelas”.
Lançado na última sexta-feira (27), o disco é um projeto conceitual em que Laura escolhe representar em cada canção um personagem, que interage com um objeto símbolo presente nas faixas de pedestres retratadas no encarte.
Ao todo, são dezesseis canções que falam sobre amor, raiva, memórias e a sensação incomparável de encontrar a liberdade.
“Temos infinitas possibilidades de caminhos a seguir. Temos pontos de vista, culturas e ideias diferentes, e por isso não somos as mesmas pessoas”, conta ela. “Reconhecer esta diversidade é um valor e também um desafio.”
Em uma longa entrevista feita por telefone, a italiana falou sobre a durabilidade das relações, a forma com que lida com a indiferença e a importância de se questionar sobre o que está ao nosso redor. Você confere os principais trechos abaixo.
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Papelpop – Um ano e meio atrás, quando a gente se falou, você me disse que tava perdida entre uma centena de canções, escolhendo atentamente o repertório que entraria nesse disco. Foi longa a jornada até aqui?
Laura Pausini – “Almas Paralelas” conta a história de 16 pessoas que vivem uma batalha, mas cada uma em sua individualidade. Por isso quis trazê-las na capa, caminhando em uma faixa de pedestres comigo. Na vida, cada um tem um rumo a seguir e, às vezes, nos cruzamos por meio de ideias, ideais. O que quero que as pessoas entendam com esse disco é que ‘Durar’, por exemplo, é um fragmento dessas jornadas de tristeza, raiva, libertação. Narra a história de alguém muito diferente de mim e ainda assim conseguir preservar minha essência garantiu um resultado, mas sobre tudo um processo, muito bonito.
PP – A sua discografia tem ficado mais dançante desde “Simili” (2015). Percebo faixas que miram nas pistas, nas discotecas. Concorda?
LP – Você sabe que eu sempre fui muito fiel às minhas exigências e ao meu olhar na hora de compor ou selecionar o repertório. Agora, tratei de escutar mais os outros e isso me ajudou, pela primeira vez, a olhar para os dois lados antes de atravessar. Fazer esse álbum foi como se eu pudesse sobrevoar a terra, caminhar pelas ruas e ver tudo sob diferentes perspectivas.
Lá em ‘Simili’, eu, provavelmente, escrevia de um jeito mais cômodo. Fiquei ouvindo o que tocava na Itália em certa altura e percebi que o estilo das músicas foi mudando. Trabalhei com gente jovem, absorvi referências, mas consegui preservar um estilo que é meu. Mas pra mim a coisa mais difícil nesse mundo ainda é amar as pessoas que não são como você, que são diferentes, que sonham e projetam ideias de outra forma. Como dividir as mesmas ruas com elas? Sentir diferente é complicado. Estamos em guerra, estamos em um ambiente de ódio extremo, numa luta constante entre pessoas. Queria fazer um álbum conceitual, celebrar a diversidade, e também o direito de cada um. Isso precisa ser respeitado. Sei que é mais fácil falar do que fazer, mas também sei que se ninguém fala disso, nunca vamos resolver os problemas de hoje.
PP – Laura Pausini sempre foi das pistas?
LP – [Risos] Olha… Depois da Covid-19, e agora o início da guerra entre Rússia e Ucrânia, eu fiquei muito perdida. Fiquei com medo e acho que, quando finalmente selecionei o repertório desse álbum, eu tinha dentro de mim um desejo muito forte de encontrar uma nova força, uma nova parte de mim que fosse otimista. Fiquei um pouco congelada. Achava que só estava segura na minha casa. Então, a música, especialmente a primeira faixa, ‘Zero’, trata de puxar esses sons mais eletrônicos, contemporâneos. A letra fala disso, também, de todas as emoções que quero viver, exceto voltar à insegurança, à inércia, ao medo. O disco precisava ser moderno, ter uma movimentação que ajudasse minha alma a dançar com mais positividade. Você ouviu no álbum canções mais melancólicas, né? Isso sempre estará em mim, mas nesse caso a diversidade é o que norteia. É ela quem representa aquelas pessoas reais que inspiraram o que conto.
PP – Esse assunto me lembrou “Confessions on a Dance floor”, o disco da Madonna, que também é uma alma paralela sua. Vai conseguir vê-la em turnê na Itália?
LP – Sim, ela vem! Fiquei na dúvida se seria na data em que estarei em Sevilla para o Grammy Latino. Vou tentar voltar pra assistir, acho que dá tempo. Amo a Madonna e você sabe que ela me deu uma música chamada ‘Like a Flower’, depois adaptada para o italiano como ‘Mi Abbandono a Te’. Ela e essa canção são muito fortes. Sinto que, enquanto artista, ela demonstrando uma força e uma vulnerabilidade que antes… Bem, provavelmente, muitas mulheres sempre acharam que ela era a mais forte das cantoras, havia também um orgulho físico à mostra. Agora, Madonna verdadeiramente vive um momento ímpar de sensibilidade. A situação dentro de nós, seres humanos, também tem mudado. Estamos mais emotivos, sobretudo os músicos. Vivemos uma inquietude, dia após dia, e nessas vejo que Madonna está mais doce do que nunca.
PP – A letra de “Zero/Cero” me chamou muito a atenção pela consciência de que não devemos nos contentar. A música tem um poder de influência enorme sobre a vida das pessoas. Por que é importante tornar isso um mantra, sobretudo quando pensamos nas mulheres?
LP – Cada ser humano precisa falar, dizer o que pensa, expressar seus pensamentos. Especialmente, aqueles que vivem de arte. Não podemos utilizar nossas profissões somente para perseguir o sucesso, ele vai ser uma consequência do seu discurso, daquilo que é feito com verdade. Nós temos uma responsabilidade, especialmente as mulheres que já estão aí há muitos anos, que construíram uma carreira. Vivemos, viajamos, observamos, pensamos, mas também nos comparamos. Existe de muitas formas uma responsabilidade de falar das coisas que, profundamente, sentimos. Sei que muita gente me escuta e quando você sabe que muitos te ouvem, você tem que se ocupar dessas pessoas também, do que acontece no mundo naquele momento. Agora, eu me vejo acompanhada por muitas artistas mulheres e sinto uma ansiedade em relação a esse ódio geral. As redes sociais estão lotadas de bullying, de uma raiva cotidiana. Não podemos cantar só ‘lalalala‘. É bom! Pode ser uma visão que um artista tem, mas eu me sinto mais livre e segura se sinto que há justiça e paz. Por isso busco profundidade nas palavras e inspiro por meio do amor, da construção de um discurso universal. O que canto precisa ser mais de alma do que de corpo.
PP – A relação intérprete/compositor está a todo momento em diálogo no seu trabalho. Como você se vê hoje, sente que está mais próxima de alguma dessas funções?
LP – É relativo. Não me imponho uma regra, muitas vezes recebo e escuto uma canção, mas não me identifico, ou não gosto de uma parte dessa faixa e preciso mudá-la. Aí eu escrevo. Quando o autor não me permite fazer isso, não me adapto e descarto. Ou ele muda aquilo que não me deixa cômoda, ou mesmo que eu adore a letra, não consigo cantá-la. É que depois aquilo será meu, quero fazer com que minha voz e cada palavra que interpreto tragam a certeza de que é aquilo mesmo. Isso acontece desde o primeiro álbum, que lancei quando tinha 18 anos. Às vezes, olho pra trás e não sei como naquela idade eu tive a coragem de dizer pra pessoas mais velhas do que eu que não cantaria algo que não respeitasse o que acredito. Mas é uma coisa que me dá muito orgulho. Eu sempre muito focada na verdade. Se não gosto, paciência… Seria melhor que aquilo batesse de primeira, mas quando não é o que acredito… me mata [risos].
PP – Musicalmente, você e Tiago Iorc trabalham muito bem com as questões do amor e com a canção. Quão significativo foi compor com ele?
LP – O Tiago sempre foi uma voz que adorei desde a primeira vez que escutei, por sinal, durante uma visita a uma amiga brasileira. Quando escrevemos a canção ‘Durare’, em italiano, sabia que se encaixaria em nossas vozes. Mandei pra ele uma demo da canção e algo que me marcou foi a letra de sua parte, composta por ele em seguida. As composições são sempre muito significativas para mim. A versão que fizemos em português, chamada ‘Durar (Uma Vida Com Você)’, é uma música que se dedica a pensar o compromisso diário de construir uma vida juntos. Apesar de melódica, como acontece em vários outros momentos do meu repertório, esta não é uma canção leve. Ela parte do afeto para narrar o processo de lapidar uma relação, e isso requer, além de amor, paciência, compaixão e sacrifício.
PP – Você se casou com o Paolo [Carta] este ano. Cultivar o amor todos os dias, em diferentes fases da vida, é um desafio?
LP – Hoje em dia, na mídia, ouvimos muitas histórias que acabam. Tudo acontece rapidinho e acho que é normal, é justo que em alguns casos aconteça uma separação. Mas eu não acho justo terminar um amor no primeiro obstáculo. É por isso que dedico esta faixa àqueles que sabem que é possível continuar. As pessoas não podem achar que existe apenas o negativo dentro de uma relação. Quero cantar a longevidade do amor, esse amor com respeito. Eu vivo isso. Você falou há pouco… Eu me casei agora em março, depois de 18 anos juntos. A nossa história de amor é justamente a mensagem que trago nessa faixa. É importante que a nova geração também se veja nisso. Na possibilidade de construir um amor. Construir juntos é muito bom, é o verdadeiro significado da vida pra mim.
PP – Dentro do seu repertório existem muitas canções que refletem a tristeza. “Come se non fosse stato mai amore” é um bom exemplo de clássico sobre término…
LP – Eu sei [risos].
PP – … Lançar “Durare” me parece seguir na contramão do que domina o streaming. Como observa a predominância dessas canções de ruptura, de chifre?
LP – É importante também que elas existam, tenho convicção de que a vida não é somente feita de coisas lindas. Dentro de uma relação, às vezes, pode aparecer uma traição que vai nos deixar abalados. A música é necessária para curar o artista mesmo e as pessoas que escutam aquilo e, dentro da sua realidade, vivem situações de impotência, de tristeza, de desespero. Mas não podemos focar somente nisso. Cantei muito o desamor porque vivi isso muitas vezes. Mas, agora, como você falava, a maioria das músicas reflete essas situações tensas. Acredito que a mensagem romântica e carinhosa é fundamental para que digamos às pessoas que existe esperança. Podemos sonhar.
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