O espólio da cantora Elza Soares lançou nesta sexta-feira (23) “No Tempo da Intolerância”, disco póstumo da artista brasileira falecida em 2022.
A gente até ia escrever um texto falando sobre, mas a carta de apresentação redigida pela jornalista Flavia Oliveira (Globo News, podcast “Angu de Grilo”), que você lê na íntegra reproduzido abaixo, era linda o suficiente para dimensionar a grandeza e a força das derradeiras gravações feitas pela voz do milênio.
Portanto, leia, ouça e emocione-se com a gente!
“Ouvir “No tempo da intolerância” (Deck) é ter certeza de que Elza Soares vive. Para sempre. Do início ao fim, o último álbum gravado pela cantora do milênio evoca eternidade. Traz Elza compositora em sete faixas retiradas do tão famoso quanto secreto caderno de memórias. Tem melodia inédita da grande dama do samba, Dona Ivone Lara, e homenagens de Rita Lee, Pitty, Josyara e Isabela Morais àquela que nos acostumamos a chamar Deusa.
O disco que Elza Soares deixou pronto antes de partir começou a ser gestado tão logo “Planeta Fome” (Deck/2019) saiu do forno. Se não emendasse um trabalho no outro, não seria Elza, a mulher que encaixou mil vidas numa só encarnação. A intenção era produzir uma obra autoral, com protagonismo feminino, jovens instrumentistas e assentada na negritude da filha da Vila Vintém. Dito e feito.
Pedro Loureiro, empresário, se pôs a garimpar os escritos. Rafael Ramos, produtor, se encarregou de músicos e arranjadores. O tom quem encaixou foi Gabriel Aquino, filho de João de Aquino, com quem Elza gravou um álbum voz e violão em 1996-1997, mas só foi lançado em 2021. A artista entrou no Estúdio Tambor, no Rio de Janeiro, no ano anterior à sua morte física, em 20 janeiro de 2022. O resto é História.
O álbum arrepia de cara, com uma Elza ainda marcada pela brutalidade da perseguição pela ditadura cívico-militar recitando um texto meio lamento, meio manifesto por direitos para mulheres e negros. O depoimento “Justiça” – gravado informalmente, em 2018, por uma Elza plena de cidadania e capaz de antever o que o futuro próximo reservaria ao Brasil – ganhou fundo musical potente de Danilo Andrade. É introdução mais que adequada para a libertária faixa-título (No tempo da intolerância/ Acordou com o pé esquerdo tem que ir pra Cuba), que cita Martin Luther King, líder do movimento por direitos civis nos EUA.
Na sequência, “Pra ver se melhora” (Tomate não dá/ Iogurte não dá/ Tem que sobrar pra comprar sabão) é canção-protesto contra a miséria, a fome, a inflação. Dialoga com “Quarto de despejo”, obra sexagenária da escritora negra Carolina Maria de Jesus. Atualíssima no país de 33 milhões de habitantes em situação de insegurança alimentar severa.
O disco é ideologicamente posicionado, passa recados fortes, diretos. Ao mesmo tempo, é divertido e dançante. Bebe do samba, da salsa e da black music de James Brown, astro americano que influenciou brasileiros do quilate de Tim Maia, Tony Tornado, Gerson King Combo, Sandra de Sá. Percussão, cordas e sopro acompanham a voz rascante – e marcante – de Elza.
O feminismo negro está escancarado em canções como “Coragem”, de referência autobiográfica e refrão irresistível (Se você é preto/ Não se iluda, meu bem/ Entre eles e nós/ A lei protege quem?). “Mulher pra mulher” (E tampouco ignoro a sua luta, mulher/ Mas fique sabendo a minha luta-dor atravessou o mar), de Josyara com texto introdutório de Elza, é um papo reto – retíssimo – com as white saviors do feminismo branco.
No disco cabe o bolerão “Te quiero” (Mas para não me perder/ É melhor dizer não), ponto final de uma empoderada Elza nas relações sem futuro. E enfileira homenagens. Pitty mandou ver em “Feminelza” (Respeite esse corpo que dele sai gente/ Que sangra sem morrer). Rita Lee compôs e Roberto de Carvalho musicou em 2021 “Rainha africana” (Eis-me aqui, rainha africana/ Brazuca sul-americana/ Poderosa no meu trono/ Eu não tenho dono). O arranjo, com cordas, percussões orquestrais, coro, é fiel à obra do casal. Impossível conter as lágrimas.
De Isabela Moraes, “Quem disse” (Como sobrevive o pobre/ Se o mundo tem como espelho/ Carro importado, roupa importada e muito dinheiro) começa com o MC Weslley Jesus (ou WJ) recitando um trecho de “Poesia marginal” (Grito Filmes). Na sequência, é Elza cantando samba.
Na derradeira faixa, uma dama encontra outra. Com letra de Pedro Loureiro e Elza Soares em melodia inédita de Dona Ivone Lara, “No compasso da vida” (Ela é dona dela agora/ O seu caminhar/ Sem desafinar/ Sabe onde chegar) é celebração à eternidade de duas mulheres senhoras de si, referências de gerações e gerações”.
Flávia Oliveira é jornalista. E muito fã“.
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