O audiovisual brasileiro parece ter descoberto de vez o poder do gênero true crime. Ao longo dos últimos anos, diversas histórias que marcaram o país começaram a ganhar os holofotes, por meio de séries, documentários, podcasts e vídeos na internet.
É claro que esse tipo de abordagem não começou recentemente. Afinal, quem não se lembra do grande sucesso do programa “Linha Direta” (1990) (1999-2007), na TV Globo? Aliás, em 2023, a atração fará o seu retorno sob o comando de Pedro Bial. Mas, parece que o número de produções e a variedade de plataformas tem recebido cada vez mais atenção.
No entanto, para executar uma obra deste gênero, é necessário alguns cuidados e questionamentos. Quando é que relatar uma história sobre um crime deixa de ser realidade e se torna ficção? Quando é que o fascínio por criminosos reais se confunde com personagens de uma série qualquer? E a possibilidade de uma produção glamorizar um criminoso? Quais as responsabilidades na hora de se produzir obras como essas? É aceitável que cenas tão perturbadoras para vítimas ou seus familiares sejam reproduzidas fielmente, sem ao menos um olhar crítico ou com mais sensibilidade? São muitas questões.
É importante entender que essas histórias falam sobre diversas pessoas. Pessoas reais, com sentimentos reais. É necessário observar quem está envolvido no projeto, quem é o protagonista daquela história. Se analisarmos “Pacto Brutal” (HBO Max), por exemplo, existe o pedido de uma mãe, que teve a filha assassinada, para que contassem a história como aconteceu, sem que desse margem para qualquer firula em relação ao assassino.
É a história de Daniela Perez, a protagonista, com relatos e memórias de sua infância, seus amigos, ex-marido e familiares. É história da atriz que foi interrompida por um assassino. A mãe da vítima está envolvida no projeto, contando e relembrando a trajetória de sua filha. Apontando um criminoso. Algo diferente do que aconteceu, por exemplo, na série “Dahmer: Um Canibal Americano” (Netflix), por exemplo.
O protagonista da história é ele, e não quer dizer que isso seja errado. Afinal, é possível que haja uma obra baseada na vida do serial killer. Mas, é justo fazer com que familiares das vítimas revivam o pesadelo de tortura e morte que seus entes foram submetidos, reencenando EXATAMENTE os momentos de fragilidade dessas pessoas?
Outro aspecto que deve ser observado é a responsabilidade do público consumidor. É inaceitável que o espectador desses produtos transforme pessoas reais, que cometeram crimes e abusos, em celebridades. Que transforme características de criminosos em fantasias e ornamentos para seu puro entretenimento. Afinal, pessoas foram duramente prejudicadas ao longo dessa trajetória. Promover uma espetacularização dessas narrativas é, no mínimo, matar a sensibilidade e empatia ao próximo.
Levando em consideração tudo isso, o Papelpop separou alguns lançamentos de true crime nacionais que dominaram em 2022 e que cabem aplicar algumas dessas reflexões.
Se você esteve na internet em 2022, provavelmente, já ouviu falar “A Mulher da Casa Abandonada”. O podcast do repórter Chico Felitti, feito para a Folha de S.Paulo, foi um dos maiores sucessos do ano, se tornando o segundo mais ouvido do Spotify, os cinco episódios mais acessados do ano na Apple Podcasts e ainda parte do ranking global, dentro do 1% dos podcasts com mais assinantes e números de compartilhamentos no mundo. Ou seja, HITOU!
A produção narra a vida de uma mulher misteriosa, Margarida Bonetti, que vive em uma mansão abandonada em Higienópolis, bairro nobre de São Paulo. Mas, a história não é sobre uma pessoa excêntrica, escondida em uma casa. Na verdade, trata-se de uma mulher que esconde a acusação de ter cometido um crime, há 20 anos, nos Estados Unidos.
A produção semanal, que estreou no início de junho, nas plataformas digitais, virou um sucesso. Felitti almejava bons resultados para “A Mulher da Casa Abandonada”, claro, só não sabia que atrairia tamanho hype. “Eu torcia pelo podcast, até porque é a história mais louca com que já cruzei”, contou o jornalista, escritor e podcaster ao Papelpop.
O sucesso foi tanto, que uma reação, no mínimo, peculiar começou a tomar conta de alguns ouvintes. Apesar da trama real falar sobre uma pessoa acusada de um crime, memes em tons cômicos começaram a ganhar as redes. Em alguns casos, pessoas acharam que seria interessante, inclusive, se fantasiar de Mari, usando a famosa pomada branca que a mulher usava no rosto. Aos poucos, a Mansão se tornou quase um ponto turístico.
“Não fazia ideia de que seria um estouro assim, porque não é exatamente uma série de crime, né? É o perfil de uma pessoa que representa a elite de um país, então achei que pudesse ficar mais restrito a quem já consumia uns podcasts do gênero. Mas hoje vi os memes da [plataforma] Obvious e percebi que alguma coisa saiu do controle”, complementou Chico.
Se a repercussão já parecia ter saído de controle, ela se estende muito mais. A equipe do Instituto Luísa Mell entrou no território da mansão abandonada no bairro de Higienópolis, em São Paulo, para o resgate de alguns animais que ali viviam. Tudo isso, com transmissão ao vivo no Programa do Datena, helicóptero de tv, muito agito nas redes sociais e a presença da Polícia. Dá para acreditar?
Segundo o delegado Bruno Lima, que fez uma aparição nos Stories do Instituto, a Vigilância Sanitária e o Controle de Zoonoses também foram convocados para checar o local. “Falamos com vários vizinhos aqui do entorno, isso aqui é um problema antigo no bairro. Isso é um celeiro de doenças, na verdade, é um problema de zoonose, vigilância sanitária”, disse.
Após o sucesso de “O Caso Evandro”, o Globoplay resolveu apostar mais uma produção sobre um crime real. Desta vez, uma nova série conta a história dos “Meninos de Altamira”. A obra estreou em formato de podcast e faz parte do Projeto Humanos, criado e escrito por Ivan Mizanzuk.
O documentário conta a história de crimes brutais que aconteceram na cidade de Altamira, no interior do Pará, entre os anos de 1989 e 1992. Na ocasião, meninos entre 8 a 14 anos foram sequestrados, e, quando eram encontrados, estavam mutilados, com violência sexual e remoção de órgãos. Ao todo, 6 crianças foram encontradas em condições brutais e outras 5 encontram-se desaparecidas até hoje. Houveram 3 sobreviventes ao ataque na época.
Outro podcast lançado, pela Globoplay, neste ano, o “Leila” conta história da atriz e apresentadora Leila Cravo, que em 1975, foi encontrada inconsciente no asfalto de uma rua no Rio de Janeiro, nua e com escoriações pelo corpo.
Na época, o que teria sido dito é que ela mesma teria saltado da varanda da suíte presidencial de um glamoroso motel carioca. História que sempre foi negada pela atriz, que faleceu em 2020.
Com narração de Leandra Leal, texto de Daniel Pech e participação de Sara Stopazzolli na construção do roteiro, o projeto evidencia a versão de Leila, que durante anos foi negligenciada e teve sua imagem julgada.
Nos últimos meses, a Globoplay tem investido em produções que tratam de crimes reais. Com a história de Flordelis não foi diferente. A plataforma de streaming lançou a produção o “Flordelis: Questiona ou Adora”, tratando sobre o caso chocante da ex-parlamentar, condenada pelo homicídio de Anderson do Carmo.
O pastor, que estava casado com ela há mais de 20 anos e foi morto a tiros em meados de junho de 2019. Tudo isso, com participação de alguns dos filhos do casal. A obra apresenta os rumos que a investigação tomou, o envolvimento dos mais de 50 filhos do casal, e os bastidores por trás do crime que chocou o país em 2019.
Dividido por seis episódios, a obra conta com roteiro e direção de Mariana Jaspe e produção de Gustavo Mello (Boutique Filmes), com coprodução Globoplay, além de ter a ajuda dos jornalistas Carolina Heringer, repórter da editoria Rio e Thiago Prado, editor de política do jornal.
O caso de Flordelis foi tão chocante que a ex-deputada federal e missionária brasileira, garantiu mais um documentário, dessa vez na HBO Max e do Discovery+, o “Flordelis: Em Nome da Mãe”.
A trama foca no homicídio e propõe questionamentos sobre ganância, fama, religião, mídia e família. Tudo isso a partir de uma equipe de filmagem que acompanhou Flordelis e teve acesso aos principais marcos do caso, desde a cassação de seu mandato até sua prisão preventiva.
O documentário, dirigido por Suemay Oram em colaboração com Maurício Monteiro Filho, ainda apresenta cenas da intimidade da então ré primária com familiares e amigos próximos. Além disso, há entrevistas com investigadores da polícia, testemunhas-chave e equipes jurídicas de defesa e acusação.
Flordelis foi considerada culpada pelo conselho de sentença do tribunal do júri que analisou o caso e recebeu uma pena de 50 anos e 28 dias de reclusão, em regime fechado pelos crimes de homicídio, tentativa de homicídio, falsificação de documento e organização criminosa armada.
Neste ano, a HBO Max lançou “Pacto Brutal”, documentário que revisita um dos crimes que mais chocou o Brasil, o assassinato cruel de Daniela Perez. 30 anos após a morte da atriz, a produção apresenta todo o desenrolar do que teria acontecido em 1992, a atuação da mídia, da justiça, a falta de humanidade dos assassinos e a dor dos que perderam Daniela.
Com direção de Tatiana Issa, responsável por “Hilda Furacão”, e “Guto Barra”, a produção é capaz de emocionar e revoltar os espectadores ao mostrar o desespero de uma mãe e o sangue frio dos assassinos. A atriz foi morta pelo ator e colega de cena, Guilherme de Pádua, e sua esposa, Paula Thomaz. O documentário conta com depoimentos da mãe, Gloria Perez, que encabeça o projeto. Também falam o ex-marido, Raul Gazola, e pessoas próximas como a jornalista Gloria Maria e Claudia Raia.
“Dahmer: Um Canibal Americano” foi um dos grandes sucessos da Netflix em 2022, chegando a quebrar recordes e ultrapassar 1 bilhão de horas assistidas. A notícia, compartilhada pela própria Netflix, diz ainda que os números correspondem apenas aos primeiros 60 dias após a estreia.
Após ter ficado 7 semanas no top 10 global da plataforma, que compila dados de mais de 92 países, o feito levou a produção criada por Ryan Murphy a se igualar à quarta temporada de “Stranger Things” e à primeira de “Round 6”, ambas produções sucessos absolutos.
Estrelada por Evan Peters, a série apresenta as táticas cruéis usadas por um dos maiores serial killers norte-americanos, entre os anos de 1978 e 1991, como tortura e canibalismo.
Apesar do sucesso, à série foi alvo de duras críticas, por conta da reprodução bastante fiel dos fatos (mesmo sendo uma série de ficção), incluindo uma cena do julgamento de Dahmer.
Uma das principais partiu de Eric Thulhu, primo da jovem Rita Isbell, que detonou a produção de Ryan Murphy. Ela é retratada na série no momento em que depõe contra o assassino. Entre as acusações, está a de que a plataforma e seus produtores não teriam procurado os familiares para esclarecimentos e autorizações.
“São todas gravações públicas, então eles não precisam fazer isso (ou pagar) ninguém. Minha família descobriu quando todo mundo já sabia. Quando eles [referindo-se à Netflix] dizem que estão fazendo isso ’em respeito às vítimas’ ou ‘honrando a dignidade das famílias’, não, eles não notificam os familiares quando o fazem. (…) Meus primos acordam nos últimos meses com um monte de ligações e mensagens, eles sabem que há outra série de Dahmer. É cruel’.
A postagem viralizou nas redes e o rapaz decidiu falar um pouco mais sobre o assunto. Ele esclareceu que não desejava persuadir o público a não assistir à produção, mas que gostaria de revelar o que se passa nos bastidores.
“Sei que produções de true crime são algo grande por agora, mas se você está realmente curioso(a) sobre as vítimas, [saiba que] minha família (os Isbell) está chateada com esse programa. Está romantizando várias vezes, pra quê? De quantos filmes, séries, documentários vamos precisar? (…) Tipo, recriar minha prima tendo um colapso emocional no tribunal diante do homem que torturou e assassinou seu irmão é algo SELVAGEM. SELVAGEM”.
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