O corpo de Eva Duarte Perón, ex-primeira dama da Argentina, descansa em uma cama de embalsamamento. Em 26 de julho de 1952, logo após sua morte precoce em virtude de um câncer, ela passou por um procedimento a fim de ser preservada intacta até que um monumento pudesse ser erguido em seu nome. A cena antecede os mirabolantes eventos da série “Santa Evita”, mais uma produção de língua espanhola que a Star+ lança na próxima semana, exatos 70 anos depois.
Em sete episódios, a narrativa não só mostra como o sepulcro nunca chegou a ser concluído, mas também a perseguição que se iniciou a partir daí quando as forças militares tomaram o poder. Ao derrubar o então presidente, Juan Domingo Perón, em 1955, os restos mortais de sua esposa encriptada se transformaram em um símbolo de paixão e fanatismo. Essa cobiça, no que diz respeito a oponentes, tinha como objetivo o apagamento total de um dos capítulos mais importantes da história nacional.
— “Na Argentina, ainda hoje, você convive diariamente com a imagem de Eva. Ela é uma figura muito presente, segue sendo uma personalidade política ativa. Eu a via por todos os lados e comecei a consumir tudo o que podia para entender sua história. Mas nunca imaginei que poderia atuar em seu nome. Olhar para Evita é olhar para uma personagem que, de tão gigante, tão potente, não te permitia acreditar na possibilidade palpável de revivê-la”, conta a atriz uruguaia Natalia Oreiro, incumbida de interpretá-la.
Grande defensora das classes trabalhadoras e dos pobres (os “descamisados”, como costumava chamá-los), Eva nasceu em Los Toldos e era filha de pai desconhecido, a caçula de cinco irmãos criados apenas pela mãe, uma humilde costureira. Os primeiros anos de vida foram de absoluta privação. Aos 15 anos, decidiu partir rumo à capital Buenos Aires para se tornar atriz. Como locutora de radionovelas, seu sucesso foi pífio, mas, quando, em 1944, ela conhece o grande amor de sua vida, o general Perón, viria a adquirir um protagonismo feminino, até então, nunca visto.
De fato, o trajeto percorrido pelo cadáver desprovido de túmulo ganha ares cinematográficos ao longo das duas décadas, em que se estende sua fuga intercontinental na tentativa de que não fosse destruído. Após ser enterrado na Itália com nome falso e, em seguida, sequestrado e profanado por militares até mesmo em rituais ocultistas, ele retornaria à Pátria Mãe, em 1974, onde ficou definitivamente no Cemitério La Recoleta. O ex-presidente Perón, a esta altura, já estava morto.
— “Houve uma obsessão total sobre seu corpo por parte dos homens e me pergunto o quanto de poder essa mulher deteve para que, mesmo morta, a considerassem um perigo latente. Foi apaixonante viver essa personagem, mas igualmente comovente reviver sua doença. Quando uma pessoa muito jovem se vai, é injusto, muito doloroso. Mas como mulher, não como intérprete, me senti absolutamente ultrajada, humilhada por incorporar a experiência de uma pessoa violada por aqueles que não conseguiram possuí-la. Para mim, foi algo muito difícil de se atravessar porque não era algo que eu tivesse que compor, era parte da história”, explica Oreiro.
O livro em que se baseia a série, homônimo, foi escrito e lançado por Tomás Eloy Martínez, em 1994. Rapidamente, a obra se transformou em um clássico da literatura de não ficção latino-americana, a começar pela controvérsia que evoca logo no título ao utilizar a palavra “Santa” – um reflexo do culto que se criou no entorno da protagonista, um fantasma que ainda hoje divide os argentinos.
Não seria estranho que o enredo se desenrolasse de modo a traçar diversos paralelos com o presente, revisitando uma época em que as mulheres argentinas tinham seus direitos básicos negados com extrema violência. Esta foi uma das preocupações da dupla de roteiristas Marcela Guerty e Pamela Rementería, encarregadas de fazer a adaptação da obra de Martínez.
Ainda que haja um interesse em ressaltar os pormenores da vida particular de Eva, humanizando-a para além da grande figura pública que foi, Rementería destaca que até mesmo Perón cometeu equívocos ao tomar a decisão de embalsamar a própria mulher, alheio às suas vontades.
Auxiliando na tarefa de explorar a narrativa pelo viés estético e visual, o corpo, consequentemente, acaba se tornando um personagem extra. É dele que partem densas reflexões sobre a dominação, um reflexo da agressividade com que se estabelece o conservadorismo.
— “Pensamos: ‘Por que contar essa história hoje?’. Queríamos criar um tipo de comunicação com o espectador que, antes de qualquer coisa, pudesse conectá-lo ao quão simbólico pode ser o corpo feminino. O que acontece na série, do ponto de vista social e politico, é o que acontece com as mulheres agora”, argumentou Rementería. “Existe, não apenas na Argentina, mas em toda a América Latina, uma enorme batalha para nos controlar e isso despertou um interesse muito forte de trabalhar a partir dos campos simbólico e de metáfora. Quando se quer silenciar, perseguir uma mulher, a única coisa que podemos fazer é dar destaque a isso, sublinhar esse caráter de mito”, acrescenta a roteirista.
Para enxergar a mulher por trás de Eva, foi preciso desconstruir o mito e seus emblemas. Em meio a esse processo de busca pela intimidade é que se percebeu a política entrelaçada a uma camada de eventos quase sobrenaturais. Quem destaca este aspecto é o diretor, Alejandro Maci.
Embora pareça improvável, ele consegue ver dentro de uma mesma aura a ex-primeira dama e outro ícone argentino, a escritora Silvina Ocampo, de quem adaptou textos para o teatro. Obscura, peculiar e dona de uma visão muitas vezes violenta, ela acaba de ter o livro “As Convidadas” publicado no Brasil.
Falecida em 1993, Ocampo fez parte de uma das famílias mais aristocráticas da Argentina e foi casada com o também autor Adolfo Bioy Casares, de quem acabou vivendo à sombra. Nesse sentido, acuada pelo machismo que partia tanto dos editores quanto da própria sociedade, não bastou ser uma das maiores escritoras de contos da América Latina e ter criado uma substancial obra de terror.
— “Para nós houve um aspecto ritual, ou seja, quando mergulhamos em um relato que atravessa o nosso país de ponta a ponta, percebemos que, sem dúvida, existia nele uma carga energética tão alta que despertava perguntas como ‘Isso é de fato o que aconteceu, ou são contornos delirantes que nos convocam ao sobrenatural?’. Não sei responder ao certo”, comenta Maci, o diretor da série. “Silvina falava muito desse aspecto fantasmagórico que há nos pampas, de um abismo horizontal. Para mim, isso se relaciona de alguma forma com essa história de Eva, tão mágica e tão gótica ao mesmo tempo, que de tanto ser repetida, paira por aí cobrando a vida remanescente após a morte”.
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“Santa Evita”, a série, estreia no Star+ em 26 de julho.
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