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Entrevista com Jorge Drexler: a valentia de compartilhar cores, amores e solidão
Jorge Drexler é um amante das palavras. Em sua discografia, é fácil encontrar evidências capazes de sustentar esta afirmação, sendo a mais recente o fato de que decidiu dar início ao disco “Tinta y Tiempo” usando um termo pouquíssimo usual para a cartilha da música pop. Na faixa “El Plan Maestro”, uma colaboração sua com o ícone da salsa Rubén Blades, ele faz uma viagem no tempo com destino ao período mesoproterozóico, situado há 1600 milhões de anos antes. Sua missão é recontar a história formadora e, consequentemente, mais longeva de que se tem notícia do amor.
Esse sentimento de natureza convexa, que se abre como as dobras de um origami para se encontrar na própria complexidade, é o tema central das dez canções que acaba de lançar. Festivas e de essência colorida, elas formam um contraponto à singela capa escolhida para ilustrar o projeto, fruto de uma parceria com o prestigioso estúdio Naranjo-Etxeberria. Em outras palavras, a folha em branco pode ser também uma porta de acesso para sonhos e doçura, só à espera da chave que resguarda essa vontade de viver longe de guerras e ameaças enfermas.
Embora tenha sido gestado durante a pandemia, o material não abre espaço para composições tristes e datadas, ainda que o valor dos sentimentos tenha sido preservado, muitas vezes potencializado. “Comecei a compor sobre telas, distância, enfermidades, até que pensei por um momento ‘Não quero estar em 2024 cantando isso num palco, quando provavelmente já não teremos que usar mais máscaras'”, conta Drexler, por Zoom. “Queria falar de células que se uniram para formar uma outra, inventando o sexo e o amor. Sobre voltar a tocar as pessoas, a abraçar, dançar, que tivesse muitas cores. Não queria um disco pobre de recursos”.
Ao assumir o desafio desse malabares criativo, ele assume o posto de trovador, falando aos corações apaixonados de amantes, mães, filhos, artistas, ou mesmo de ouvintes despretensiosos. Nesta entrevista, o cantor uruguaio discute temas como composição, as próprias perspectivas de presente e passado, além da valentia de amar em tempos de extrema cólera.
P: Quando ‘Tinta y Tiempo’ foi anunciado, brinquei dizendo que você agora teria um ‘álbum branco’ para chamar de seu. Aliás, seria mesmo uma possibilidade muito válida de referência, se pensarmos a trajetória de alguns dos seus grandes ídolos. Caetano Veloso, João Gilberto…
Jorge Drexler: Os próprios Beatles também…
Exatamente! Foi de propósito? Por que evocar um visual tão minimalista, inclusive para a capa?
Que curioso, não? Na verdade, foi uma decisão estética de dois designers gráficos, com alguns toques meus. Quando produziram a primeira versão fiquei bastante impactado porque o álbum acaba sendo completamente branco por fora e quando você o abre, tudo se revela completamente colorido, formando um processo duplo. Mas, de alguma forma, para mim tem a ver com o começar de novo, como se estivéssemos diante de uma folha em branco. Se tudo está em branco e podemos recomeçar, encarar essa sensação desconcertada que o novo é capaz de produzir, voltar a se conectar sobretudo com a vida após um período que nos privou tanto do amor, do contato, do desejo profundo de tocar, não?
Os últimos dois anos certamente deixaram marcas em você.
Sim, em mim ficaram duas marcas muito claras da pandemia. Imediatamente, senti um medo muito grande. No Brasil, por exemplo, isso aconteceu com uma quantidade enorme de justificativas. Sentimos medo da solidão, da doença, da distância, da desconexão, da depressão, de tudo isso que estivemos suscetíveis estando à distância. O vírus produziu uma espécie de thanatos, que é essa personificação da morte. Por outro lado, houve uma explosão de sentimentos encabeçada por Eros, pelo menos em mim. Ou seja, a certa altura houve uma mistura de desejo, vontade, cores e celebração, ainda que imaginária porque ainda temos certas restrições. Comecei a compor sobre telas, distância, enfermidades, até que pensei por um momento: ‘Não quero estar em 2024 cantando isso num palco, quando provavelmente já não teremos que usar mais máscaras’. Então me dediquei a esta segunda metade, da origem do amor no período mezoproterozóico, há 1600 milhões de anos, quando duas células se uniram para formar uma outra, inventando o sexo e o amor… sabia que queria falar disso, voltar a tocar as pessoas, a abraçar, dançar, que tivesse muitas cores. Não queria um disco pobre de recursos. Na fase inicial trabalhamos muito afastados, só com o violão. Quando me mostraram aquela capa branca, feita para um disco que traz no título a palavra ‘Tinta’ [risos], confesso não ter entendido muito bem. Depois percebi que havia um relevo, e esse é mesmo um disco que, para entender, você teria que tocar a superfície. A proposta era parte de uma experiência de toque sensorial, mas também sensual. O álbum mostrava essa complexidade, distinta do que aparentemente é plano. Mas, claro, devo dizer também que é muito elegante ter um álbum branco.
Você aborda o amor sob diferentes perspectivas. Falar desse assunto em um momento tão específico deveria ser uma prioridade coletiva?
Sim, e fico contente com esta pergunta. Eu acho que falar [de amor] sempre vai ser uma prioridade coletiva, mas em um momento em que acabamos de sair de uma experiência que nos relacionou diretamente com a doença, com o medo e com o luto, porque muitos perdemos entes queridos, houve uma redefinição de nossas relações com a vida. Ao mesmo tempo, desponta um psicopata, inserido entre os grandes psicopatas populistas que têm enchido o mundo nos últimos anos, do Brasil até Nicarágua, ou até a Rússia. Me parece que o mundo também se encheu de ignorantes que tem o ódio como ferramenta essencial de trabalho. É o denominador comum. A polarização de uma sociedade, a divisão entre bons e maus, independente dos campos de atuação política, sejam eles de direita ou de esquerda. Esse ódio que provoca a divisão social é o que sustenta a desgraça de ter armas nucleares e permita as tantas monstruosidades que podemos ver hoje em dia, sem permitir que possamos reagir barrados pelo medo, neste momento me parece mais importante do que nunca falar do amor como uma energia motriz, como uma energia valente, do amor como ponte.
Não por acaso, é algo que você próprio introduz em “La Guerrilla de la Concordia”, single lançado um pouco antes do álbum.
Exato. Sabe que, de todas as minhas canções, esta foi a que mais teve reproduções no Brasil e isso me chamou muito a atenção. Eu brinco que esta faixa tem o seu próprio disco, mas ela exprime justamente esta ideia. Em um dos versos, digo ‘Amar é coisa de valentes/o ódio é a guia dos covardes‘. Bem, fazer um disco que fala da história do amor, dos vários tipos de amor, seja entre casais, pais e filhos, à profissão, às artes, às nossas mães… fiz tudo isso pensando nas coisas simples que alguém poderia apreciar depois de se meter em uma pandemia, mas é uma perspectiva que vai além. Com o tempo, os temas abordados incluíram, sem que se percebesse, listas de coisas que precisaremos aprender a apreciar por estarmos vivendo uma guerra neste momento. Vivemos uma loucura, não?
Sempre achei que as suas canções tivessem uma identidade dupla. Quero dizer, são poemas que se podem ler em voz alta, ou mesmo serem interpretados com música. Enxerga desta forma também?
Há duas coisas que não gosto de dizer. A primeira, que não gosto de me auto intitular músico. A outra, que não gosto de me dizer poeta. Porque sei fazer música e sei escrever poesia, mas tenho amigos que são músicos de verdade, que se dedicam integralmente a isso, tocam seis instrumentos, sabem ler as partituras de primeira. Eu só me defendo com o meu violão, não dediquei minha vida nem à música, nem à poesia. Comecei a escrever muito tarde, então, diria que a minha vida é fazer canções, que é um gênero em si mesmo. Mas, em relação ao que você me perguntou, acho que sim. As letras podem ser lidas das duas formas, independentes, mas não foram feitas para isso. Acho que se aproveitam muito mais quando escutadas no contexto da canção, as próprias melodias podem ser escutadas sem entender a letra. Às vezes, percebo pessoas que não falam espanhol, mas que ouvem as músicas e me dizem gostar mesmo não entendendo nada [risos]. Pode ser que aconteça, mas na espinha central do meu trabalho está a relação entre as composições e os sons.
Fiz esta pergunta porque vejo a sua obra posicionada lado a lado à de outros artistas latino-americanos como Caetano Veloso e Gilberto Gil. Ou seja, grandes compositores que, por trabalharem muito bem a palavra, permitiram que se abrisse essa segunda ou terceira dimensão em termos de letra, publicando seus trabalhos em livro. Como uma compilação de poemas.
Você citou dois músicos que são letristas incríveis, e vou me permitir ainda adicionar a este grupo o Chico Buarque. Cabe se perguntar o que Chico escreveu primeiro, a letra ou a música? Eu sei que a música, mas parece mentira, a impressão que se tem é a de que ocorreu o contrário. É o que acontece com “Construção”, por exemplo. Tenho comigo que quando você tem muita sorte ou muito talento, a letra pode ser separada e pode fazer diferentes sentidos. Mas neste caso, bato na tecla de que vale a pena experienciá-la de forma completa. O Brasil, de forma muito particular, tem um nível de desenvolvimento na área da composição que nunca vi em nenhum outro lugar do mundo, à exceção dos Estados Unidos. E é um país que acaba sendo muito mais próximo de mim também.
Subindo um pouco mais no mapa… por este mesmo motivo existe uma profundidade muito maior do que possamos enxergar na sua parceria com Rubén Blades, não? O próprio Gabriel García Márquez ajudou a reforçar esta ideia de que ele era um ‘cronista da música’.
Para mim, Rubén Blades é um dos poucos artistas em espanhol que completam a complexa experiência humana de estar em contato com a arte, principalmente estando acostumado a essa espécie de ‘Olimpo insólito’ que o Brasil nos deu nos últimos 50 anos [risos]. O que aconteceu aí é uma coisa que não existia e não vai se repetir nunca mais. Em todo o contexto histórico, você vai encontrar alguns raros paralelos vezes. Talvez se compare apenas ao século de ouro da Espanha, quando duelavam pelas artes Francisco de Quevedo e Diego Velázquez. Da mesma forma, Rubén Blades, esse grande cronista da música panamenha, ostenta uma capacidade intelectual e racional de análise que é algo muito comum na música dançante latino-americana. Em suas letras existem histórias, desenvolvimento, sentimentos, mas sobretudo um comprometimento com o que se passa internamente em cada ser-humano e suas respectivas realidades. Gosto também do fato de que suas canções tem uma estrutura incrível, algo que faz dançar. Um show de Rubén Blades tem 3h de duração, você cai na pista e vive uma experiência maravilhosa. Só quando você está diante disso é que pode encontrar a emoção suprema. Os artistas brasileiros de que falamos fazem isso comigo, na música latino-americana existe algo um pouco mais fragmentado… Há criadores de música dançante que amo, ao mesmo tempo em que as letras não me despertam tanto interesse. Por outro lado, há aqueles que fazem letras incríveis, mas que não conseguem dar formaa elas. O convite a Rubén Blades vem ao encontro desta tentativa de minha de colocá-lo como a voz da experiência humana completa. Como quando Caetano chegou para cantar em ‘Bolívia’ (2014), encarnando um ser onipresente.
Ao contrário da espontaneidade que existe na poesia e, por que não, no próprio funk brasileiro que embala o single “Tocarte”… você ironiza essas novas formas do artista exercitar seu ofício em “Oh Algoritmo”. É uma letra divertida, cheia de nuances. O que motivou essa escrita? Sente que compor e fazer música se tornou um processo menos intuitivo, com tantas pressões e novos moldes sendo colocados ao redor?
Devo dizer que você tem uma percepção profunda da ironia [risos]. Esta é uma figura de linguagem difícil de captar, ainda mais em outro idioma, o que requer um nível de compreensão um pouco mais elevado. Nos meus discos, acaba que não é um sentimento frequente, acredito que existam poucas faixas, citaria talvez ‘La Plegaria del Paparazzo’ (2014). Acho que não tenho tanto prazer em abordá-lo, particularmente, mas no caso de ‘Oh Algoritmo’, eu tinha lido Sapiens – Uma Breve História da Humanidade, do israelense Yuval Harari, e ele questiona o fato de que o livre arbítrio chegou ao fim. O autor argumenta que os últimos descobrimentos científicos questionam a nossa tomada de decisões como entidades conscientes e informadas. Seus estudos mostram que tomamos decisões centésimos de segundos de antes de sermos conscientes do que queremos, por uma mescla de variáveis muito complexa. Temos um computador maravilhoso dentro de nós mesmos, que é o cérebro, uma máquina que processa os lados e tira uma conclusão. As plataformas conhecem todas essas variáveis e sabem como ativá-las. Se elas tem informações sobre uma pessoa, logo vão entender que podem fazê-la acreditar que quer algo. Brinco com as palavras usando verbos consoantes no refrão, cantando ‘¿Quién quiere que yo quiera lo que creo que quiero?’. Queria fazer um trava-línguas em que se pergunta onde está situado este arbítrio, quem o tem? Sou eu? Não gosto de apontar dedos, dizendo ‘Isto é o culpado’, ‘Aquele é o culpado’. Se existe um processo negativo em curso, quero ver o que eu tenho desse processo dentro de mim. Então, me coloco neste lugar de perguntar ao algoritmo o que eu devo cantar. Todos nós nos queixamos dele, mas no fundo temos também um desejo de submissão da própria liberdade. O ser-humano tem uma parte que não está ativa a todo momento, mas que permite à liberdade se sentir cansada. Você não tem vontade de fazer as coisas, e é aí que entra a função de um oráculo, um Deus, uma lei, um personagem paterno, materno que te diga ‘Não pense. Faça isto’. Por isso o autoritarismo tem esse poder sedutor. Tantas pessoas autoritárias conquistam o sucesso. O personagem que relato sente exatamente este medo. Eu não podia compor, as canções estavam incompletas, faltava colocá-las diante de outras pessoas. Portanto, há uma verdade interior atrelada à ironia. Noga Erez, que também assina alguns versos, traz um complemento a esta ideia de que a consciência é livre, mas o livre arbítrio, não. Em resumo, esta faixa é como se fosse a letra miúda de um contrato, mas que depois de assinar já não pode mais ser alterada.
Gosto muito da letra de “Cinturón Blanco” porque ela diz em certo trecho ‘Rebobinar até aquele início/até o mesmo precipício/no qual caímos juntos‘. Ainda que não possamos mudar nada do que já passou, concorda que este exercício de dar um passo atrás pode ser uma oportunidade de repensar o passado?
Concordo com a primeira parte da sua afirmação, quando você diz que ‘do passado não se muda nada’. E esta canção é engraçada porque produz um efeito diferente nas pessoas que engataram um relacionamento há pouco tempo, ou estão solteiras, e nas outras que estão há muito tempo com alguém [risos]. Estes últimos a sentem com certa melancolia, porque você não pode fazer mais do que tentar. Aos outros, que são ‘novatos’, parece uma canção alegre. Filosofando um pouco, esta faixa surgiu exatamente na velocidade em que foi gravada. Quando entramos em estúdio para trabalhar as demos, subi 12 pontos, achei que o álbum precisava de ritmo, senti que ela tinha que ter um impulso maior. Mas depois percebi que eu a havia matado completamente, porque a melodia perdia toda a sua melancolia e aquele sentimento de ‘Você vai tentar fazer isso, mas não é provável que consiga’. ‘Que lindo que você tentou’. Faço algo parecido em ‘La trama y el desenlace’ (2010), quando canto ‘Ir y venir, seguir y guiar, dar y tener, entrar y salir de fase‘, que quer dizer justamente isso: você não está nunca no centro de uma relação, você vai e vem, entra e sai. O casal é tudo, menos parte de um equilíbrio estável. ‘Corazón Impar’, também do álbum ‘Tinta y Tiempo’, conversa de forma semelhante com este equilíbrio ímpar, não sólido, que nem mesmo é complementar. Não posso dizer que sou a metade da laranja de alguém, você que está comigo não é a minha metade. Mas podemos compartilhar alegria e solidão.
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