Sempre irreverente em sua vida e carreira, Rita Lee nunca fugiu à luta ou poupou os governos conservadores de suas críticas e, de maneira instintiva, nunca permitiu ser coagida pelos padrões que a tentaram limitar como mulher.
A cantora, considerada a mãe do rock brasileiro, nos deixou nesta segunda-feira (8) aos 75 anos. Nos últimos anos, lutando contra um tumor que carinhosamente apelidou de “Jair” [Bolsonaro, ex-presidente do Brasil], Rita é lembrada por suas batalhas em prol da liberdade feminina, que foi escrachada e necessária durante o período do regime militar (1964-1985).
É claro que, como uma boa rockeira, Rita usava de sua rebeldia para driblar o moralismo que vivia acerca daquele momento truculento de nossa História, sendo constantemente submetida (mas nunca vencida) pelos mecanismos de censura da época.
É para exaltar toda a grandiosidade da artista, que o Papelpop reuniu dez composições de Rita que desafiaram a moral e os bons costumes. Veja a lista abaixo:
A começar por “João Ninguém”, faixa ácida presente no disco “Lança Perfume”, de 1980, em que Rita canta sobre o general-presidente João Figueiredo — um certo alguém que é “dono da Aldeia” e que com ele “quem bobeou, dançou”, como explica em sua autobiografia, lançada em 2018.
Confira um trecho da letra:
“João Ninguém virou um homem
Poderoso pra chuchu
Limousines, banquetes mil
Rodeado de urubus
João Ninguém é gente de bem
Cheio de puxa-saquice
Ai daquele pobre diabo
Que subiu no palco e disse:
‘Rei pé-de-chinelo’
‘Até parece que o sangue é azul’”
Uma das faixas de maior sucesso da cantora, “Lança Perfume” afrontou o moralismo ao falar do prazer sob o ponto de vista exclusivamente feminino, algo que só era tratado na arte a partir de um eu-lírico masculino.
Afinal, em uma época de tanta represália, só alguém com a força e audácia de Rita poderia cantar: “Me vira de ponta cabeça, me faz de gato e sapato, me deixa quatro no ato, me enche de amor”. Única. Rita.
E seguindo na linha da inversão dos papéis designados a cada gênero, Rita mais uma vez provocou indiretamente uma discussão com “Papai me Empresta o Carro”.
Na música, além de se colocar como uma mulher que pede o carro emprestado ao pai, ela também coloca em advertência um certo despudor sexual que tinha sua aceitação limitada aos homens.
“Na minha idade ‘cê pintava o sete
Mamãe tem ódio de uma tal Elizete
Aqui em casa é impossível namorar
Então qual é a sua?
Eu só quero um sarro
Meia hora no seu carro
Com meu bem!”
Originalmente chamada de “Afrodite”, a faixa “Banho de Espuma” foi barrada pela censura na época e só foi liberada para o lançamento após algumas alterações em sua letra. Ela acabou entrando, posteriormente, no disco “Saúde”, de 1981.
A canção narra explicitamente uma relação sexual que acontecia em uma banheira, mas precisou ser transformada em apenas um banho em conjunto. Veja o antes e depois:
Como era:
“Em plena vagabundagem
Em qualquer posição
Falando muita bobagem
Bolinando com água e sabão”
Como ficou:
“Em plena vagabundagem
Com toda disposição
Falando muita bobagem
Esfregando com água e sabão”
Encomendada pela TV Globo para ser a trilha sonora de um programa feminino, a faixa “Cor de Rosa Choque”, que originalmente se chamaria “As Duas Faces de Eva”, precisava expressar o cotidiano das mulheres.
E foi ao falar de menstruação que uma nova tentativa de censura veio, mas Rita a driblou explicando: “Sabe quando a senhora antes de menstruar sente uma esquisitice hormonal e meio que dá uma pirada? Então, foi isso o que eu quis dizer”. Icônica, né?
Desvendando suas aventuras e, mais uma vez, sem medo de não se comportar de acordo com o costume, uma outra música que quase foi barrada pela ditadura foi “Flagra”.
Nela, Rita conta que estava perto de um final feliz com o boy no cinema, mas, de repente, o filme pifou e as luzes se acenderam enquanto chupava um “drops de aniz”. Imagina o flagra? É a Balinha de Coração deles!
Em “Arrombou o Cofre”, mais um de suas composições com o eterno parceiro Roberto de Carvalho, a mãe do rock usa de sua influência para colocar a boca no trombone sobre todas as regalias do governo daquela época.
Confira um trecho da letra:
“Governadores, deputados, vereadores
Saqueando bancos e bancando defensores
Ninguém se ilude mais que a comida está no fim
Olhem só a pança do sinistro Delfin
Tá cheia de cupim
Oh, oh, Brasil
Quem te vê e quem te viu
Pra frente, pra frente que até caiu”
Após serem detidos pela ditadura militar, acusados de porte de drogas, Rita Lee convocou seu amigo Gilberto Gil para um dos álbuns mais clássicos do rock nacional, o “Refestança”.
Entre as diversas canções que integram o disco, destaca-se a interpretação de “É Proibido Fumar”, em que eles avisam: “Nem bombeiro pode apagar!”. Eles eram o momento!
E por falar do período em que esteve reclusa na prisão, logo após descobrir a primeira gravidez, Rita Lee narra, em sua autobiografia, que fez uma apresentação de “Ovelha Negra” na cela, em que os versos da canção foram ecoados pelos detentos por meio do concreto. Já imaginou a cena?
Confira o relato:
“De volta à jaula, as perigosas assassinas e ladras se mostravam cada vez mais gente-fina-sangue-bom comigo. Um dia, as colegas perguntaram se eu poderia cantar umas musiquinhas para elas. “Puxa, se tivesse um violãozinho aqui eu faria um show inteiro para vocês”. “Não por isso”, disse Mendonça, e “cantou” para a carcereira, que “cantou” para os carcereiros que espalharam a notícia no Hipódromo Masculino. Dali um tempo, surge um violão meio vagabundinho com os cumprimentos da ala dos presos políticos que, mesmo torturados, não perdiam o humor. A noite, todos em suas celas, silêncio bem-vindo, boa hora para uma serenata. Então eu, possuída pelo espírito de Elvis em “jailhouse rock”, empunhei o violão e mandei “Ovelha negra”, com direito ao bis do bis. o inferno de Dante cantando em uníssono “Baby, baby, não adianta chamar.” merecia um Oscar de melhor musical. Como agradecer minhas colegas de cela por tanto colinho?”
E é sobre colocar a boca no mundo e falar o que pensa, lutar pelo que acredita, que Rita canta na sétima faixa do disco “Entradas e Bandeiras”, lançado no ano de 1976. Olha só:
“Isso não tem mais jeito
Foi tudo dito e feito
Agora não é tempo
Da gente se esconderTenho mais é que botar a boca no mundo
Como faz o tico-tico quando quer comer
Essa fome é vontade de viver
Chamar atenção pra você me ver!”
***
Rita Lee, considerada a mãe do rock brasileiro, faleceu nesta segunda-feira (8) aos 75 anos. Em abril de 2021, Rita foi diagnosticada com câncer no pulmão. Menos de um ano depois, Beto Lee, um de seus filhos, afirmou que a estrela entrou em remissão da doença.
A estrela faleceu ao lado de sua família, em sua casa, em São Paulo. O velório será aberto ao público nesta quarta-feira (10). Saiba mais aqui!
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