Quando estreou há dez anos, o Cultura Livre certamente não tinha a pretensão de se firmar como uma das obras fundamentais da televisão brasileira. No entanto, foi exatamente isso o que aconteceu. Exibido em canal aberto como nenhum outro programa de música e com a proposta de servir de altar para os sons populares, a atração comandada pela apresentadora e radialista Roberta Martinelli rompeu a bolha e se mostrou uma importante aliada em tempos de obscurantismo.
Resistiu, inclusive, à distância imposta às gravações. Atropelou ódio e desmontes. Pôs de lado a ameaça da monocultura que contradiz seu nome e significado.
Em 2021, o programa tem muito mais do que dez motivos para celebrar sua existência – um acontecimento que também reflete, por meio de sua solidez, a relação de confiança e afetividade criada com o público. Abaixo, você relembra apresentações que marcaram época, além de conferir as definições inspiradoras dadas por cada uma das convidadas ao termo que lhe dá nome.
“A voz do povo, a voz de cada um, a voz de todo mundo, a voz da Pangéia, a voz da entranha, a voz da invenção, da imaginação. Cultura livre, cultura em movimento, aqui, agora, nossa memória, nosso futuro”.
Em sua primeira participação no Cultura Livre, Ava Rocha apresentou o disco que lhe abriu portas para o mundo da música. Se antes ela já era uma profissional respeitada no audiovisual, com “Ava Patrya Yndia Yracema” a artista alçou seu nome ao olimpo da MPB ao fusionar letras inteligentes à singularidade da própria voz.
Sua segunda participação no programa com o excêntrico disco “Trança” também vale a pena ser assistida, mas o que faz de seu debut ser escolhido é justamente a crueza e o acalanto evocados por faixas como “Mar ao Fundo”, “Transeunte Coração” e “Você Não Vai Passar”. Com certeza, o ano de 2015 marcou uma nova era na música pop.
“É rua”.
O disco “Tropix” levou a música de Céu a um lugar mais eletrônico, experimental, ao mesmo tempo em que foi o responsável por popularizar seu som. Isso aconteceu em uma narrativa entrecruzada por relatos de amor e paisagens sinestésicas, que se desenrolam em faixas como “Perfume do Invisível”, “Arrastar-te-ei” e “Varanda Suspensa”. No palco do Cultura Livre, esses já clássicos de seu repertório autoral ganharam mais vida e embalaram uma performance que pouco tem de realista. Ouvir Céu é embarcar rumo a um outro universo.
“Se sentir pertencente ao seu tempo e, principalmente, abrir mão de algo ou alguém quando necessário”.
O discurso contundente e reflexivo de Jup do Bairro foi moldado muito antes de seu disco debut, lançado em 2020. Além das faixas de “Corpo Sem Juízo”, belíssimo projeto de estúdio que vai do punk rock ao hip hop, a artista paulistana escolheu para sua performance no Cultura Livre o single “Sinfonia do Corpo”, um poema musicado que, a despeito das métricas pop, apresenta uma melancólica dança com as palavras. Este foi sem dúvida um show para sentir os novos ventos, que sopram, ainda que tardiamente, a favor da diversidade.
“Beleza e glória”.
Mesmo tendo ficado de fora das principais listas de melhores do ano naquele 2017 (quem se importa, afinal?), o disco autointitulado da artista gaúcha Filipe Catto chegou para reafirmar muito mais do que seu próprio nome e identidade. Produzido por Felipe Puperi (Tagua Tagua) em uma relevante parceria, diga-se de passagem, o LP ganha ainda mais força ao vivo. Foi o que aconteceu no palco Cultura Livre. Diante de Roberta Martinelli e audiência, Catto tomou os ouvintes pela mão a fim de conduzi-los por uma viagem sensorial em que sereias, forças divinas e até mesmo o esmorecer do Brasil passam ao redor como um flash.
“Tudo que a gente precisa na música”.
Embora o disco “Voo Longe” tenha sido o grande responsável por revelar a cantora Illy, seu trabalho seguinte, “Te Adorando Pelo Avesso” (2020), chegou para reforçar a habilidade que tem como intérprete. Neste projeto dedicado integralmente à ídola Elis Regina, ela divide os vocais com Silva e Baco Exú do Blues, além de aprontar canções que, ora canônicas, se atualizam no discurso desta “verdadeira baiana”. Trata-se de uma explosão de sons e brasilidade inimaginável para os ouvidos mais caretas.
Na varanda de casa, a cantora fez um show que contempla a esperta salsa-mambo “Djanira” e a excelente versão de “Alô Alô, Marciano”. O clipe desta, aliás, é um espetáculo de arte!
“Necessária”.
O disco “Letrux em Noite de Climão” marcou uma época de intensa liberdade, predecessora do caos. Quem não viveu as histórias narradas em canções como “Vai Render” e “Coisa Banho de Mar” com certeza tirou um tempo para refletir a respeito de sua poesia urbana. São versos que, mesmo ambientados no Rio de Janeiro, caem como uma luva nas situações tragicômicas da noite. A jornada poética de Letícia Novaes e trupe elevou glamour e decadência a um outro estágio.
“Roberta Martinelli e sua sala de visitas deliciosa”.
Dançante acima de qualquer coisa, este programa com Tulipa Ruiz é um deleite para os amantes desta artista-bruxa, que enfeitiça ao explorar a própria voz como poucas e arrebata em presença. Como se estivesse na sala de casa, de braços livres e espalhando brilho, Ruiz apresentou o disco “Dancê”, seu trabalho mais elogiado até então e dono de uma riqueza sonora que impressiona até mesmo quando executada longe do estúdio. Com ela, a magia dos sons acontece em cena. Uma ótima pedida para os dias cinzentos.
“Desmanche!”.
A urgência de Karina Buhr expressa em “Selvática” (2015) se desenrolou em “Desmanche”, disco que veio na sequência e um dos trabalhos mais do ano de 2019. Como se prevendo a derrocada do Brasil no ano seguinte em meio a uma grave crise sanitária, para além da debilidade do aspecto socioeconômico, Buhr selecionou para o projeto faixas que exaltam a lírica de uma artista em movimento e sua rara sensibilidade para narrar as dores e glórias do tempo, seja ele qual for.
“Cultura Livre é livre de quê?”
Com as sagazes rimas de “Pajubá”, Linda que Brada tornou o próprio nome um sinônimo de ícone pop. Celebrado mundialmente, o projeto narra a beleza e a desventura da travestilidade em um cenário marcado pela ignorância, incapaz de reconhecer em si a pequenez de seus atos.
Sem tempo a perder, a artista paulista transforma sua odisseia em uma carta de reivindicação do que é seu por direito: o poder sobre a própria narrativa. Um destaque neste show do Cultura Livre é a participação de Jup do Bairro, sua fiel amiga e parceira de criação que já despontava como estrela.
“É visão”.
A mais pedida de 2021, Marina Sena também fez sua passagem pelo Cultura Livre. Com banda reduzida e olhar fatal, a mineira apresentou os sucessos do recém-lançado “De Primeira”, disco que a levou ao status de trend no TikTok e ao topo das músicas mais tocadas do Brasil em streaming. No ar, ela se mostra uma artista que já nasceu pronta pra vencer – ainda que os haters não deem trégua.
“Humana. É falar do humano da vida”.
Com 45 anos de estrada, Fafá de Belém subiu ao palco da TV Cultura para apresentar “Humana”, disco que traz interpretações inéditas e inaugura um novo momento da carreira. Minuciosa nos detalhes e atenta à fidelidade e equilíbrio que busca manter com a verdade, ela interpreta novidades como “Alinhamento Energético”, composição de Letrux que poderia muito bem simbolizar o desejo máximo para o ano que não aconteceu, 2020. A mensagem é intensa, como sempre. “Respira, aprende a respirar”.
Imagine cinco das maiores cantoras contemporâneas do Brasil juntas, em cena. No repertório, apenas faixas que se dedicam ao amor, tema universal e inesgotável. Isso aconteceu em 2018 e trouxe como protagonistas Letrux, Liniker, Maria Gadú, Luedji Luna e Xênia França. Em tese, a proposta nos ajudou pela força coletiva a encerrar um ano difícil, reforçando na mente de cada um o que há de mais bonito no Brasil, a cultura. É nela também que está seu coração.
Quem sabe ainda volte a acontecer no futuro…
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