Em 1982, nove jovens lançaram-se como os Titãs do Iê-Iê. Começaram a fazer rock na época, marcada pelo processo de redemocratização, após os longos anos de ditadura militar no Brasil, e pela efervescência cultural, e não pararam mais.
Nos anos que se seguiram, os artistas abandonaram o “Iê-Iê”, viraram os Titãs, emplacaram hits, meteram o pé na estrada e conquistaram admiradores como uma banda paulistana que fala para todo o Brasil. Agora, em 2022, o grupo completa 40 anos.
Atualmente, com Tony Bellotto, Sérgio Britto e Branco Mello de remanescentes da formação original, os Titãs celebram as experiências das quatro décadas de existência, mas preferem não se perder em lembranças. Eles lançaram, na última sexta-feira (02), mais um álbum de inéditas, intitulado “Olho Furta-Cor”.
Produzido por Sérgio Fouad e Rick Bonadio, o projeto se inspira no poeta Haroldo de Campos, na cidade de São Paulo e, é claro, no Brasil. São 14 faixas que mostram que a banda vive o presente e gosta de se propor a novos desafios sempre.
Em entrevista ao Papelpop, Bellotto e Britto recordam o que mudou e o que permaneceu igual depois de viver os últimos 40 anos como os Titãs. Os músicos refletem, ainda, sobre o processo de desenvolvimento de “Olho Furta-Cor”, o atual cenário político-cultural do Brasil e a nova geração do rock brasileiro.
Leia íntegra a seguir!
Papelpop – Imagino que um filme esteja passando na cabeça de vocês ao completarem 40 anos de estrada. Foram muitas músicas, discos, shows e conquistas nessas quatro décadas dos Titãs. Agora, olhando para trás, como vocês analisam essa jornada?
Bellotto – É claro que, no ano que a gente está comemorando 40 anos, a gente pensa um pouco sobre isso. Uma hora ou outra, vem alguma lembrança. Mas a gente não é muito de ficar relembrando das glórias passadas. A gente é uma banda muito focada no agora e nos próximos projetos. Não é à toa que a gente decidiu celebrar os 40 anos lançando um disco de músicas inéditas. Acho que a gente sempre teve essa postura de ir em frente, se propor a novos desafios e criar coisas novas. Nós lembramos das coisas, mas não gostamos de parar nas lembranças.
Britto – É. Acho que quando a gente olha para tudo o que a gente fez e o que a gente está fazendo, a gente percebe uma coisa: a gente envelheceu, obviamente [risos]. A gente começou a carreira com 20 anos e, hoje, estamos na faixa dos 60. Isso é mais do que óbvio. Isso foi o que mudou. O que não mudou é o nosso entusiasmo pela música: essa paixão por fazer e descobrir coisas novas.
Papelpop – Quarenta anos atrás, São Paulo e o próprio Brasil eram outros. Muita coisa mudou de lá para cá, a níveis culturais, sociais e políticos. Mas a cidade e o país continuam presentes nas músicas dos Titãs. Vocês diriam que o Brasil é a maior inspiração de seus trabalhos?
Britto – Essa brasilidade é muito presente mesmo. Se você pegar a nossa discografia, você vai ver que, de várias maneiras, a gente faz uma crônica do nosso tempo. É uma coisa que a gente herdou, talvez, dos velhos sambistas, que sempre comentavam o que estava acontecendo. A gente faz isso também… de outra maneira, mas faz. Então, sim, o Brasil é uma inspiração constante. Mas acho que, nesse disco novo, São Paulo é uma inspiração mais explícita. Aliás, sempre foi, né? Músicas como “Bichos Escrotos” tinham esse ambiente urbano. Mas esse disco traz duas músicas com um poema de Haroldo de Campos que se chama “São Paulo” e fala explicitamente sobre a cidade de São Paulo. Tem a Rita Lee, que é um símbolo de São Paulo. Acho que, apesar de sermos uma banda paulista, a gente sempre falou para o Brasil, mas nossa relação com São Paulo está mais explícita nesse disco.
Bellotto – O interessante é que a gente é visto no Brasil como uma banda paulistana. É uma referência nossa. Mas a gente sempre conseguiu se comunicar com o Brasil inteiro com essa visão do paulistano, que vive essa metrópole diversificada, com um grande número de imigrantes estrangeiros e do próprio Brasil. Acho que esse traço faz parte da nossa essência.
Papelpop – Britto falou uma coisa muito interessante: “a gente faz uma crônica”. Vocês se consideram cronistas dos nossos tempos?
Bellotto – Acho que sim. Não é uma coisa deliberada, mas, quando a gente vai montando um repertório e começa a formar a ideia de um disco, a gente está, de alguma forma, comentando o que está acontecendo à nossa volta. A gente não tem uma preocupação sociológica, a gente não senta e diz: “vamos falar desse momento”. Mas as coisas que nos inspiram estão ligadas às coisas que a gente vive. Agora, neste momento específico, o mundo está saindo de uma pandemia que impôs uma condição de isolamento muito inédita. Muitos momentos pareciam cenas de um filme de ficção científica. Agora, a gente vive um momento de efervescência política no Brasil, com a proximidade das eleições. A gente vive um governo que expressa certas ameaças à democracia e, para nós, que somos de uma geração que nasceu na redemocratização, depois de 20 anos de ditadura militar, é inevitável que o Brasil surja nas nossas canções.
Papelpop – Falar no Brasil é falar de política, né? Como vocês têm observado essas movimentações políticas atuais, principalmente diante do desinteresse e da falta de fomento do atual governo em relação às artes e à cultura?
Britto – Isso é lamentável. Acho que as pessoas acabaram achando que o artista vive de dinheiro público, que a arte é uma coisa descartável e que o importante mesmo é a medicina e a engenharia. Isso é uma idiotice completa, porque, para começar, a cultura é uma fonte de renda. Em alguns países, é a principal fonte de renda, pois gera emprego. É uma atividade econômica como outra qualquer. E, se formos pensar direito, também é a expressão de um povo. Hoje em dia, tem que se falar o óbvio, como defender a democracia, e eu achava que isso nunca precisaria ser feito. Há uma onda conservadora, de direita e reativa no mundo inteiro. É bom que a gente reafirme essas coisas [democráticas] para que não restem dúvidas.
Bellotto – É, a gente sempre teve uma postura de perceber e enaltecer as riquezas culturais e artísticas do Brasil. Como falamos antes, somos uma banda de rock de São Paulo e sempre fomos muito abertos a influências. Toda vez que a gente se reúne para fazer um disco novo, a gente fala: ‘vamos fazer um disco de rock pesado que tenha elementos de música brasileira’. Essa riqueza brasileira sempre foi uma das coisas mais importantes para a gente. A gente vê com muita tristeza e preocupação esse descaso e essa quase perseguição à arte e à cultura. É preciso reafirmar a importância da cultura, que, como Britto falou, é uma força econômica para o desenvolvimento do país.
Papelpop – Pedro Bial escreveu que os Titãs “olham para o passado com os olhos do presente e olham para o presente com os olhos do passado”. O próprio título do disco, “Olho Furta-Cor”, traz essa questão do olhar. Vocês enxergam a vida e a música de uma forma diferente, depois de 40 anos de carreira?
Britto – Acho que sim. A gente envelhece e envelhecer tem algumas vantagens… poucas, mas tem [risos]. Uma delas é essa: se você tiver sabedoria para se enriquecer com cada experiência, você, com certeza, vê o mundo de outra forma. Por outro lado, a gente sempre teve essa visão de mundo, de abraçar a diversidade e de enxergar as virtudes das coisas que são diferentes da nossa linguagem. Lembro que, quando a gente fez os primeiros programas do Chacrinha, a gente já frequentava os bailes funk. Naquela época, o funk era restrito a um nicho, depois ganhou o Rio de Janeiro e, agora, está ganhando o mundo. Sempre achamos interessante aquela musicalidade diferente, com discurso direto e reto, falando de sexo de forma mais explícita, o que é raro na música popular brasileira. Então a gente sempre teve esse olhar aberto, um pouco multicor, e é por isso que eu acho legal o título do disco, “Olho Furta-Cor”. Furta-cor é uma não cor que tem todas as cores. Acho que essa é a nossa maneira de olhar para o mundo.
Papelpop – Como surgiu esse nome?
Bellotto – “Olho Furta-Cor” é parte do poema de Haroldo de Campos, quando ele descreve a paisagem urbana de São Paulo. Britto musicou esse poema, desmembrando em duas canções: “São Paulo 3” e “São Paulo 1”. Quando a gente estava buscando um título, a gente percebeu que “Olho Furta-Cor” englobava tudo o que a gente queria. Não é uma coisa específica, não é um título panfletário. Ao contrário, é um título poético que expressa a ideia do disco.
Papelpop – “Apocalipse Só” abre o álbum, com cantos indígenas e coro de crianças. Sei que a construção não foi fácil, foi preciso ir à Funai e ter a autorização do povo Xingu. Mas como vocês enxergam a importância de unir tantas vozes brasileiras, principalmente nessa música?
Bellotto – A gente sempre gostou disso. Na faixa-título de um dos nossos discos mais famosos e importantes, “Cabeça de Dinossauro”, a gente usava um trecho de músicas dos índios do Xingu. “Apocalipse Só” nasceu quando a gente estava ainda na pandemia, cada um isolado em suas casas, trocando mensagens no WhatsApp, e começou a pensar em um disco de inéditas. Foi, de novo, aquilo: ‘vamos fazer um disco de rock pesado que tenha elementos de música brasileira’. Pensamos na música mais brasileira possível, na música antes da chegada dos europeus, na música dos índios. Comecei a pesquisar no Google e no YouTube e achei aquele canto. Achei muito inspirador e comecei a fazer “Apocalipse Só”. Quando percebemos que o canto funcionava e que queríamos usá-lo mesmo, precisamos da autorização [risos]. Nossos advogados entraram em contato com a Funai, que descobriu a tribo e passou o contato direto do Cacique para negociarmos todos os direitos. Depois, surgiu a ideia de usar vozes de crianças. A gente colabora com o Instituto Anelo, que ensina música para populações carentes e forma músicos muito competentes. As crianças gravaram e foi muito legal. Acho que a música contém muito da ideia do disco. Não é à toa que a gente escolheu ela para abri-lo.
Papelpop – Outra faixa interessantíssima é “Caos”, escrita por Rita Lee, Roberto de Carvalho e Beto Lee. É uma música com a cara de Santa Rita mesmo, divertida e, ao mesmo tempo, crítica. Como essa composição surgiu para integrar o “Olho Furta-Cor”?
Britto – A gente pediu para eles fazerem uma música para a gente. Alguns anos atrás, Rita Lee participou de uma música da minha carreira solo, “Pura Bossa Nova”, e eu falei para ela: ‘Pô, Rita, você não está compondo’. Ela, que já estava meio reclusa, disse: ‘Eu tenho escrito umas coisas, mas umas coisas muito pesadas e para baixo’. Eu falei que quando ela tivesse alguma coisa assim, mandasse para a gente. Algo “pesado” e “para baixo” é a nossa cara [risos]. “Caos” tem um pouco mais de veneno, embora tenha a marca dela, que é essa coisa você ressaltou, o sarcasmo e a ironia que divertem, ao mesmo tempo em que são super críticos. Foi um pedido nosso que eles atenderam e foi um presente para nós, porque são pessoas que a gente admira desde garoto.
Papelpop – Outro ícone do rock brasileiro presente no disco é Raul Seixas, por meio de referências na faixa “Raul”. Ele morreu poucos anos depois do surgimento dos Titãs, ainda na década de 1980, mas foi uma inspiração para vocês? E vocês concordam que “Elvis tinha a ver com Luiz Gonzaga”?
Britto – Concordo com tudo que está dito ali [risos]. Ele argumentava muito bem, falando não só da parte rítmica, que ele mostrava claramente como o rock tinha a ver com o baião, mas também da malícia da letra. A música faz um desdobramento disso e compara o rio São Francisco com o rio Mississipi, dando substância a essa ideia tão genial do Raul. Convivemos pouco com o Raul, devemos ter encontrado com ele uma ou duas vezes, mas lembro bem que, em uma entrevista, ele foi perguntado sobre quais bandas dos anos 80 ele gostava. Ele falou que gostava dos Titãs porque a gente tinha “metafísica”, algo além da física. Não sei bem o que ele quis dizer, mas acho que era um elogio [risos].
Bellotto – É legal quando a gente se propõe a fazer um disco de rock brasileiro e traz a Rita e o Raul. São o rei e a rainha do rock brasileiro, sem nenhuma dúvida. São os maiores ícones. Eles nos influenciaram e continuam a nos influenciar. Lembro que Britto vinha trabalhando nessa música do Raul há muito tempo, tinha mostrado um rascunho anos atrás, e, quando finalmente acabou, veio muito a calhar dentro da ideia do “Olho Furta-Cor”. Foi uma justa homenagem.
Papelpop – Falando nos anos 80… na época, também surgiram Capital Inicial, Paralamas do Sucesso, Ira!, Legião Urbana, Engenheiros do Hawaii e outras bandas icônicas de rock brasileiro. Hoje todos vocês inspiram muitas outras. Vocês acompanham o rock atual? Como avaliam a cena no Brasil?
Bellotto – A gente sempre vê as coisas que vão surgindo. Principalmente nas viagens, a gente encontra muitas coisas que estão fora da grande mídia e se surpreende com a qualidade criativa do rock brasileiro. Acho que o rock brasileiro sempre soube juntar as influências, desde os tempos da Jovem Guarda, desde os Mutantes, desde os Novos Baianos. Você tem razão, a nossa geração fez muito sucesso, foi uma época em que a gente participou da grande mídia e o rock era a música do momento, era a que mais vendia. Vieram várias bandas depois, sempre com muita qualidade e trabalhos instigantes e relevantes. Acho que, no momento que a gente vive agora no Brasil, dessa efervescência política e desse caos, como bem observou a Rita Lee [risos], o rock se faz muito presente, pois a essência do rock é música de contestação e de colocar as coisas em cheque.
Papelpop – Tem alguma banda específica, mais antiga ou mais nova, no radar de vocês? O que tem em suas playlists?
Britto – Lembro que a última leva de bandas que fez sucesso para valer foi com os emos: NX Zero, Fresno, CPM 22… curiosamente, acabei de fazer uma música em parceria com Badaui, do CPM 22, então tenho ouvido muita coisa deles recentemente [risos]. Mas eu ouço tudo o que chega até mim, muita gente manda bandas para eu checar pela internet, e acho que tem muita coisa interessante. Talvez, daqui a um tempo, quando a coisa for mais propícia, a gente tenha uma geração nova com mais presença na grande mídia. O ambiente não é muito favorável hoje em dia. Não há muitas rádios de rock ou programas de rock, as pessoas não abrem muito espaço para esse gênero e se interessam pouco por trabalhos autorais. Acho que não é um momento muito propício, parecido até com a época que precedeu a nossa aparição. Era um pouco assim quando a gente começou: tinha um monte de banda, mas não tinha espaço. Talvez a gente esteja prestes a presenciar outro momento bacana do rock.
Bellotto – É, e o rock tem uma característica de se mover no subterrâneo e, de repente, volta com uma coisa nova. Mesmo no panorama mundial, passa-se um tempo sem aparecer nada e, de repente, vem uma revolução. Assim foi com o punk rock, com o grunge, enfim. Concordo com o Britto, sinto que alguma coisa está para acontecer [risos].
Papelpop – Vocês acham que a internet pode ser um facilitador para o surgimento e o sucesso dessa nova geração? As plataformas digitais estão aí.
Britto – É um facilitador, mas tem que ter espaço para as bandas tocarem. Bandas de rock, pop rock ou qualquer gênero precisam tocar ao vivo para mostrar sua personalidade. Hoje em dia um artista pop é uma menina ou um cara, é apenas uma pessoa. Em bandas, cada integrante tem uma personalidade como pessoa e instrumentista. Por isso, é preciso espaço para tocar ao vivo. Acho que tem que começar por aí. A internet soma muito, mas tocar ao vivo é insubstituível.
Papelpop – Por falar em ao vivo, como está a agenda de shows dos Titãs agora, com “Olho Furta-Cor” no mundo?
Bellotto – A gente voltou a fazer shows depois das flexibilizações da pandemia. Foram dois anos muito difíceis, não só para nós, mas para a nossa classe inteira, para o pessoal de teatro e para todo mundo que trabalha com espetáculos ao vivo. Agora, a gente tem vivido um renascimento. São muitos shows, incluindo festivais em comemoração a esses 40 anos da nossa geração, só com bandas de rock brasileiras. Tem sido muito legal. A gente lança “Olho Furta-Cor” com um show em São Paulo e, a partir daí, começa a viajar o Brasil inteiro com o disco novo.
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