No clipe de “VIVIR ASÍ ES MORIR DE AMOR”, a cantora argentina Nathy Peluso usa um figurino vermelho da cabeça aos pés. Ela baixa a guarda ao se ver no centro de um jogo ilusório, que lembra em parte a jornada de Alice no País das Maravilhas. Tudo, é claro, não passa de uma metáfora visual para o amor não correspondido, tema da faixa gravada originalmente pelo cantor espanhol Camilo Sesto e agora resgatada, mais de 40 anos depois, com arranjos modernos.
Em entrevista a este mesmo site, Peluso comentou no início de 2021 sua estética extravagante. Defensora da ideia de que a elegância é um trunfo pessoal e intransferível e que mulheres são donas da própria narrativa, a artista comentou a relação que mantém com as perucas, símbolo de empoderamento no universo hip hop e responsáveis por fazê-la escrever versos como “Mira qué elegante visto Prada con rulero”.
“As perucas tomam cada vez mais espaço no meu trabalho porque me dão o poder de me transformar em várias outras mulheres”, disse, referindo-se especificamente a outra canção do repertório, “SANA SANA”. “Tenho bastante cuidado com elas e fui criando uma rede nômade, de gente que me ensina coisas novas pelas cidades em que fico. Barcelona, Buenos Aires, Miami”.
A mesma persona de “VIVIR ASÍ ES MORIR DE AMOR” ecoa em outra releitura: para a série Spotify Singles ela interpretou “La Despedida”, clássico de Daddy Yankee, agora inspirado pela estética pop. A liberdade criativa que garante a existência de personagens tão distintas, perpassadas tanto pela vulnerabilidade, quanto pelo femme fatale, só é possível graças a um desejo constante de estar no front. Para isso, é preciso radicalizar.
O pavio fulminante é quem dá munição a “Mafiosa”, salsa lançada em julho deste ano.
Criada no bairro de Saavedra, em Buenos Aires, Peluso ouvia em casa música clássica e tradicional latino-americana, referências que hoje, de diversas maneiras, influenciam na criação da faixa. Coube também a ela elevar suas produções audiovisuais a um novo patamar a partir do emprego de planos sequência e atuações que. juntas, destacaram ainda sua relação com o teatro.
Na turnê de “CALAMBRE”, que teve datas esgotadas na Espanha, a canção acabou reservando para si um momento emblemático. Disposta logo no encerramento do show, traz logo na introdução um número sensual com rosas vermelhas, uma espécie de tributo às artistas que, décadas antes, roubaram a cena nos salões de salsa.
Se é para ser o que quiser, em “Mafiosa” Nathy Peluso assume a pele de uma mulher que mete medo em seus eventuais parceiros por não aceitar jogos abusivos e apontar o dedo, quanto necessário, na cara da submissão. Ela quebra pratos, faz algazarra no trânsito e dança sozinha, lembrando que é melhor estar “só do que mal acompanhada”. Lidera, sem pestanejar, uma convocação feminista pela autoconfiança.
“Ponho a mão no fogo que, se me revelasse uma mulher insegura, receberia muito menos hate“, escreveu no fim de novembro em seu perfil no Twitter. “Está muito claro que incomoda bem mais uma mulher que se sente bem, querem fazê-la se sentir mal exatamente por isso. Ainda bem que desprezo os demais e nem três caminhões são capazes de me derrubar”.
O fato é que “Mafiosa” é apenas um dos grandes êxitos da artista argentina que, anos após imigrar com os pais, começou a cantar nas ruas e bares de Barcelona em períodos de folga dos trabalhos temporários que arranjava. Com frequência, Peluso pedia atenção dos transeuntes pouco interessados em suas poesias e improvisos. Mas se no Latin Grammy 2020, durante uma cerimônia gravada e pouco entusiasmada, ela brilhou ao lado do veterano Fito Páez na cúpula do Centro Cultural Kirchner, desta vez conseguiu ainda mais: saiu vitoriosa.
“A primeira coisa que me lembro, como símbolo [de vitória] foi quando subi ao palco certa vez e as pessoas todas cantavam minha canção aos berros”, relata em tom bem-humorado, durante capítulo de série encomendada pela revista norte-americana Billboard, meses antes. “Todos sabiam a letra e eu não estava acostumada. Me senti famosa, foi estranhíssimo”.
“CALAMBRE”, sua estreia internacional, demorou alguns meses para romper os limites do Cone Sul e da Península Ibérica. Com “DELITO” tocando à exaustão nas rádios e despontando em posições significativas no streaming, venceu o troféu de Melhor Álbum de Música Alternativa no Grammy Latino deste ano, desbancando veteranos como o grupo colombiano Aterciopelados. Nos Premios Gardel, os mais importantes da música na Argentina, levou outros quatro troféus.
“Você tem que ser grato pelo dom com que nasceu, todos temos um”, diz a cantora no mesmo documentário. “E saber ter responsabilidade quanto a isso, concluir esta missão”.
Se uma mudança para Madrid na década passada significou um giro de 360º em suas ambições profissionais, a parceria com um madrileño firmada em 2021 terminou por preencher seu “bingo das artes”. A última pedra sorteada era a controvérsia. A convite do espanhol C. Tangana, Nathy Peluso desafiou o conservadorismo e a Igreja Católica espanhola ao lançar “Ateo”. A bachata, que funde os universos sagrado e profano, é mais uma produção de Rafael Arcaute, frequente colaborador de ambos.
Gravado na Catedral Primada de Toledo, na capital da histórica região de Castilla-La Mancha, o clipe se centra nos conceitos de desejo e devoção para abordar as concepções de paixão e privacidade dos intérpretes, que são simbolicamente violadas durante seu encontro em uma das naves principais do edifício.
Enquanto dançam de forma sutilmente erótica e desafiam a imprensa amarela, eles também são observados por um grupo de religiosos que se esconde entre as colunas, atônitos ao ouvir versos como “Eu era ateu, agora creio/porque um milagre como você só tinha que cair do céu“.
Entre referências que o material contempla estão a Medusa do escultor argentino Luciano Garbati, que carrega a cabeça decapitada de Perseu.
A fundamentação artística e as muitas mensagens implícitas no roteiro não foram suficientes para impedir o estouro de uma guerra barulhenta, marcada pela publicação de comunicados assinados por membros do clero. Mesmo reconhecendo o teor provocativo da obra, o deão Juan Miguel Ferrer justificou a realização do clipe dizendo, a princípio, que “a certas atitudes de intolerância se contrapõem a compreensão e a acolhida da Igreja, tal e como se manifestam nas sequências finais do clipe, que apresenta a história de uma conversão mediante o amor humano”.
Sua afirmação de que a Catedral Primada “vinha procurando manter um diálogo sincero com as manifestações culturais do momento” foi rebatida, no entanto, pelo arcebispo de Toledo, Francisco Cerro, que veio a público dias depois pedir desculpas aos fieis pela realização das filmagens nas dependências. Uma missa chegou a ser celebrada no espaço logo em seguida e a demissão de Ferrer foi aceita pela cúpula da Igreja.
No TikTok, ao contrário, os millenials abraçaram mais um desafio proposto pela cantora. Ainda que os números e o engajamento não sejam um fator determinante para uma artista tão comprometida com o fazer, estes mesmos mostraram que a intolerância não criou raízes onde mais desejava. Mais do que qualquer outra pessoa, Nathy Peluso sabe que é preciso seguir trabalhando com leveza, mas, claro, sem perder de vista as regras do jogo.
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