A Graça de Gal Costa, para além do próprio nome, sempre foi e sempre será cantar. Ainda que as várias pontas da estrela tenham se apagado nesta quarta-feira (9), quando foi anunciada de forma inesperada a ida da artista, o legado se mantém firme em mais de 30 discos lançados ao longo das últimas cinco décadas.
Uma das mais celebradas cantoras populares do planeta, equiparada apenas a vozes imponentes do folclore latino-americano como Mercedes Sosa e Violeta Parra, Costa transformou toda uma geração ao personificar o que o Brasil possui de mais bonito. Fúria, doçura, sensualidade e a habilidade extraordinária de se transformar, esteticamente: tudo cabia nela.
Para revisitar, redescobrir e afagar a saudade, o Papelpop te convida a ouvir dez discos que fizeram desta “verdadeira baiana” a maior voz do Brasil. A lista está disposta em ordem cronológica.
No disco de estreia, gravado em parceria com Caetano Veloso como uma espécie de voto de confiança da gravadora, a artista entregou algumas das mais doces canções daquela que viria a ser a música popular brasileira. “Avarandado”, “Coração Vagabundo”, “Nenhuma Dor” e “Zabelê” são apenas algumas das composições que integram o projeto – em sua maioria, ensaios da grandiosa obra que Veloso viria a criar nos anos seguintes e seria potencializada por meio do canto de sua amiga.
Ainda que ainda não tivesse a mesma força de seu sucessor, lançado em 1969, o projeto serviu para que os executivos da gravadora Phillips apostassem em ambos, dando início a um movimento artístico sem igual.
Em seu primeiro disco homônimo, Gal Costa evoca, em plena corrida espacial, uma gama de sons do além atmosfera. Entre ruídos que se projetam na velocidade da luz, ela escolheu abrir seu primeiro disco solo com uma elegante orquestra na faixa “Não Identificado”. Esta é, sem dúvida, uma das canções de amor mais bonitas já feitas por uma artista brasileira. Destaque ainda para suas versões de “Se Você Pensa” e “Vou Recomeçar”, ambas da dupla Erasmo e Roberto Carlos.
A parceria com Caetano seguiu firme, mas não sem antes abrir espaço para a presença do compadre Gilberto Gil. Ao seu lado, Gal emprestou a voz para Sebastiana” e “Namorinho de Portão”, esta última uma letra do gênio Tom Zé. Trata-se do início ao fim de um disco de rock, responsável por inaugurar um revés estético que vai da delicadeza à técnica mais rasgada de cantar – ambas símbolos de sua valentia diante do regime militar. Ninguém fica parado quando se ouve “Divino Maravilhoso”, regravada à exaustão.
Ainda que sua gravação tenha sido captada em baixa qualidade (e os registros em vídeo tenham, muito provavelmente, sido perdidos durante o incêndio da Cinemateca Brasileira, em São Paulo), “Fa-Tal: a todo vapor” assumiu ao longo dos anos a delícia de ser talvez um divisor de águas na carreira de Gal Costa. Essa estética crua e em alguns momentos até estourada fez com que o registro ganhasse um certo charme, digno da potência poética e, por que não, física que sua intérprete quis empregar em cada performance.
Impossível eleger aqui as melhores canções, é preciso ouvir de forma ininterrupta. “Fa-Tal” traz Gal no auge de sua rebeldia. A grande diva nascia aqui.
O Ato Institucional Nº5, que voltou à boca dos fascistas nos últimos anos, perseguiu seus amigos e Gal se viu praticamente sozinha no Brasil. Durante o início da década de 1970, o ícone da Tropicália se uniu a Jards Macalé e Lanny Gordin, com quem construiu a maioria do repertório Impossível pensar que Gal Costa nos deixou e não refletir exatamente sobre alguns versos. Em “Hotel das Estrelas”, ela canta o seguinte:
“Dessa janela sozinha/olhar a cidade me acalma/estrela vulgar, a vagar/rio e também posso chorar”.
Moderno até mesmo para os dias atuais, o projeto reflete angústias dignas dos tristes acauãs, bem como tentativas de encontrar algum barato na resistência à caretice. Orquestra, rock, baião e Carnaval se entrelaçam a todo momento na obra, que ainda traz uma capa assinada pelo artista Helio Oiticica.
Sampleada por KAYTRANADA em “Life Spots”, a faixa “Pontos de Luz” é apenas um dos muitos destaques de “Índia”, LP que exalta a psicodelia tropical de modo mais gentil e sofisticado, conseguindo ainda o feito de se esquivar do proselitismo cult conferido a outras obras contemporâneas.
Ainda que o tempo de duração desta coleção seja curto, o projeto mostra uma cantora igualmente ousada em termos de experimentação. Do folclore português de “Milho Verde” até o samba de , ela se utiliza de arranjos delicados para cantar o Brasil peitando mais uma vez o regime militar. A capa, que exalta o sexo feminino, acabou censurada pelos ditadores e, por razões burocráticas, só pode ser finalmente liberada em 2015.
“Capa do disco ‘Índia’ censurada nos anos 1970 e agora liberada para nosso deleite, incluindo o meu”, escreveu à época da liberação.
Já como a grande estrela que todos nós conhecemos, Gal decidiu que era hora de se desvincular do tropicalismo em 1978. Para isso, preparou a estreia de “Água Viva”, projeto concebido durante os primeiros momentos de abertura política pós ditadura. Foram muitas as faixas represadas pela censura, agora pouco a pouco liberadas. Do companheiro Chico Buarque”, ela gravou “Folhetim”.
Dorival Caymmi, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gonzaga Jr. também integram a ficha técnica, contrabalanceada entre o sensual e o sensível sob distintas perspectivas.
Mais de 400 mil cópias foi o que Gal Costa conseguiu vender nos dois primeiros meses após o lançamento de “Profana”, seu 19º disco de estúdio. Primeiro trabalho seu lançado com a gravadora RCA (Sony Music) após 16 anos de Phillips, o projeto traz a cantora fazendo o que sabia de melhor: interpretar.
Além de “Vaca Profana”, um registro canônico que jamais poderia ser excluído de seus vindouros shows, a musa também eternizou uma versão de “Lately”, de Stevie Wonder, adaptada por Ronaldo Bastos como “Nada Mais”. Quem viu sua última apresentação no Coala Festival, em setembro, não conseguiu segurar a emoção. “Chuva de Prata”, gravada com o grupo Roupa Nova, é outro momento que fala, diretamente, aos corações apaixonados.
O disco “O Sorriso do Gato de Alice”, lançado em 1994 e com inspiração literária, trouxe uma Gal Costa “lado B”, que não conseguiu exatamente emplacar grandes hits. No entanto, a parte visual não decepcionou. Sempre provocadora, ela quis revolucionar a si mesma na turnê do álbum e colocou o enredo nas mãos do diretor e dramaturgo Gerald Thomas, um dos mais inventivos e controversos do teatro brasileiro.
Aos 50 anos, Gal provocou alvoroço ao cantar “Brasil”, sucesso de Cazuza, com os seios à mostra. O batom vermelho, símbolo desta era, também incomodou setores mais conservadores – a despeito da força e confiança da artista, que seguiu estrada afora com ousadia impenetrável.
“Entro no espetáculo de uma forma inteiramente inusitada. Não entro como uma grande estrela, que era o que as pessoas talvez esperavam ver de mim, porque eu estou num momento bom da minha vida. Entro diferente, entro como uma atriz, como uma gata. Começo a me relacionar com Deus, eu estou num telhado, acima da cidade, ou seja, estou mais perto de Deus. A ideia é essa. É meu canto numa reverência a Deus. Não tem nenhum texto, eu só canto”, disse à época ao jornal Folha de S. Paulo.
Mais um trabalho feito com a intervenção de Caetano Veloso! Ao lado do filho Moreno, o artista produz este disco singular no repertório de Gal, que quebra uma linha cômoda de canções lançadas ao longo da última década com a finalidade única e exclusiva de entregar lirismos mais minimalistas, ora enigmáticos – todos atravessados por uma infinidade de brasilidades como o funk, o samba e o próprio alternativo/experimental.
O disco de 2018, o mais recente com repertório inédito, foi responsável não apenas por apresentar Gal a uma nova geração de fãs, mas também por fazer conexões com jovens criadores. Ainda que a disco music embale sua voz poderosa, Gal firmou parcerias com nomes emergentes. Entre eles está o cantor Tim Bernardes, de quem gravou “Realmente Lindo”, e a saudosa Marília Mendonça, para quem pediu uma composição.
Hoje, ao receber a notícia da morte de Gal menos de um ano após a também inesperada partida da “patroa”, foi impossível não traçar conexões e sentir saudade em dobro. Mais um trabalho que merece ser escutado sem pausas.
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