É meia-noite e o novo disco de Rosalía já está disponível no Brasil. ‘MOTOMAMI‘, gestado ao longo dos últimos dois anos, é um trabalho bizarro, que desemboca em uma combinação de fatores e influências capazes de atender às necessidades de uma artista em constante movimento.
Gravadas no icônico estúdio Eletric Lady, em Nova York, as 16 faixas aterrissam como verbetes desafiadores e independentes, em todos os sentidos.
À primeira escuta, achei que outras faixas cumpririam com mais propriedade a função de introduzir o novo trabalho, mas ‘SAOKO’, escolhida para ser o segundo single, acaba como um perfeito cartão de visitas. É uma síntese de toda a obra, um reguetón fresco, destemido e ao mesmo tempo esquisito. É claro que provoca estranheza. Em cada virada inesperada, nos arranjos de jazz, no sample de Yankee e Wisin, no extraordinário piano que comporta. Mas é, justamente, esse caminho que a artista vai seguir (ou despistar, a depender da sua perspectiva). Se der a partida e decidir continuar, é melhor estar ciente: Rosalía vai deixar um rastro de viúvas de ‘El Mal Querer’. Ela parece fechar os olhos e consentir, sem arrependimentos, o abandono do drama flamenco. A ideia é dar vazão à liberdade, sobretudo ao acolher pensamentos e questões despretensiosas. Não chega a ser uma rebeldia, é algo mais filosófico. Os títulos oriundos da cultura oriental demonstram isso e serão recorrentes para evocar uma leitura de si própria. Para essa aqui, nota 10.
Bastante visual, esta é uma faixa com potencial radiofônico e que traz Rosalía brincando com o uso de vocais graves e agudos. Começa como uma balada e se desdobra em reguetón, entre memórias românticas e exibicionismo, fanfarrice. Mas é só olhar com um pouco mais de atenção e será como se, enquanto canta, uma borboleta alçasse voo.
Eis uma ‘velha conhecida’. Sedutora como deve ser o discurso da fama e do dinheiro, a parceria com The Weeknd entrega uma letra genial. Além de convencer uma das maiores estrelas norte-americanas a cantar em seu idioma (cá entre nós, até pouco tempo só era possível presenciar o contrário), Rosalía usa seu discurso para transformar os perigos da indústria em metáfora. A narrativa, como já se sabe, ganha tração com o videoclipe. A produção desta bachata merece todos os elogios. É minimalista como o todo e faz ainda mais sentido quando se ouve na ordem do disco, sem interrupções.
A música tradicional espanhola não é nem de longe um destaque nesse disco, e fica difícil admitir: ainda bem. Tomar esse caminho simbolizaria, sim, um risco para Rosalía, uma artista em ascensão e, cada vez mais, em evidência no mercado norte-americano. Cabe se perguntar se uma repetição nesse contexto não a faria ficar restrita à Europa. Em respeito às próprias origens e de uma forma torta, ela cria um flamenco à la ‘MOTOMAMI’. ‘Bulerías’ é seca, não tem uma produção rebuscada e do início ao fim de baseia apenas em palmas, vocais e sapateados. O autotune é usado com muita discrição e o resultado é uma canção quase acústica que consegue se inserir em um disco produzido nos mínimos detalhes.
Okay. Não é lá um grande momento do álbum, mas é perfeita para o TikTok. A métrica não deixa dúvidas e o clipe, lançado em sintonia com o refrão pegajoso, digno dos challanges, são provas vivas disso. A essa altura também já está claro que o novo projeto se baseia em uma despretensão explícita de Rosalía em criar uma arte que é mais intuitiva, despropositada. É exatamente o que ela faz nos 2 minutos deste single.
À primeira vista, ‘Hentai’ parece acenar para uma Rosalía melancólica como aquela que conhecemos, em 2017, quando estreou o álbum ‘Los Ángeles’. Mas não é bem assim. Nesta balada, a cantora acena novamente para a cultura oriental ao falar explícitamente de sexo. É uma canção ousada, de dupla personalidade como o próprio conceito ‘MOTOMAMI’. O ‘hentai’, abreviação da expressão ‘Hentai Seiyoku’, é na verdade a perversão sexual descrita em uma gíria. É também o termo que se usa para fazer referência a mangás e animes com conteúdo sexual explícito. É amor elevado às últimas consequências e baseado em imaginação.
Distorções. São demasiadas as distorções, proposital e estrategicamente posicionadas em diferentes momentos da faixa. Aqui desabrocha uma Rosalía experimental e sem medo de se jogar no exagero, dando vida a uma persona artística que a audiência ainda não conhecia e que vai se seguir em ‘Bizcochito’.
Brincando com a mesa de som, Rosalía cria mais uma faixa experimental em que eleva seus vocais já agudos ao quase patamar infantil. Na letra, ela reafirma seus desejos e percepções sobre a vida. Uma ‘MOTOMAMI’ é uma mulher que guia a si própria.
Esta aqui lê-se “Genís” e é outra balada carregada de sensibilidade. Como o título indica, a letra está dedicada ao sobrinho da artista, seu ‘xodó’, e funciona como uma espécie de carta. O encerramento traz um áudio afetivo narrado em catalão pela própria avó, um recurso que confere camadas ainda mais profundas à verdade com que abre seus sentimentos. Sem dificuldade, faz chorar.
A faixa-título todos nós já conhecíamos. Basta voltar ao vídeo de apresentação do disco, divulgado em novembro de 2021. É ela quem apresenta essa nova estética cheia de ecos, vocais distorcidos e repetições. ‘MOTOMAMI’, a canção, é praticamente um interlude, embora possua força suficiente para introduzir em pouco mais de um minuto esse universo de colagens sonoras e letras urgentes. Mesmo curtinha, é excelente.
Top 3, entre as melhores. ‘DELIRIO DE GRANDEZA’ é um bolero que exalta o domínio vocal de sua intérprete, comprometida com a função de entrelaçar o clássico e o contemporâneo, embora sempre buscando novos meios de fazer esse ‘casamento’. O único defeito desta faixa, que poderia muito bem ganhar status de single, é o tempo de duração. 2 minutos e 35 segundos, algo que faz até certo sentido. Como o amor de uma noite, Rosalía encanta e vai embora. Sem meias palavras.
Sendo bem sincero? Não faz tanta diferença assim no percurso. ‘CUUUUuuuuuute’ parece, na verdade, que é duas faixas em sua só. A primeira, faz uma introdução quase sussurrada. A outra, sem qualquer pudor, canta a plenos pulmões. É uma música que, de certa forma, afasta Rosalía do pop e talvez vá servir muito mais àqueles que ouvidos já acostumados à ousadia do experimental.
Os arranjos começam tímidos e vão crescendo em ‘COMO UN G’. É uma canção apaixonada, que não mede consequências e filosofa sobre o amor romântico em sua essência. “Amor só se paga com amor/eu não te devo nada e você não me deve também/A vontade que não se sacia, onde acaba?/Se eu encontrar a sua [vontade], pagaremos a dívida”, diz o refrão.
Outro interlúdio. Aqui, Rosalía brinca com as palavras, em geral escolhas que se entrelaçam ao universo que busca compor neste novo disco. É uma espécie de poesia improvisada, disforme, levemente chistosa.
Feita para as pistas da América Latina. É notório como ‘LA COMBI VERSACE’ se apresenta de forma superior a “Linda”, dembow lançado em 2021. Juntas, Rosalía e a cantora dominicana Tokischa parecem ter tido mais tempo de trabalhar essa união que pode e deve atingir o topo das paradas. É uma música com ginga, com uma batida irresistível e que toma para si a função de abrir as pistas. É para ouvir em alto e bom som pelas ruas enquanto se passeia em um conversível, afinal… ostentação é a palavra.
Lembra muito um recurso utilizado pela Björk em “There’s More To Life Than This”, faixa do álbum autointitulado lançado há exatos 30 anos. Afastada dos palcos, Rosalía dá início à música como se cantasse para uma imensa audiência. A mescla de estúdio e ao vivo constroi uma faixa sensorial que possibilita visualizar a beleza das coisas mais simples. Vem daí a referência às cerejeiras japonesas, chamadas de ‘sakura’. É um fim que pode ser o inverso, quem sabe até simbolizar um recomeço.
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“MOTOMAMI” está disponível em todas as plataformas de música. Ouça já no seu tocador!
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