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A “Fúria” de Urias: “transformo a tristeza em raiva e saio chutando as portas que se fecham”
Se traduzir emoções em arte é a missão de um artista, Urias usou de seu dom para falar sobre o sentimento de fúria em seu primeiro álbum. Nesta quinta-feira (13), a artista completou o lançamento do disco e, oito meses após a primeira parcela de músicas, disponibilizou a segunda parte em todas as plataformas digitais. Em treze faixas, expõe detalhadamente o sentimento impetuoso e o desdobra em temas como o preconceito, relações pessoais, julgamentos externos, além de o aplicar em momentos de introspecção.
Recentemente, em mais um passo para a divulgação de “Fúria”, a cantora, que já havia lançado registros visuais para canções como “Racha” e “Foi Mal”, liberou o videoclipe de “Tanto Faz”, que acompanha a estética preto e branco da nova era. Em uma entrevista exclusiva ao Papel Pop, Urias falou sobre o lançamento, a mensagem que precede o álbum, a identidade que criou por meio da moda, as atitudes que toma quando está em momentos de fúria e como transforma o sentimento em arte.
Confira o videoclipe e, abaixo, a entrevista na íntegra:
O sentimento de fúria, algumas vezes, faz a gente incorporar uma ‘persona’ e tomar algumas atitudes que não tomaríamos em estado ‘normal’. Quando furiosa, qual é a atitude que você tem de ‘fora da casinha’? Quebra pratos igual a uma Helena do Manoel Carlos? O que rola?
Não, eu não tenho dinheiro pra isso não (risos). Eu não posso sair dando a louca e tendo raiva em todo lugar, não tenho esse privilégio. Eu escrevi esse álbum com um acúmulo desse sentimento, falando coisas que, às vezes, no dia a dia, eu não sou escutada. Escrever e compor tem sido um grande escape desse estado de mente, eu diria. Calculista é uma palavra forte, mas eu acho que calculo bem minhas ações.
A primeira parte de “Fúria” foi lançada em maio de 2021 e agora, quase um ano depois, você está lançando o álbum completo. Por que foi importante dividir o disco em dois atos?
Eu queria que as pessoas ouvissem mesmo o álbum, como hoje em dia escutam uma música sua e daqui a quatro dias já estão pedindo uma nova, eu não achei que se lançasse um álbum inteiro elas iriam escutar ele com o tempo que eu queria que escutassem, sabe? Hoje em dia é tudo muito rápido e as pessoas não param para pensar no conjunto das coisas de tantos singles, singles e singles. Eu sou uma mulher de álbuns. Dos artistas que eu gosto, paro e escuto o álbum inteiro. Lançar em duas partes também foi um conselho da minha equipe por causa dos streamings, para entender como seria a recepção da primeira parte.
No intervalo entre os dois lançamentos, teve alguma música que acabou entrando depois ou alguma que ficou de fora na versão final?
Com o adiamento, ele seria lançado em dezembro, foram entrando músicas que eu queria colocar e, consequentemente, músicas que eu já queria tirar. Teve faixas que eu voltei, botei de novo.
Quero exemplos, Urias
Por exemplo, “Explícito” é uma música da época que eu escrevi meu primeiro EP. A gente começou a escrever e decidiu não lançar. Não ia ter feat, não ia ter nada, a gente só escreveu. Na época, eu não era madura o suficiente para estar falando aquilo, naquele momento. Quando conversamos sobre o CD, eu pensei “nossa, podia ter uma música mais sensual, né?” e aí a gente lembrou de “Explícito”.
Teve também “Tudo Meu”, que entrou por último. O Maffalda (produtor musical) me mandou a base que ele tinha feito, quando ele me mandou, eu falei “eu vou escrever em cima dessa base agora!”. Foi uma das últimas que entrou, em dezembro, inclusive. Essa música significa muito para mim.
Na primeira parte, é possível ver o sentimento de fúria se desdobrar sobre alguns julgamentos ou subestimação vindo por parte da sociedade em relação às mulheres, o corpo trans e até mesmo uma análise mais introspectiva, como quando você reconhece alguns erros em “Foi Mal”. Como esse sentimento se desdobra na segunda parte?
Na segunda parte eu to mais séria, eu to falando de alguns outros tipos de sentimentos, eu falo sobre solidão — sob um ponto de vista de raiva também. A vibe tá mais densa nessa segunda parte, sabe? Eu meio que pensei “Ai, eu vou falar”, eu estava cansada de me segurar, de dar um passo para trás até na minha música ou de pensar sobre o que iam achar. É como uma frase que minha mãe sempre fala: “Você pode até não se importar com o que as pessoas pensam, mas o que as pessoas pensam importa”. Essas coisas afetam a gente e eu comecei a pensar nesse lado de liberar a fúria mesmo. Não diria um desabafo, mas foi um largar de mãos, foi um: “olha gente, é isso aqui. Interpretem do jeito que quiserem, não é minha responsabilidade o jeito que vocês vão interpretar”. Foi um jeito de aliviar um peso nas minhas costas.
Em “Aposta”, a mensagem fica bem clara para aqueles caras que vão atrás de você por algum tipo de status, como se fosse uma recompensa ou um prêmio a conquistar. Depois de ter estourado você tem lidado com muitos desse tipo? Como você faz para distinguir o que tá com você na real e o que está por algum tipo de interesse?
Eu não tenho lidado muito com caras (risos). Eu pensei “agora vou ficar conhecida, agora acabou”, mas não tenho lidado muito com isso, não. Mas (a faixa) é um reflexo disso também, às vezes eu deixo de lidar por não saber o que o cara tá querendo. Não só nesse âmbito, você deixa de deixar muita gente entrar na sua vida por causa disso, você começa a duvidar de muita coisa. Eu já não tenho lidado muito com uns caras, aí pra lidar com esse tipo, eu prefiro ficar de boa aqui na minha.
No caso de “Aposta”, não é o caso de interesse desse tipo, é o caso de um cara que vive a mesma vida que eu, no sentido profissional. É no sentido de me ter como um prêmio e ficar me exibindo. Eu como uma pessoa trans, sempre estranhei muito isso, por isso escrevi essa música, porque geralmente eu sou escondida, né? Os caras saem comigo escondido, minha vida inteira foi assim. Você acaba abraçando isso porque é o tipo de afeto que você tem. Se eu percebo (essas atitudes) do cara, eu mostro pra ele que ele não vai ter isso, sabe? E aí eu vejo se permanece ou não, geralmente não.
Você sempre teve uma ligação muito forte com a moda e na parte visual desse novo trabalho os looks estão impecáveis. Como foi chegar a essa identidade? A ideia de como você gostaria de se apresentar nesta era foi algo claro desde o início do processo criativo?
Quando se trata de looks, eu pego o projeto no geral, decido o tema, decido como vou fazer imageticamente para as pessoa entenderem sinais e interpretar de suas maneiras. Uma coisa vai trazendo a outra, vou viajando, muito chapadona. Nesse álbum eu quis trazer (a estética) mais para o humano, mas, em contraposto, quis usar animais para representar a raiva. Pessoas do meu recorte são muito animalizadas e eu quis que os animais representassem esses sentimentos.
Consequentemente, no look, eu sabia que ia querer uma silhueta de corpo mesmo, a gente se inspirou muito em coisas da atualidade, eu diria, em Mugler, Givenchy, que sempre exaltaram a silhueta feminina. Essa foi a direção que a gente tomou. Como começamos a trabalhar a estética preto e branco, começamos a pensar em brincar com texturas, às vezes felpudo, látex, cristais, para trazer a sensação de toque para quem está assistindo, além do mistério de saber como é tocar.
O interlude, ao que parece, vem de uma conversa pessoal com uma amiga. Nele, você passa uma mensagem muito clara, fala sobre toda a dedicação e suor que você coloca no trabalho, mas também percebe que o caminho que você precisa percorrer é mais longo que o de outras pessoas. O que estava rolando no momento em que o áudio foi gravado? Por que esse é o interlude do seu primeiro álbum?
Esse áudio é de uma conversa minha com uma amiga que se chama Ode, que também é travesti, que também é preta, é curadora de arte e muito novinha — deve ter seus 23 anos. Ela já fez muita coisa na vida, já fez exposição no MASP, já foi diretora da Dazed, já fez muita coisa. Ela estava me reclamando muito sobre o reconhecimento do trabalho dela, que ela nunca seria reconhecida na academia de arte do jeito que pessoas que fazem um trabalho muito menor e muito menos significativo que o dela faziam. O meio de arte é completamente branco, elitista, cis e heteronormativo e cheio de grana. E eu falei pra ela que eu estava cansada de ficar triste, eu disse: “Eu estou com raiva agora”. O áudio sou eu explicando para ela. Eu transformo essa tristeza em raiva e saio chutando as portas que fecham.
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