Em uma das cenas do filme “O Nascimento de Vênus Tour“, a cantora e compositora Filipe Catto ordena transformações e conclama “uma revolução total no vazio”. Ela se veste de sereia com uma cauda de aproximadamente 1,20m de comprimento para criar uma performance visual que se mistura ao áudio de um show gravado em São Paulo, em março de 2020.
Sob a alta voltagem da personagem, um dos seres mais controversos e encantadores da mitologia, faz o próprio disco de rock.
O projeto, disponível em áudio em todas as plataformas de música a partir deste fim de semana, sobrepõe imagens de palco, bastidores e estúdio com a intenção de moldar uma narrativa em que Catto repassa sua emancipação como pessoa trans não binária. Para isso, a artista gaúcha reuniu na companhia de nomes como o produtor Felipe Puperi um repertório que vai desde canções autorais a composições de Tchaikovsky, António Variações, Banda Eva e Gang 90.
Mesmo encerrada precocemente, a “Vênus Tour” não deu só o pontapé em um capítulo de sua trajetória pessoal. Hoje ela também revela o cume de suas experimentações audiovisuais, redirecionadas pelas próprias mãos ao longo dos últimos dois anos.
Isolada em casa, a artista idealizou “Love Catto Live”, série de apresentações virtuais e temáticas que mais se assemelhava a um karaokê. Nomes como Zélia Duncan e Johnny Hooker se juntaram à aventura noturna, que seguiu semana após semana até que, em outubro deste ano, se transformou em espetáculo presencial. Uma temporada de shows no Sesc teve ingressos esgotados.
Em outras palavras, a “latin drama superstar” viveu, diante das câmeras, a própria metamorfose pela liberdade. Nesta entrevista, feita por telefone, Catto fala sobre a glória de encontrar a própria turma, a profusão de referências de que se serve e as desventuras do Brasil chiquérrimo.
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Papelpop: Você diria que 2021 foi o seu ano?
Filipe Catto: Eu acho que foi. Foi um ano em que eu dei tudo de mim, sabe? [risos] Foi um período em que eu pude botar em prática, com as minhas mãos e as mãos dos meus parceiros, amigos e colaboradores, uma parada de realização. Durante muito tempo eu tive muita dificuldade de fazer vídeos, espetáculos, de produzir discos. Sempre foi uma coisa que tava baseada na coisa da grana, assim. Não é mais a nossa realidade, né? Toda a situação da pandemia, essa experimentação que se deu ali em 2020 que nos levou a dizer ‘Vamos pro YouTube só com uma câmera tosca e cantar karaokê, vamos ficar bem louca?’, isso me deu uma libertação na questão estética. Sempre fui muito cuidadosa com o meu trabalho na parada do acabamento. Eu sou bem estética, sou libriana, e o cenário anterior me deixava com um pouco de dedos. Era um outro mundo.
O próprio “Vênus Tour” não era pra ser.
Sim! Senti que a gente botou a mão na massa e fez do impossível… magia. Não pensávamos em gravar um disco ao vivo, mas a gente viu que aquilo ali ia ser um momento, gravamos em canais separados e passamos todo esse tempo trancados, trabalhando, usando esse lugar pra exercitar linguagens em todas as ferramentas de vídeo, áudio, fotografia, moda. O audiovisual, a produção, caiu no nosso colo agora. Eu saí muito fortalecida da pandemia pela união que firmei com as pessoas, esse ganho de colaborações com quem acompanha o meu trabalho é muito foda, muito poderoso. Então, foi o meu ano, sim. Foi o ano que mais fiz coisas que eu amo, pude me sentir poderosa depois de tanta impotência, tanta merda, tanta paulada na moleira que a gente levou, senti que eu de alguma forma, todo esse processo artístico tinha que me levar pra uma emancipação, pra um lugar de não temer os desgovernos desse país, que estão longe de ser a única crise que a gente vai ter. Eu tava muito insatisfeita com o meu lugar de vulnerabilidade dentro desse espaço.
Eu ia mesmo te perguntar algo nesse sentido. Perdemos [a ativista e pensadora] bell hooks dias atrás e várias frases ganharam repercussão. Em uma delas, bastante simbólica, a autora diz que ser uma pessoa queer está muito além do gênero da pessoa com a qual a gente se relaciona, que isso é na verdade “um estado de desacordo com tudo ao nosso redor e a necessidade de inventar, criar e encontrar um lugar para falar, prosperar e viver”. Sente que encontrou esse lugar?
Sim. Eu acredito que se descortinou um novo olhar cultural pro espaço que a gente habita. Porque são muitos os espaços da música e da arte que a gente habita. Embora digam o contrário muitas vezes, nós, que estamos tão marginalizadas, não podemos sonhar. E esse ato de sonhar precisa acontecer exatamente no momento em que a gente estiver com os dois pés no chão, sabendo onde estamos pisando. Eu não quero sonhar e dizer ‘Vamos ser amigos, tá tudo muito lindo’. Esse sonho não me serve mais, sabe? Esta é uma década e uma época que vai nos lembrar pelo resto da nossa vida que nunca vamos poder deitar a cabeça. Vamos sempre ter que lembrar às futuras gerações tudo que a gente viveu, o que estamos enfrentando aqui e agora. Lembrar como sempre foi, na verdade, a historia da nossa comunidade. Mas a gente também ganhou profundidade e pesquisa, agora sabemos que a gente não tem que caber no modelo de ideia do outro, que temos as nossas próprias ideias. Temos as nossas divas, ícones, símbolos culturais. Temos a nossa comunidade, que tem um poder que vai muito além das fronteiras geográficas. Vejo a Argentina, o Chile, todos estão dialogando com o Brasil nesse espaço de resistência. Os jovens do mundo inteiro estão nesse questionamento e é uma coisa muito poderosa. Olhando por esse lugar, fico muito feliz de ter encontrado minha turma e perceber que ela me sustenta, nutre e me dá liberdade de experimentar. É tão libertador você se vestir de sereia e fazer uma lombra estética e saber que isso vai atingir o coração de alguém com amor e não com preconceito. Eu não tenho mais tempo de vida pra ficar tentando convencer as pessoas de qualquer coisa, tenho muito mais vontade de compartilhar com as crianças viadas que somos, fomos e estamos criando porque é o nosso mundo que nos faz ser quem somos. É um momento do Brasil que nunca vi a cultura nacional assim, tão monocultural. Mas teve toda essa parada de cura pela transgressão de gênero e é transgressão que move a gente.
Você assume a persona de uma sereia ao longo do filme. Por que escolher essa personagem?
Existe uma profundidade muito grande nesse mito, que se relaciona com quem nós somos, com as nossas identidades híbridas. Não consigo me ver no polo binário, não me considero uma mulher trans. Sou uma pessoa trans não binária, acho a não binariedade uma coisa revolucionária. Eu prefiro o uso de pronomes femininos, me vejo tanto no feminino, mas ao mesmo tempo não me defino como mulher porque os códigos não condizem com o que eu sou. Logo, a sereia mostra uma realidade parecida, é um personagem que diz ‘Não estou transicionando para um outro lado, não estou em processo disso. Vou assumir o que sou, a minha estranheza, a minha diferença’. Acho bonito estar ‘in between’ [‘entre’, em tradução literal]. A transformação já aconteceu e ao mesmo tempo sempre fui a mesma pessoa. Quanto mais fui me afeminando, mais fui experimentando o universo feminino, mais corri pros meus códigos encontrando um outro tipo de vaidade. Parece que estou 24h/dia montada em casa, mas não, tenho pavor [risos]. A beleza que eu buscava e sempre busquei dentro do meu trabalho foi a beleza da transgressão. O mais bonito da sereia é que ela é bonita, mas ao mesmo tempo perigosa. Ela é uma arma, uma personagem dual, monstruosa, fantástica, estranha, bonita, feia. Fake! Isso é uma coisa que a gente queria criar, algo que contemplasse essa viagem do real e do ilusório. Tem muita realidade e piração naquele show, que não foi gravado ali. Não diz respeito a aparências, mas, sim, a assumir a nossa cara, o nosso jeito, as imperfeições, as dores, tudo. A beleza é o processo.
Ser artista hoje é também enfrentar sentimentos contraditórios. Concorda?
A vida é isso, né? A gente que é artista, e eu digo isso porque você também é, você escreve, pesquisa, constrói… cada um tem a sua arte e essa palavra foi ressignificada. Cada um tem uma habilidade, uma função, uma beleza. Mas ser artista hoje pra mim, mais importante é saber que a sua obra tem que estar a serviço de algum tipo de representatividade no mundo. Eu também sou roteirista e editora desse filme e tem toda uma parada de fazer artesanalmente, além de performar diante das lentes dos co-diretores, Juliana Robin e do Daguito Rodrigues, usando as peças da Alma Negrot. O fazer coletivo acaba sendo uma das coisas que mais me moveu durante o processo desse filme. Quando a gente é criança a gente não tem separação das coisas, brincar, divertir, produzir. A brincadeira é chamada de ‘arte’. A gente vira uma máquina de ego trip e perde contato com a coisa mais lúdica que é se encontrar. Eu amo encontrar minhas irmãs e brincar de boneca com elas [risos]. Sabe quando você encontra pessoas que falam a sua língua? É uma diversão, a gente ri horas das lombras que a gente faz. O gostoso é produzir. O resultado pouco importa, estamos num momento de fazer.
A sua forma de dialogar com o público nas redes é muito singular. Tem total a ver com esse fazer compartilhado.
A internet é um lugar que nos permite pirar em coisas muito diferentes. Mas eu não me atraio mais por essa narrativa de bater tantos recordes. Nem ouço, nem conheço o que está nos charts, não me atinge. Tem outros mundos que não são esse mundo dos números superexpostos. Tem outros tipos de influencers e, cá entre nós, eu tô muito satisfeita. Faz muito tempo que tô trabalhando organicamente com as minhas redes, já tentei fazer esse corre neoliberalista com o meu trabalho, mas tudo acaba se tornando um poço de frustração. Na hora que você bota R$ 1 [pra impulsionar os conteúdos], acabou a sua audiência orgânica. Como sobreviver? Vai ter que ser na verdade, na cara de pau.
Você não se rendeu ao TikTok, algo que parece ter virado uma obrigação pra maioria dos artistas. Por quê?
Eu ainda não tive tempo de entrar lá. Eu sou uma artesã, tenho trabalhado muito e nesse momento dou mais atenção ao meu projeto, que é um serviço, uma oferenda feita pro público. Vou chegar na plataforma, mas quero fazer [vídeos] pra me divertir, só não sei ainda sobre o quê. Não sei se estou sendo a bruxa da floresta que não se comunica mais com o mundo, mas acho também que temos que cair na real e saber que não é só isso. O palco voltou agora e tô feliz, isso dá uma assentada nas coisas. Eu acho engraçado… Tem muita gente que não tem tanto alcance nas redes, mas que consegue um público bacana em cena. A vida real tá chamando a gente na real. O TikTok é uma coisa divertida, mas tem que dar devido valor, devida proporção às coisas. Você não pode virar um escravo das redes sociais, até faço um questionamento: será que a gente precisa crescer tanto assim? Será que não chega uma hora em que você consegue criar um número, circular, fidelizar, aprofundar, ter uma rede de segurança pra produzir o seu trabalho com integridade, verdade e beleza? Existem outras maneiras de viver nesses lugares. Cada um faz o que acha bom pra si, tem gente que tem muito talento pra vender, que quer fazer produto, que sabe como fazer marketing. Acho lindo e chique, mas é importante lembrar também que a gente veio de uma narrativa artística da última década em que existia um culto ao artista empreendedor. Empreendedorismo meu cu, sabe? Tem uma parte da arte em que alguém tem que fazer, você precisa sentar e sofrer e escrever suas canções. Que a arte não seja só uma coisa pra promover a sua figura nas redes sociais, isso tem que partir de um lugar genuinamente interior. Vi dias atrás uma apresentação da Bruxa Cósmica, aquilo é arte pura! Os trabalhos da Alma Negrot são arte, eles tem toda uma linguagem atual, mas ao mesmo tempo trazem tanto sangue nos olhos… Isso me seduz. Tomara que essa galera fique rica, quero que elas ganhem US$ 1 bilhão. Porque acima de tudo, pra fazer um trabalho como esse no Brasil você não pode ter o rabo preso. A gente viu o que foi essa pandemia, um genocídio acontecendo e as pessoas quietas. Pra mim houve um corte. Não consigo achar tudo normal, aceitar que o mundo corporativo, o bussiness e o marketing sejam capazes de garantir que as pessoas tenham pudor de se expressar como artistas e com cidadãos. Tem muita gente foda aparecendo hoje no Brasil, mas fico pensando no que a Madonna fez no auge da AIDS, ter o culhão de fazer o que ela fez…
… Colocar um folheto informativo sobre o HIV no encarte de um disco, destinar a renda de um show da “Blond Ambition Tour” pra instituições voltadas pra a epidemia no ato, no momento em que ela acontecia. Não tinha pink money, pelo contrário.
Exato. Por mais marketeira e mercadológica que ela seja, ela sempre trouxe a transgressão no próprio trabalho. Mas aqui a gente vive numa colônia conservadora e religiosa, logo, a transgressão é sempre mal vista. Mesmo aqueles artistas que têm muito empoderamento dizem com frequência que precisam higienizar a imagem, podar o discurso quando entram numa bolha mainstream. A instituições do Brasil têm um compromisso sem fim com a caretice, diferente do povo brasileiro que é louco, que adora uma putaria, um Ney Matogrosso, uma Maria Bethânia, uma Rita Lee. O que nos cerca foi ficando cada vez mais mais perverso, mais careta, mais sedento por dinheiro, menos comprometido com a arte.
Você citou há pouco Alma Negrot, que eu diria ser um dos nomes mais importantes da moda e das artes hoje. Ao longo dos últimos anos foram muitas as suas colaborações com ela. Quais figurinos mais te marcaram, quais considera como verdadeiros amuletos?
Olha, eu digo sempre: uma roupa em cena é um cenário, um figurino diz tudo. Então, com certeza, eu escolheria o figurino do “Vênus Tour”, com a calça de sereia. É uma coisa que vou levar sempre pela minha vida, me deixou belíssima naquele momento [risos]. À medida que eu comecei a ter mais contato com a comunidade, conhecer esse lugar em que as nossas amigas são todas costureiras, modistas, percebi que eu gosto muito da safra da moda que tá rolando agora. Fazia muito tempo que a gente não via no Brasil tantos coletivos e marcas pequenas que são criativos e com muitas peças focadas em espaços diversos, maravilhosos. Isso nos proporciona trocas muito boas. Sempre que eu penso num projeto, o figurino já faz parte dos estágios iniciais de criação. Agora, quando estou compondo, já imagino o que quero vestir num futuro clipe, numa performance. Faço o exercício mesmo de me perguntar ‘Qual é a história que vamos contar?’. E aí você pesquisa, pensa com como traduzir a estética de tudo. O disco meio que entra no seu guarda-roupa. Lembrei também de um macacão da MAISONARTC que eu usei esses dias, todo bordado, ele é uma joia. Tenho ainda um kaftan que foi da Elke Maravilha, que ela usava pra ficar em casa e foi comprado num bazar, tá todo queimado de cigarro. Ele diz muito da minha personalidade. Eu sou um kaftan todo furado pelos cigarros [risos].
A obra da Taciana Barros e da própria Gang 90 & Absurdetes chegou até mim graças a você pela gravação de “Do Fundo do Coração” (2015) e sinto que a sua curadoria sempre teve essa função didática. “Love Catto Live” mostrou isso ao empregar uma quantidade alucinada de canções que são pedras fundamentais. Você também se vê nessa posição de apresentar coisas novas, que na verdade não são tão novas [risos]?
Os arranjos do Felipe Puperi pras músicas que não são do disco ‘CATTO’, mas que entraram no setlist da tour ficaram maravilhosos, deram outra dimensão. Mas, naturalmente, eu sempre gostei da palavra ‘educação’, de buscar coisas muito diferentes. Essa experiência das lives foi muito esclarecedora pra mim e pro meu público, pra entender qual era a minha viagem. A galera dizia ‘Ah, mas ela é cantora, compositora, canta Fábio Jr. e Marina?’. Parece óbvio, mas as pessoas não tem essa consciência, digo, dos muitos espectros em que a gente pode estar. Esse meu mundo pessoal é afim dessas canções da MPB, sempre fui atrás de bandas que as pessoas não conheciam, que poucos ouviam. Sim, ela era era punkzona desde sempre. E nessas tenho uma afinidade pelo repertório da galera underground no Brasil, tem uma cena estabelecida com Júlio Barroso, Taciana, os novos compositores todos, mesmo a própria Marina. Ela é uma artista pop, mas com um repertório extremamente fora do padrão, ela cria essa parada, do mesmo jeito que uma Angela Ro Ro. Ela é conhecida, claro, mas se você pega a discografia a fundo não chega ao povão. Hoje também penso muito nas características que levam alguém ou não a fazer sentido. O Getúlio Abelha mesmo… a bicha vai num programa de forrozão montada e tira uma onda, ninguém entende nada. As pessoas não sabem se riem ou se choram, ele dá um golpe na gente por ser punk e ao mesmo tempo empregando todo um drama. Pensando na pluralidade de ser curadora, é bom mostrar como o diferente combina, como as coisas antagônicas não são tão antagônicas assim, elas fazem parte das mesmas ideias. A gente é que é foi treinado durante toda uma vida pra ver preto X branco, bem X mal, feito X bonito. O que existe é uma mistura de todas as coisas juntas.
O brega, não só enquanto sonoridade, mas também como conceito, tem vivido um momento interessante e você estava lá desde o início quando regravou “Garçom” no seu primeiro disco. Nas suas lives você resgatou outras canções de mulheres icônicas, recentemente chegou a cantar Simone. Como você vê esse movimento em que o que antes era considerado cafona passa a ser objeto de interesse?
Eu tenho muito respeito por essas cantoras, por Simone, Deborah Blando, Rosana… Estamos em um momento de rever a nossa história, os nossos conceitos de bom e ruim, de talento ou da falta dele. E isso não importa porque a nossa cultura é essa. Sinto que a nossa geração começou finalmente a falar com as nossas linguagens e sobre os nossos códigos. Nós não vivemos a Tropicália, mas estávamos até há pouco reproduzindo e fritando os conceitos criados ali. Acho importantíssimo saber disso, faz parte de todos nós, mas a gente também nasceu vendo novela ‘Vamp’. Essa coisa do deboche, do humor, do escracho, tem um ‘quê’ de trágico também. O brega carrega a tragicomédia em si, e isso é chiquérrimo. Nunca consegui entender qual era a diferença do “Garçom” pra Maysa com “Meu Mundo Caiu”. Não queria sofisticar nada, nem precisa, mas pensava que tava fazendo algo no sentido de evocar cantoras de fossa que eu amava. Me inspirava nela, na Dolores Duran, na Nora Nei, na Elis Regina. Eu sou uma pomba gira brasileira, acendeu uma vela eu apareço e canto. Tudo hoje é tão brega, escancaradamente louco, eu acho que o conceito de ‘breguice’ nem existe mais, se existiu é porque houve uma cabeça por trás querendo regras que já não valem. Rola, na verdade, um preconceito contra a cultura popular, com coisas que são estranhas. Se você pega pra ver quem se dedica a esses trabalhos vai encontrar pessoas com muita atitude, cara de pau e que não tão nem aí ao fazer o próprio som. A Joelma não é brega, a Gretchen também não. É a síndrome de vira-lata batendo de frente com os trabalhos delas. É bonito valorizar todas essas outras camadas. Não tem filtro, as lives que fiz colocaram Eliana de Lima, PJ Harvey e Alcione juntas. Não tem nada mais legal do que ver alguém se divertindo e curtindo em cena. Me apaixono quando vejo algo assim. Essa discussão é uma coisa de outra época. O brega é a rainha do Brasil e a gente quer, sim, se jogar intensamente.
O seu repertório recente nos coloca diante da relação compositora/intérprete. No espetáculo “Metamorfoses” você canta “Seu Crime”, da Pabllo Vittar, e subverte significado e sonoridade. Fazer isso é uma tarefa desafiadora, divertida?
Foi intuitiva. Quando eu pensei no Metamorfoses, queríamos fazer um cruzamento do universo da Madalena Schwartz e o que está acontecendo hoje. A viagem era falar desse universo de desbunde e de tudo o que acontecia naquela época, retratados nas fotografias, mas fazendo um recorte. Mas fazer um show só cantando clássicos dos anos 1970, eu não queria fazer. Isso já foi feito demais e eu queria celebrar a minha cultura de agora, achei uma forma linda de reverenciar esses processos que se mantém vivos porque é a mesma história. Foi comovente porque parecia um túnel com buracos de minhoca. Colocar Johnny Hooker e Pabllo Vittar foi uma forma de dizer ‘As bichas de hoje estão vivendo isso’. A própria Alma Negrot, que assina os figurinos, bebe muito na fonte do trabalho do Dzi Croquettes, faz um trabalho totalmente político. As nossas artes são assim. Incluir a Pabllo, que é a pessoa mais chique parida nessa terra, vamos combinar, foi também pelo fato de ela ser a autora das músicas nacionais com a maior importância em termos de representatividade. Me chamou muito a atenção o verso ‘Seu crime foi me amar’ e me fez pensar que nós, pessoas trans, vivemos sempre um amor proibido. A gente comete um crime só por querer amor. Só o sexo é permitido pra gente. Somos ótimas nisso, tudo bem. Mas essa coisa do respeito, do amor, do carinho, é algo que tá ali de uma forma muito singela. Senti a música com uma dor grande. Todo mundo já viveu essa história. É triste.
Já “Lua Deserta” é uma música autoral sua que subverte o sagrado e o profano ao trazer Jesus e Satã intercalando a mesma posição lírica. Sente que o conservadorismo e a culpa afetaram a liberdade artística com mais violência nos últimos tempos?
Não. Eu acho que não, sofria muito mais quando o mundo não tava nesse lugar. Tudo o que a gente foi descobrindo juntas, me deixou a sensação de uma libertação coletiva. tenho a sensação de que vivi uma libertação coletiva. Não seria nada sem a presença da Linn da Quebrada, da Liniker, de tantas outras. Fui descobrindo toda essa liberdade através do processo que fomos experimentando como grupo. Mas eu tenho muita liberdade por ter começado muito nova e ter um público que segura minha barra. Meu trabalho acontece com muito pé no chão, gosto muito de fazer o que eu faço e que isso tenha recortes pessoais. Nunca tive nenhum episódio de censura, nem senti que alguém me pressionou a fazer algo que eu não quisesse, mas cada vez mais, quanto a coisa apertou, mais havia uma urgência de deixar isso mais latente na minha obra. Foi assim com a vida, ficamos em casa durante dois anos. Tudo mudou, até a nossa saúde. Agora, quisemos criar muitas coisas porque queríamos traduzir esse momento, a ideia era deixar marcado pra que a gente olhasse no futuro e dissesse ‘Foi assim que aconteceu’.
Como manter a elegância no Brasil decadente?
Abraçando a tosqueira. Eu gosto muito de moda e de cultura e estamos ressignificando tudo no presente, inclusive, a nossa forma de se expressar. A elegância é algo que você determina, se alguém fizer isso por mim significa que não estou elegante. Mas essa definição também se aplica a ser você mesma e conviver com as pessoas de uma forma tranquila, encarar os dias com naturalidade, poder comer bem e dormir. A vida real ela é muito urgente e a elegância passa por isso de transformar o dia-a-dia num ritual de beleza. É muito mais sobre o bem-estar do que a beleza, quando você alcança isso, você fica tranquila. Mas quando começar a ir pro punk de novo, me chame!
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“O Nascimento de Vênus Tour”, segundo disco ao vivo de Filipe Catto, está disponível exclusivamente nas plataformas de música.
Um filme
MAISON CATTO-ROBIN
Em associação com
PILOTO FILMES
Direção e roteiro
CATTO LA CATT
DAGUITO RODRIGUES
JULIANA ROBIN
Câmeras
DAGUITO RODRIGUES
JULIANA ROBIN
edição
CATTO LA CATT
colorização
JULIANA ROBIN
Tratamento de áudio
DJ JOJO LONESTAR
Masterização
FLORENCIA SARAVIA-AKAMINE
Direção de fotografia
JULIANA ROBIN
VALENTINA GRISSEL
Iluminação e projeção
VALENTINA GRISSEL
Direção de arte
JULIANA ROBIN
Cenotécnico
DIEGO TEIXEIRA DOS SANTOS
Produção
SIL RIBAS
Produção executiva
EDITSY
Styling e beauty
ALMA NEGROT
Cauda sereia
SIRENUSA FINS BY THIA SGUOTI
Unhas
ROBERTA MUNIS
Acessórios
NART STUDIO
FARPADA
Cabelo
ROCKER PERUCAS
Câmeras estúdio
DAGUITO RODRIGUES
JULIANA ROBIN
Imagens de arquivo
DAGUITO RODRIGUES
LUAN KARDOSO
JOANA LINDA
KLAUDIA ALVAREZ
ALMA NEGROT
FABRÍCIO LIMA
LUCAS SILVESTRE
TVPE
GQ BRASIL
JOE NICOLAY
TUANE EGGERS
KIM COSTA NUNES
ANA PAULA VERISSIMO
ROMY POCZ
CBN
TAMI COSTA
E ACERVO PESSOAL
Com imagens de Georges Méliès
JEANNE D’ARC
A SEREIA
Gravado no ESTÚDIO IMAGINAR dia 31/07/2021
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