Andar sem destino, não acertar, transgredir. Todas essas palavras cabem dentro de uma só: “Errante”. É ela que dá título ao novo trabalho da cantora e compositora Adriana Calcanhotto, lançado nesta sexta-feira (31). Composto por 11 faixas, o material se apoia na ideia de movimento para fazer oposição à melancolia de “Só” (2020), antecessor gravado durante um período de isolamento social severo.
Do mestre Oswald de Andrade à artista visual Lygia Clark, Calcanhotto propõe a si mesma e ao ouvinte um exercício que leva a investigar o presente a partir de um desejo pulsante de expansão. A novidade coincide, também, com a estreia do show “Coisas Sagradas Permanecem”, um tributo à amiga e tutora Gal Costa, morta em 2022.
A turnê passa por diferentes capitais brasileiras a partir de abril deste ano. Dias antes da estreia, a artista falou ao Papelpop sobre ambas as obras.
Na conversa que você lê abaixo, reproduzida na íntegra, Calcanhotto discorre sobre o tempo, expectativas e seu desejo de manter os pés no chão. Leia!
Papelpop – Estruturalmente, “Errante” soa para mim como uma ode disforme à cultura popular brasileira, é um trabalho que costura referências – a maioria distintas, mas sempre em diálogo. Diria que este é seu trabalho mais anárquico?
Adriana Calcanhotto – É, anárquico no sentido de que este talvez tenha sido um dos trabalhos que menos intervi, musicalmente falando. Não faria sentido ter músicos e dizer ‘Quero que seja assim’. Seria um desperdício de talento e criatividade, então o processo foi bastante anárquico. Cada um se colocou da forma que conveio, e gosto de trabalhar com eles justamente por esse aspecto. Não combinamos as coisas. Eles ouvem a canção, cada um a coloca no seu lugar e ocupam esse espaço. Aquilo tudo, a mistura, é o arranjo que não se mostra combinado. Não existe uma hierarquia, gosto muito de deixá-los livres. Muito mais do que dizer ‘Não gosto disso’ vou sendo positiva. Há muitos erros que ficam melhores do que os acertos. A partir daqui você toca errado pra sempre, fica mais bonito (risos).
PP – Os discos, em geral, também parecem estar menos polidos, menos uniformes…
AC – Sim. Eu venho nesse movimento já há algum tempo, fazer o show soar muito próximo à gravação do disco, ficávamos trigados num clique no palco, fiz essa experiência, mas isso não funciona pra mim. Andamento, respiração e pulsação não são iguais. As plateias não são iguais. A coisa do acabamento passa do ponto a ponto de deixar o trabalho frio, asséptico demais. Esse espírito jazzista da improvisação, em que cada um está ali imerso na sua própria função, nos levar a encontrar o que cada um gosta. O que tem de especial nesse encontro é que a gente passou por uma pandemia, gravei um disco dentro de casa sozinha, e ‘Errante’ é justamente o oposto. Todos gravando juntos, ao mesmo tempo.
PP – “Errante” soa em alguns momentos como a abertura de uma porta. A crença na alegria voltou plenamente ao Brasil?
AC – Ela voltou. Eu acho que o Carnaval desse ano deu essa resposta, fez uma reafirmação…
PP – Em Belo Horizonte, onde eu estou, foi uma coisa imensa.
AC – Eu vi pela TV! Havia uma expectativa enorme nesse sentido. E você falou em porta, eu tenho usado a expressão ‘porteira’ (risos). Ao decidirmos nos isolar para gravar em Araras, na Serra Fluminense e cercados pela Mata Atlântica, abrimos a porteira da presença, resgatamos a possibilidade de tocar juntos. E para nós, eu e meus músicos, o encontro fez muita diferença. Ficamos em um estúdio morando durante 9 dias, sem interrupções, sem ter que sair, desmontar os equipamentos, pegar trânsito, encarar a cidade, as notícias. A gente ficou confinado e concentrado nas atitudes e no tempo. Foram feitas 18 faixas em 9 dias, e tudo isso porque tínhamos essa pilha de tocar e tocar junto. Gosto de usar como exemplo o próprio Alberto Continentino [baixo, piano e lira], que ficou em casa tocando piano durante um tempo. E quando abriu-se a porteira e chegamos à Serra, fez maravilhas, coisas lindas, espontâneas, originais.
PP – Gosto de pensar, etimologicamente, a palavra “errante” – que dialoga com a impermanência, mas também com o erro. Há quem não lide bem com seus equívocos e a possibilidade de falhar, sobretudo os que vivem a partir de um viés de culpa religiosa. A esse respeito, sempre teve uma relação tranquila consigo mesma?
AC – Sempre tive, só gosto do risco (risos). Se não tiver risco nem saio de casa. É o que me move.
PP – Um dos versos de “Prova dos Nove” diz ‘E em tudo o que faço sou não mais do que impostora’. É isso mesmo? Ainda que tendo uma carreira sólida e respeitada em diferentes frentes, um repertório premiado e amplamente analisado, continua vendo a si mesma num lugar de impostora?
AC – Diariamente. Bem, síndrome de impostor talvez seja um termo um pouco forte, mas mais parecido com não se levar a sério no meu caso. É um exercício que deve ser feito para ficar com os pés no chão.
PP – “Era Isso o Amor?” me faz pensar nas muitas formas que esse sentimento se apresenta e a nossa incapacidade de compreendê-lo como um todo. Artisticamente, como você tem visto o amor agora?
AC – Essa canção tem uma inspiração no Camões lírico, tão diferente do Camões épico. Ele investiga o lance do desejo, que se não for satisfeito morre, perde a graça. Logo, a letra fala diretamente para o amor romântico, para essa preocupação do amor com ele mesmo e o fato de que se consome em si, que não está nem aí pra gente. É uma das coisas que Camões lida – ainda que com outras palavras. Sempre achei o amor a coisa mais revolucionária. Por amor a gente muda. Portanto, se a gente muda, o mundo ao redor também se transforma. É uma equação simples.
PP – Você cita Brasil, África e Portugal logo na primeira faixa – um bom panorama do que se entende por identidade luso-afro-brasileira. Concorda que de tempos em tempos é fundamental desenraizar nossas origens para poder entender onde e como estamos inseridos no mundo?
AC – Eu acho que sim. E é curioso porque, às vezes, a gente tem uma ideia, um ímpeto de pensar Portugal e África em termos muito antigos. Eu procuro pensar Portugal, África, Brasil, e até mesmo os povos originários, dentro de uma perspectiva de contemporaneidade. Ou seja, como é que isso se dá hoje. Conceitualmente, essa canção lida com o presente, como isso se dá pra mim.
PP – A ideia de transformar o álbum em um autorretrato, inclusive algo expresso na capa, não é exatamente nova no seu repertório, sinto isso em outros projetos. Vê a repetição como algo cansativo?
AC – Quando chego a esse ponto as coisas deixam de ser importantes pra mim. Eu preciso fazer coisas que de alguma maneira ache diferente, ou que ache que ainda não fiz. Quero fazer o que ainda não sei. É nesse sentido que aparece a coisa da impostora, que falávamos um pouco antes. Estou em busca da espontaneidade. Enquanto você não conhece o jogo, você está ganhando; se você se especializa, tudo perde a graça. Para mim, a graça está justamente naquilo que ainda é inédito e pode ser descoberto. Pode não ser pros outros, mas se sinto que estou fazendo algo que já é confortável, não me sinto motivada.
PP – Isso me lembrou, aliás, o show ‘Margem’ (2019), em que você toca uma versão rock n’ roll de “Devolva-me”, à la Erasmo Carlos.
AC – Sim. Foi um resgate, aquele arranjo é muito parecido com o da gravação original, que eu ouvia quando criança.
PP – Esse exercício de transformar coisas e se permitir ir a outros lugares acontece também na composição. Você constrói a última faixa de “Errante” a partir de falas que ouviu de Gilberto Gil durante uma turnê que fizeram juntos pela Europa. Essa técnica me remete de alguma forma a “Portrait of Gertrude”, canção construída por beats e colagens vocais para o disco “A Fábrica do Poema” (1994). Quão desafiador ainda é se colocar a serviço dessa investigação de possibilidades?
AC – Fiz essa canção a partir de observações na estrada, vendo Gil pelo mundo enquanto falava com as pessoas da técnica, o motorista, o garçom. Ele é alguém igual a todo mundo, embora não saia das alturas onde vive. Na sua comunicação, Gil diz coisas como se fossem frases banais, mas que ouço como se fossem versos, lemas de vida. De alguma forma, o meu exercício não deixa de ser uma interpretação da música, da vida, da forma dele de encarar o mundo. Então, é bastante estimulante pensar tudo o que há por fazer. Nesse sentido, como sou compositora e intérprete, sinto que a coisa toda se mistura, às vezes.
PP – O luto também está presente no discurso do álbum, sobretudo a partir das faixas “Jamais admitirei” e “Reticências”. O tempo atravessa ambas as narrativas… Nesse contexto, diria que ele pode ser mais um inimigo ou aliado?
AC – Eu acho que ele não tá nem aí pra gente. A gente fala que o tempo passa, quando na verdade a gente é que passa. O tempo só é. Tudo depende de como encará-lo, a gente que administre.
PP – É curioso ouvir isso porque “Horário de Verão” também traz essa questão da passagem temporal, ainda que sob a perspectiva do amor. Sob essa lógica, o amor também é um sentimento que não está nem aí pra gente, que não pode ser controlado.
AC – Muito menos (risos). Essa faixa, “Horário de Verão”, lida, sobretudo, com as convenções. A gente inventou que agora no Rio de Janeiro são 13h41. Invenção nossa, ele não tá nem aí. São 1h41 da manhã no Japão. Ontem começou o horário de verão em Portugal, mais uma invenção que se mostra emblemática. Só convencionamos que estamos 1h à frente, com que finalidade? Comemoramos o réveillon 1h antes. Imagina se o tempo está preocupado com meridianos, fusos? A decisão de inventar algo assim fez tudo ficar ainda mais desorganizado do que já é. Você não consegue lidar com as coisas de uma maneira controladora.
PP – “A casa é o corpo” é um título que surge a partir de Lygia Clark. Sinto que essa frase carrega uma grande complexidade muito grande em relação às investigações que podemos e devemos fazer a respeito de nós mesmos. São muitas interpretações, desde a saúde mental até a reorganização do Brasil nesse momento. Como você observa essa aderência das canções por parte do público?
AC – Essa é a magia da coisa. Às vezes, penso que faço aqui nesse quartinho uma canção sozinha e ela vai pro mundo. Não tenho a menor ideia de como isso ela vai ser recebida, cada uma das faixas bate de uma forma diferente. Se são dez, a proporção desse movimento é ainda maior. No transcorrer do tempo, algumas canções do Caetano, do Chico, do Gil são lançadas e imediatamente são lidas como algo muito bonito e atual. Passam-se 20 anos e isso fica ainda mais atual, eles estão muito à frente do seu tempo. De repente, algo lançado nos anos 1980 parece que foi feito hoje, eles são antenas. Há uma certa magia, alquimia nisso. Pra mim é a melhor parte do processo. Se eu soubesse o que iria acontecer com cada uma das minhas músicas, como seriam interpretadas por quem ouve, nem faria.
PP – Estreia no fim de abril o show “Coisas sagradas permanecem”, um tributo a Gal Costa (1945-2022). Já sendo uma estudiosa da música brasileira, do repertório dela, chegou a redescobrir alguma coisa específica durante a construção do espetáculo?
AC – Eu quis revisitar tudo. Ouvir os discos, rever entrevistas, making-ofs, frases. Tenho estudado muito e bagunçado meu algoritmo, que já não me manda nada mais que não seja Gal Costa. Ela era minha contemporânea, tinha uma obra aberta e a partir de agora isso não é mais. É incrível a trajetória, que se construiu daquele jeito manso, doce, mas absolutamente ousado. As várias transformações também me marcam de uma forma especial. As coisas que aprendi com ela. Ela foi minha mestra em vários aspectos. É muito difícil transferir uma trajetória desse porte, um repertório como esse, em que algumas das gravações que ela fez, mesmo de canções muito gravadas, são definitivas. Então, transferir isso para um show de 20, 22 canções é um desafio enorme.
PP – Já conseguiu decidir todas as faixas que vai cantar? Vai ser um setlist vivo, mutante?
AC – No roteiro que estamos trabalhando existem canções emblemáticas da trajetória, canções que o público quer ouvir, outras que me marcaram, tanto pessoal quanto artisticamente… Por exemplo, quando Gal cantou ‘Volta’ do Lupicínio, com o piano do João Donato, Lupicínio virou uma outra coisa que eu não imaginava que poderia ser. Trabalhar com a banda e a equipe dela, que foram os responsáveis pelo convite, tem sido um exercício em que preciso me inserir ali. O repertório vai ficar aberto até a hora de entrar em cena. Por enquanto, ainda não estou ensaiando com a banda. Mesmo assim terei coisas na manga, e o que posso dizer é que tem sido uma tarefa muito doce, mas muito árdua também.
PP – O que é sagrado e permanece pra você?
AC – A entrega dela. Acho que quando ela convida uma pessoa para dirigi-la, por exemplo, quando ela convida Caetano, Waly Salomão, Daniel Filho, Gerald Thomas, ela se entrega inteira. Ela não convida pra não aproveitar tudo o que é possível. Ela se dá. Isso eu acho sagrado.
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