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“A possibilidade do novo é o que me arrepia”, diz Julia Mestre sobre 2º álbum solo
“Sinto, às vezes, que sou duas pessoas. A que está no palco é muito diferente da que se senta para conversar aqui”, diz Julia Mestre. A cantora e compositora carioca, que integra em paralelo o quarteto Bala Desejo, acaba de dar um passo importante na carreira ao editar o segundo disco solo de sua carreira.
Batizado como “Arrepiada“, o material se propõe a entregar uma versão mais pop de si, a partir de um mergulho na imensidão de investigar sentimentos e se deixar atravessar pelas surpresas e diferentes tempos da vida.
Desenvolvido em paralelo ao premiado “SIM SIM SIM”, projeto de estreia que a levou ao lado dos amigos Zé Ibarra, Dora Morelenbaum e Lucas Nunes ao grande circuito de festivais, além de lhes render um Grammy Latino, o projeto chega com a premissa de expandir sua narrativa — a começar pelo videoclipe da faixa-título, que estreou nesta segunda-feira (17).
No registro, ela vive a plenitude do verão ao interpretar uma vendedora de colchões que circula, em uma jornada alucinante, pelo litoral brasileiro. Entre as descobertas, o prazer e a liberdade, Mestre busca desafiar ainda mais os sentidos, sempre mirando o alcance do êxtase.
Nesta entrevista ao Papelpop por telefone, Julia discute a própria obra, fala sobre paixões e inseguranças, bem como reafirma o amor como o maior dos mistérios. Leia na íntegra abaixo:
Papelpop – O disco trata de diferentes potências femininas ao longo do percurso. Compor e gravar essas canções foi, também, um processo de autodescoberta?
Julia Mestre – Absolutamente. Eu tenho picos de inspiração. ‘Arrepiada’ é um disco que nasce quase que completamente durante a pandemia e a primeira faixa criada, por coincidência, foi a faixa-título. Já com o projeto finalizado, em algum momento de 2021, senti que precisava de outra canção que equilibrasse a energia que eu empregava ali. Assim surgiu ‘Meu Paraíso’. Observo esse disco como uma cebola em camadas. Talvez o título que dou seja a expressão de uma persona que eu gostaria de ser e mostrar para o público, mas quando você mergulha nessa narrativa, percebe que vou mostrando um outro tipo de sensibilidade. Nem tudo consegue te deixar arrepiada. Mostro fragilidades, dúvidas e permito que, quem me ouve, abrace momentos mais introspectivos, também.
PP – O que tem te deixado arrepiada, ultimamente?
JM – (Risos) Essa é uma boa pergunta, que eu também preciso me fazer. Confesso que ainda estou vivendo. Me transformei muito desde que comecei a trabalhar essas faixas. O próprio Bala Desejo também fez com que me sentisse uma nova pessoa, aprendi e aprendo muito com a banda em termos de estar no palco, de poder exercitar e expor essa artista que acho que sou, que já fui. A possibilidade do novo é o que me arrepia: saber o que esse disco vai se transformar dentro de mim, agora que está no mundo. O Bala me ensinou que, mesmo vivendo um ciclo, você se transforma, desde o lançamento até a turnê. E sei que estou pra mudar.
PP – O lado onírico está muito presente em faixas como “Deusa Inebriante”, mas também em outros títulos como “Meu Paraíso”, já citada por você. Como lida com o seu inconsciente? De que forma isso se reflete na sua criação?
JM – A gente está sempre lidando com questões internas, e o grande lance da compositora é saber encontrar um caminho para tratar de situações que acontecem ao longo dos dias. No caso de ‘Deusa Inebriante’, especificamente, essa faixa surge a partir da perda do meu avô, que faleceu aos 101 anos durante a pandemia, mas sem ter qualquer doença específica. Foi uma morte por causas naturais, provocada pela idade. Tentei extrair poesia daquilo, imaginei como seria a partida dele se estivesse sonhando e uma deusa aparecesse, ou se nesse sonho alguma imagem instigante o suficiente pudesse fazê-lo atravessar em direção a um lugar de elevação. Meu desejo é tentar extrair magia dessa e de outras situações que são comuns, duras demais.
PP – “El fuego del amor” introduz uma segunda parte do disco em que você fala sobre a dor do fim, mas sem perder o rumo, até com um certo brilho. Diria que o amor é o maior dos mistérios?
JM – Com certeza. O amor é o que move a gente. Existem inúmeras situações na vida que podem tanto detonar a gente como dar muito gás. Sinto que esse sentimento, mais do que qualquer outro, nos leva a fazer loucuras ao mesmo tempo em que nos deixa em estados superdesconfortáveis. Penso muito em como tudo dói.
Em ‘Arrepiada’, tento estimular quem ouve a passar por cima desse sofrimento e dar um passo em direção à autoconfiança, a ser você mesmo. Esse interlúdio vem logo após “Meu Paraíso”, para simbolizar um ciclo que desemboca na solidão e reconhecimento do drama. Precisamos viver o luto, mas também a festa. Quem sabe não é aí que você se abre e atravessa a fossa, reconhecendo o amor próprio?
PP – O Carnaval também se faz presente em alguns momentos, direta ou indiretamente – tal qual em “SIM SIM SIM”, trabalho de estreia do Bala. O quão significativo ele é pra você?
JM – Por ser uma artista carioca, a nossa relação é muito forte. O Carnaval faz parte de muitas histórias da minha vida e acho que gera um senso de identificação amplo por simbolizar uma janela de tempo. Quero dizer, você sai de casa e vai viver a rua. Claro, o meu disco foi atravessado por diversas outras experiências, o processo de composição e criação de bases começa antes mesmo de gravarmos ‘SIM SIM SIM’ (2022), mas nesse meio tempo muita coisa foi acontecendo e sendo moldada.
Nos anos 1970, era comum que grandes artistas fizessem muitas regravações para uma mesma faixa, dessem muitas roupas para uma só canção. De alguma forma, todos no Bala compartilham essa essência carnavalesca e, no fim, os meus três colegas de banda, Lucas, Dora e Zé, estão ali, participando. O que posso dizer agora é que dentro do grupo a gente fala que quer fazer girar mais uma vez essa roda de canções. O próprio disco do Zé deve ter uma nova música da Dora. O próprio Carnaval tem esse senso de comunhão, de compartilhamento.
PP – “DO DO U” foi gravada dentro do seu quarto e isso me remete ao trabalho da Billie Eilish. Não colocar tantas camadas de produção e investir em uma proposta mais orgânica é também uma forma também de compartilhar vulnerabilidades?
JM – Essa foi a última música que gravei para o disco. A minha escolha de ter convidado o Lucas pra fazer a produção do disco se deve, também, ao fato de que eu sabia que tinha nele algo que me ajudaria num processo de transformação. No fim, sinto que ele me levou pra um lugar muito novo de produção. Fiquei pensando: ‘Talvez, se tivéssemos uma canção supercrua, feita dentro do meu quarto e gravada com um iPhone, eu pudesse mostrar ao ouvinte que quase tudo o que você ouve dessas onze faixas saiu desse mesmo lugar’. É importante compartilhar com os fãs esse processo de composição, explicar e levá-los a interpretar algo por meio da música. Quis mostrar isso mesmo, vulnerabilidade, e deixar claro que as pessoas podem fazer essa assimilação, essa interpretação de que tudo surge em um espaço pequeno e acompanhado por um violão. Billie Eilish foi uma grande referência, assisti a um documentário sobre ela e fiquei muito inspirada.
Além do mais, até então, só tinha trabalhado em estúdios, pagando pela hora. Você fica de pé, com uma luz fria e tem que cantar porque custa caro. Quando você grava voz, principalmente, a ideia da gravação é captar o seu melhor momento, aquilo precisa ser eternizado. Acho que nunca tinha gravado uma voz boa na minha vida, sempre captei o áudio com esse pensamento colado à lógica do dinheiro — que, a sua vez, traduz uma energia. No Bala Desejo, foi diferente. Gravamos todas as vozes dentro do quarto, à exceção das bases. A gente apagava as luzes, deixava a energia tomar conta, o tempo era nosso amigo. As vozes do meu disco vieram com um aprendizado, elas refletem calma, delicadeza, um tom mais grave que se explica por essa decisão de estar à vontade.
PP – “Forró da Solidão” nos apresenta o que você chama de “forró moderno”. Enquanto criadora, como tem observado a renovação dos ritmos tradicionais do Brasil?
JM – Existe uma questão geracional, me parece, porque a gente vive em constante transformação na música. Acho que por a gente também ser brasileiro, a gente está sempre bebendo de muitas fontes. Existe uma riqueza musical imensa. Estamos sempre abertos às trocas. Por ser muito fã de Dominguinhos, Luiz Gonzaga, mas também amar Rita Lee e Caetano Veloso, estou sempre em busca de mesclas. Mas também vivo nos anos 2020, sou uma artista do agora. Estou em conexão com Mahmundi, Luedji Luna, Liniker, Rodrigo Amarante e outros. Respondo essa pergunta pensando em uma mescla de referências setentistas, mas que também me posicionam em uma geração mais moderna. Vejo tudo sob esse aspecto, um entrecruzamento de ideias e gostos. O pop talvez seja o gênero mais influente da minha geração, mas o que busco fazer é uma mistura de linguagens que respeite o que amo, o lugar em que estou.
PP – A última faixa, “SONHOS & ILUSÕES”, é uma parceria com a portuguesa MARO e pode ser lida como “o dueto das cantoras roucas”. Você faz um aceno a outras deusas inebriantes da lusofonia como Rita Lee, Marina Lima e a própria Angela Ro Ro, não? Sobretudo pela questão da ilusão, tema compartilhado pelas três.
JM – Total! Sempre gostei de cantar, mas, por muito tempo, tive dificuldade de me assumir como cantora, por não me sentir com tanto domínio vocal, achar que não tinha uma extensão de agudo e grave. Sempre me senti limitada, de fato perdia muita voz, ficava rouca com frequência. Chegou num ponto em que um otorrino chegou a sugerir que eu operasse minhas cordas vocais e isso me fez muito a cabeça. Imagina, eu com 16, 17 anos. Minha professora de canto foi quem me convenceu a procurar uma fonoaudióloga a fim de procurar exercícios e meios alternativos de resolver aquilo. Por mais que seja meu ponto forte a rouquidão, o que faz com que as pessoas me elogiem, os comentários também têm um peso. Rolou um carinho e uma identificação com cantoras que tem esse timbre como o meu e fui a fundo no trabalho da Marina Lima, por exemplo. A Maro, também rouca, tinha um projeto de música no Instagram durante a pandemia em que sempre chamava um artista pra cantar num duo, aí fizemos essa canção… De cara eu já pirava nela e rolou uma troca pois a letra traz um tom sonhador e quase lunático, perdido entre tanto caos. Era interessante pra mim cantar com uma pessoa que tivesse o mesmo timbre, mas outro sotaque e outras experiências, compartilhando esse discurso. Os sentimentos eram os mesmos, apesar de estarmos em diferentes janelas. Encontrei poesia nisso e me senti abraçada.
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O disco “Arrepiada”, de Julia Mestre, está disponível em todos os tocadores de música. Ouça!