música

Rita Lee cantou sobre São Paulo e fez com que o mundo conhecesse a cidade

SANTA RITA DE SAMPA!

Com mais de 12 milhões de habitantes e sendo a maior metrópole da América Latina, São Paulo reserva em seus domínios uma quantidade incontável de histórias. 

Amor e ódio fazem desse lugar o berço de grandes acontecimentos externos e pessoais — muitos deles, sem dúvida, embalados pela voz e composições de Rita Lee. A estrela do rock nacional nos deixou nesta segunda-feira (8), aos 75 anos.

Com ela, ficou muito mais fácil entender a complexidade dos dias por aqui, para além do que quis dizer Caetano Veloso ao compará-la com os contrastes e belezas vistos na sua “Sampa”. 

Caminhar pela cidade ouvindo a mãe do rock é um exercício de reconhecimento do espaço que ganha novas dimensões, podendo ser transformado a partir da arte de alguém que viveu sem medo do desconhecido.

O Papelpop te conduz, neste texto, a fim de relembrar dez faixas de autoria de Rita Lee que ostentam sua relação com a grande metrópole do Brasil.

“Caminhante Noturno” (1969)

“Vai caminhante

Antes do dia nascer

Vai caminhante

Antes da noite morrer

Vai caminhante

No chão, vê folhas

Secas de jornal

Sombra na esquina

Alguém, Maria

Pisa o silêncio caminhante noturno

Foge do amor

Que a noite lhe deu sem cobrar

Sem falar, sem sonhar”.

Mesmo sem citar São Paulo nominalmente nesta composição d’Os Mutantes, Rita Lee constrói uma narrativa de amores fugazes e trabalhadores que deixam para trás suas pegadas. Ela faz alusão ao fluxo frenético da cidade, que nunca para — mesmo quando a noite se instala soberana. Nesta letra poética e em diversos momentos cifrada, a cantora referencia, também, as múltiplas figuras invisíveis, que se perdem entre sonhos grandiosos ou a própria ausência destes, já sufocados pelo fluxo.

“De Novo Aqui, Meu Bom José” (1972)

“E agora, Zé

Como é que é?

Mariazinha chora,

Meu bom José!

Que problema, Zé!

Tanto tempo e você, de novo aqui?

Em São Paulo Zé, ele vai nascer

Que problema, Zé!”

Ainda com a estética bastante próxima à d’Os Mutantes, Rita Lee evoca toda uma “caipirice” para tratar da passagem do tempo e da migração em um poema curto. 

Ela conta, entrelinhas, o nascimento de um inocente menino (talvez o Jesus dos nossos tempos?) na selva de pedra. Sagaz e crítica, ela encerra a faixa dizendo “Que problema, Zé!”

“Lá Vou Eu” (1976)

“As luzes da cidade

Não chegam nas estrelas

Sem antes me buscar

E na medida do impossível

Tá dando pra se viver

Na cidade de São Paulo

O amor é imprevisível como você

E eu

E o céu”

“Uma carta de amor à cidade”, disse a própria Rita Lee em seu livro de memórias ao se referir a “Lá Vou Eu”. 

Entre as milhões de janelas existentes em São Paulo, estava a da artista, escancarada, quando compôs “Lá Vou Eu”. Nesta balada com sonoridade orgânica e bastante característica dos anos 1970, a artista quis cantar sua inquietação diante dos desejos e da imprevisibilidade, potencializados pela solitude e a fome de vencer. 

Mesmo diante das adversidades que fazem a vida de um recém-chegado um tanto mais difícil, ela constrói uma mensagem de esperança e afeto, que quebra ao menos a princípio a barreira dos estereótipos que eximem SP da existência de amor.

“Lady Babel” (1976)

“Ei, você! Repare no arranha-céu

Aprenda a ver de longe a Lady Babel

Ei, você! Repare na sua cabeça

Aprenda a ver que a minha intenção

Não era dizer um monte de mentiras

Talvez, talvez, é o sucesso que sobe à cabeça

Talvez, talvez, a sua intenção só era dizer um monte de mentiras”

Um clássico do LP “Entradas e Bandeiras” (1976). Com tantas ofertas e oportunidades, é preciso ter jogo de cintura e malícia para viver em São Paulo. 

Rita Lee, como poucos, explorou as mentiras que contam por aí (algo não exatamente exclusivo da cidade, mas que se potencializa diante da quantidade de pessoas e contatos que se faz). 

Destemida, criou uma narrativa sobre perdas e ganhos que tem como cenário os muitos arranha-céus e a doce ilusão de acreditar que o sucesso pode ser a chave dos problemas. 

“Vírus do Amor” (1985)

“Aqui estamos nós

Turistas de guerra

Bizarros casais

Restos mortais do Ibirapuera

O vírus do amor

Dentro da gente

Beira o caos

42 graus de febre contente”

Com o vírus da AIDS/HIV correndo à solta por São Paulo, foram muitos os amigos que Rita e Roberto perderam no início dos anos 1980. A melancolia provocada pelas fortes doses de AZT e a impossibilidade de que essas pessoas pudessem caminhar livres e sadias pela cidade, dada a fragilidade de sua condição de saúde, fez com que os artistas compusessem a faixa “Vírus do Amor”. 

Nela, ambos resgatam o drama dessa outra pandemia fazendo referência a locais como o Parque Ibirapuera, símbolo da liberdade ceifada.

“Vítima” (1985)

“Do meu esconderijo no milésimo andar

Espio noite e dia sua vida secreta

O frio de São Paulo me faz transpirar

Sou vítima

Vítima da sua janela indiscreta”

Talvez a faixa mais cinematográfica do repertório de R&R, “Vítima” se inspira diretamente no filme “Janela Indiscreta”, de Alfred Hitchcock. 

Escondida em um dos incontáveis arranha-céus que ilustram e perturbam o imaginário que se tem de São Paulo, a artista encarna a figura de um voyeur, que segue sua vítima sem se dar o luxo de piscar os olhos. A atmosfera dos dias mais frios, cinzentos e de neblina confere à composição um ar ainda mais denso, de quase agonia. 

A elegância com que Rita e Roberto se permitem espionar a vida secreta dos transeuntes e residentes não pode ser comparada a nada daquele período.

Em 2021, o casal relembrou este e outros sucessos do disco “Rita & Roberto” (1985) a convite do Papelpop, celebrando os 35 anos de sua estreia. Releia aqui!

“Gloria F” (1985)

“Na sexta-feira eu cruzava calmamente

O Viaduto do Chá

Por um segundo me bateu

Uma vontade doida de pular e pulei”

Longe de incentivar qualquer prática que atente contra a vida, Rita Lee brincava com as figuras de linguagem como ninguém — inclusive, ao fazer piada sobre suas próprias recaídas e bad trips. 

Pode parecer um tanto tragicômico, mas a personagem suicida do disco “Rita & Roberto” é também uma espécie de guia pelo centro de São Paulo. Gloria F se atira do Viaduto do Chá, em pleno Vale do Anhangabaú, perdida entre excessos e pronta para dar início a uma cíclica reconstrução de si. 

“Brasyx Muamba” (1987)

“Viva Brazix, do jeito que tá

Pau com pedra pernas pro ar

Dúvidas, dívidas ao Deus dará

Darks ditaduras”

Se São Paulo pode ser considerada um ponto de confluência, a síntese de um País continental e sempre cheio de questões, nada mais justo do que Rita Lee narrar desde a megalópole sua perspectiva do Brasil pós-ditadura militar.

Da cidade de São Paulo, a uma altura em que as demandas transbordavam e a vida seguia a duras penas, a artista criou uma espécie de retrato sintético das elites “rastaqueras” e do fracasso da chamada “nova era”.

“Venha Até São Paulo” (1993)

“Venha até São Paulo ver o que é bom pra tosse

Venha até São Paulo, dance e pule o rock and rush

Entre no meu carro vamos ao Largo do Arouche

Liberdade é bairro mas como Japão fosse

Venha nesse embalo concrete fax telex

Igreja, Praça da Sé faça logo sua prece

Quem vem pra São Paulo meu bem jamais esquece

Não tem intervalo tudo depressa acontece”

É impossível falar de São Paulo sem citar a relação de Rita Lee com o “Nego Dito”, o fabuloso Itamar Assumpção. Juntos, foram por muito tempo dois dos maiores símbolos artísticos da cidade ao cantá-la em suas contradições. 

“Venha Até São Paulo”, lançada em 1993 no disco “Bicho de 7 Cabeças Vol. I” (1993), é provavelmente a maior expoente deste senso observador que marcou a trajetória de ambos, confluindo em uma narrativa acelerada, cheia de menções a espaços e personagens.

Como se formasse um roteiro ou um guia de apresentação, a canção entrega um panorama do vai-e-vem em que pessoas e batalhas se atravessam o tempo todo, carecendo e crescendo.

“Santa Rita de Sampa” (1997)

“Desvairada da Paulicéia

Virgem e mártir de toda a gentalha

Mãe menininha da Pompéia

Fogo de Camille Paspaglia

Marginal de Vila Mariana

Tia tiete do Tietê

Sofredora corinthiana

Padroeira de São Gererê”

Após ter se vestido de Nossa Senhora Aparecida em um show no Rio de Janeiro, em 1995, e acabar excomungada pela Arquidiocese do Estado, a cantora decidiu que era hora de, mais uma vez, trabalhar suas percepções sobre o ocorrido. 

Foi ao estúdio e a fim de expurgar as críticas despropositadas, compôs uma música mezzo irônica em que se coloca na posição de Santa. Desta vez, uma padroeira de coisas incomuns, consideradas muitas vezes profanas.

Frascos, comprimidos, malucos e animais são alguns de seus protegidos, para além dos mais diversos locais da cidade que a fizeram ser Rita Lee Jones, uma poetisa maga de cabeleira ruiva entre os transeuntes. Seria interessante mapear cada nome citado e, quem sabe, fazer uma visita a qualquer hora.

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