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“Um gosto de sol”: as canções que fizeram a cabeça de Céu
Ela dispensa apresentações. Considerada uma das grandes revelações da música popular brasileira em 2005, quando deu à luz o primeiro disco da carreira, Céu primeiro cedeu aos desejos do inconsciente para criar uma obra essencialmente sua.
Até então, o espaço para regravações em sua trajetória era praticamente inexistente, à exceção de um espetáculo pensado a partir de interpretações do rei do reggae, Bob Marley, e algumas outras composições oferecidas de presente por amigos como Dinho Almeida (Boogarins) e Caetano Veloso.
A pergunta, em dado momento, foi: o que faz dela Céu? Os ventos mudaram e, reclusa, a artista decidiu buscar refúgio nas própria referências. Sade, Milton Nascimento, Fiona Apple, Beastie Boys, Rita Lee, Só Pra Contrariar…
Assim nasceram longas playlists que depois se transformaram em uma lista enxuta de 12 canções e 2 interlúdios. Os temas, regravados com arranjos inéditos, tiveram produção de Pupillo e como companhia velhos conhecidos como os músicos Hervé Salters (“Tropix”, “APKÁ!”) e Andreas Kisser (Sepultura). Assim nasceu o disco “Um Gosto de Sol”.
Disponível a partir deste fim de semana, o material foi anunciado meses antes durante uma live com a colega Tereza Cristina. Do início ao fim, ele subverte as estruturas já consagradas de canções que se calcam no pagode, no pop mainstream e no rock psicodélico para chegar a uma espécie de relicário artístico-pessoal. Histórias são narradas entrelinhas e a crueza do violão é quem dita as regras.
Nesta entrevista, Céu apresenta o projeto, fala sobre o lugar dos afetos e relembra encontros com ídolos, entre eles a deusa Erykah Badu.
Papelpop: Por que fazer um disco de interpretações só com faixas já canônicas e não de um repertório inédito, selecionando canções de outros compositores ou compositoras?
Céu: Eu tenho muitos discos, posso dizer que tenho uma carreira e, finalmente, hoje me sinto segura pra contar quem eu sou. Eu sinto que os meus discos me representam e, chegar nesse momento de fazer um álbum só com canções que eu amo é o primeiro capítulo de um processo que depois pode se desdobrar, como você mesmo disse, em um disco de canções inéditas, feitas por novos compositores, sabe? Pra mim o que vivo agora é um momento especial de poder navegar em outros mares, pra além de mim mesma. O meu próprio reconhecimento enquanto compositora também foi um processo que demorou, ainda mais no Brasil, um país que demanda tempo pra que você entenda o lugar de uma mulher que cria as próprias faixas. Resumiria essa estreia como ter dado uma volta. Uma coisa que descobri, com a ajuda [do produtor e curador] Marcus Preto durante a pandemia, é o fato de nunca antes os catálogos de canções de outros artistas foram tão acessados. Não só aquelas músicas trends, frescas, que estão acontecendo neste momento, mas também canções eternizadas em catálogo. A música segue sendo o lugar de elo, de afeto, de calor e agora tem um papel ainda mais importante nesse momento de crise mundial, com uma pandemia sem precedentes, disparidades sociais, violências. São coisas que nos acendem por dentro e acho que são sempre muito bem-vindas.
Estava me preparando pra te perguntar a respeito disso. Principalmente nas eras “Tropix” e “APKÁ!” a sua relação com o eletrônico se fortaleceu. Agora ocorre o oposto, você busca sustentação em instrumentais mais crus e recorre ao violão. A escolha de arranjos que privilegiam uma estética mais crua foi também um reflexo dessa tentativa de evocar espaços mais afetivos?
Sim. Essa sonoridade simboliza um lugar de esperança que eu encontrei nesse momento sinistro que estamos vivendo. Não me senti inspirada a escrever coisas novas. Eu tava triste, preocupada, com uma energia pesada em vários momentos, mas a gente tem que se manter aceso, tem que se achar. O meu lugar era esse de pensar no lado orgânico, na vida, nas superlupas que nos permitem olhar pros nossos erros, padrões que não queremos mais, pras crianças, pra nossa própria solidão, muitas pessoas ficaram muito sozinhas…
… Eu mesmo adotei duas gatas.
Exatamente! Fez muito bem. Estes são laços de vida que fomos nos agarrando pra poder seguir. Foi um negócio de encarar as realidades de carne e osso, de se voltar pra si mesmo. O afeto que eu procurei dar a esse projeto tem a ver com o orgânico, portanto, ele vem sem muita firula, sem muito beat. É o que é. Vou te contar que o meu sonho naquele momento era fazer um luau na praia só com os meus amigos, mas nem isso podíamos.
Há dois anos nós conversamos, dias depois da estreia de “APKÁ!”, e você disse que o processo de composição não era um trabalho simples. “Às vezes, até doloroso”. Agora, você consegue um feito importante pros projetos que envolvem covers, que é impregnar a sua identidade no todo. Desta vez, como definiria o ofício de intérprete?
Olha… como um desafio. Claro, eu sempre cantei canções de outras pessoas, mas quando você decide dedicar um álbum inteiro ao repertório do outro, isso muda completamente. Você reconhecer também as suas possibilidades e limitações, a sua tessitura vocal pra viagem do outro compositor ou compositora, testar músculo vocal e seu corpo de intérprete. Foi interessante, especialmente em relação ao que você falou de tentar trazer a minha assinatura porque as canções escolhidas, por si só, já existem em uma versão definitiva. Não tenho um anseio de fazer uma versão mais interessante do que a própria original [risos]. É só um desejo de cantar e trazer um jeito meu. Tem um desafio grande nisso, um desafio de aprendizado muito legal, ainda que, às vezes, meio tenso. Demos muita risada, nos divertimos muito em estúdio. Tenho até um pouco de saudade das sessões.
Não deve ter sido fácil selecionar a tracklist definitiva. Pode me contar o que ficou de fora da curadoria?
Posso. Sabe, é difícil fazer um recorte do que a gente ama, a gente ama várias coisas. Teve primeiro uma lista de canções que a gente pensou, mas que nem foi pros “finalmente”. Depois, houve uma outra lista que avançou, gravamos, mas que mesmo assim não entrou. Neste segundo grupo, por exemplo, eu listo uma canção do Dominguinhos, “Eu Vou de Banda” (1977), outra da Sandra de Sá, a gente fez “Demônio Colorido” (1980). Mas também ensaiamos “Computadores Fazem Arte” (1995), canção do Fred Zero Quatro e depois gravada por Chico Science e Nação Zumbi. Neste último caso, percebemos que era uma questão muito profunda, a linguagem do disco deles era muito diferente do que eu pretendia. Também pensamos em outras canções da Fiona Apple, da Rita Lee… para estas duas houve uma lista específica.
A diversidade das escolhas é perceptível e isso é um mérito da artista eclética que você se tornou. Mas dá pra traçar um paralelo entre esses cantores, um fio condutor que conecte, por exemplo, as obras da Fiona Apple às do Milton Nascimento?
Quando fui fazendo o disco cheguei a pensar ‘As pessoas vão me achar ainda mais doida. Quem é que junta num álbum esse ecletismo todo, esse espectro?’. Bom, a explicação pra mim vem dentro de um aspecto que contempla uma pessoa que foi criada numa cidade como São Paulo, muito cultural, plural, diversa. Tentei fazer recortes pessoais meus, pra trazer mesmo um reforço da identidade que tenho como cantora, como compositora. Eu fiz uma viagem no tempo pra fazer essa seleção, juntar essas faixas. Não sei como é pra você, mas eu me apaixono por artistas em determinadas épocas. Fico obsessiva, ouço, ouço, ouço. Depois dou um tempo, faço outra coisa, descubro mais uma novidade. Aí depois de muito andar decido que quero voltar pra mesma fonte que bebi anos e anos atrás. A Fiona Apple é um desses casos, ela surtiu um impacto muito grande em mim. Eu tinha 15 anos quando ela lançou o “Tidal”, disco de estreia. Nunca esqueço, devorei esse projeto que era de uma menina magrinha, franzina, com aquela voz grave, usando um instrumento que eu considerava clássico, um piano, mas fazendo rock e compondo de forma raivosa, numa linguagem já feminista, falando de questões relacionadas à dor. Isso mexeu com a minha cabeça pra que eu começasse a me mover, a fazer as minhas coisas. “Um Gosto de Sol” traz pequenas camadinhas pessoais com o objetivo de contar o que eu me tornei. E aí, já mais adolescente, quando eu comecei a realmente compor, foi quando comecei a estudar o Milton. Escutava a Elis interpretando as letras dele como se aquilo fosse uma universidade. Meu maior exercício de estudo é escutar. As pessoas já me conhecem, sabem das minhas referências que englobam samba, Jamaica, etc, mas também queria que soubessem que eu sou igualmente feita do pagode, que explodiu nos anos 1990. Eu tinha 10 anos quando esse som tomou conta de tudo, eu era apaixonada por Só Pra Contrariar, cantei muito [risos]… Foi importante mesclar as referências clássicas da minha família, que tem formação musical, mas também as coisas que eu fui virando, absorvendo. Por exemplo, Beastie Boys, que curiosamente é uma banda de rap, branca, punk, que mistura um monte de coisas. Os caras fizeram uma bossa nova, por que não posso trazer isso de volta pro Brasil?
Claro, Rita Lee e Alcione são símbolos de empoderamento feminino e popular, mas me chamou a atenção o fato de que elas são as únicas mulheres brasileiras homenageadas por você. A que se deve essa escolha?
Eu sou feita dessas mulheres. As meninas que estão aí hoje, deusas, maravilhosas, empoderadas como Duda Beat, Luísa Sonza, Ludmilla, Iza, elas precisaram dessas outras gatas que vieram antes. Eu sinto que essas duas artistas que você citou têm uma história muito sólida. Nunca quero cantar canções delas na audácia de ‘o que você está fazendo cantando Alcione?’. Meu intuito é fazer correr essa mensagem e a gente manter o elo desse feminismo de hoje, um feminismo que tá quebrando barreiras.
Muito antes até de o feminismo ser chamado de feminismo.
Exatamente, quando a mulher ainda tinha medo dessa palavra, os homens então nem se fala. Acho que tem uma importância muito grande e é isso o que esse disco faz, busca pontes. O Brasil é um país que encosta muito suas pedras preciosas. Na pandemia eu escrevi uma música pra Alaíde Costa, uma deusa, uma verdadeira voz da bossa nova. O Brasil precisa enaltecer mais, a memória precisa ser um pouquinho menos curta. Trazer essas pessoas é fundamental, eu poderia até ter feito mais. Fiz livremente, trouxe a Sade, a Fiona. Mas a Rita Lee me permitiu ser quem eu sou. Estamos falando de uma mulher que é filha do tropicalismo, que decide sair de uma banda e começar uma carreira que gera muitos e muitos hits, um atrás do outro. Já a Alcione, que não é compositora… se hoje estão falando do empoderamento feminino da Marília “maravilhosa” Mendonça, eu digo que ali por trás, com certeza, existia uma Alcione dizendo ‘Amanhã pode e será’. Fazendo uma sofrência que não é sofrência. É liberdade. Acho que a gente faz muita caixinha, enquanto as mensagens são humanas, são sociais, são coletivas. É nisso que a gente precisa mexer.
Você é uma criança dos anos 1990, como acabou de dizer, fã do pagode e do samba dos anos 1990 – dois gêneros que acaba trazendo pro disco. Isso vai na contramão de uma hegemonia elitista existente na cultura, inclusive, dentro da própria cena indie pop em que você está inserida. Com a morte da Marília Mendonça eu sinto que esse debate foi reacendido. Isso é uma questão pra você?
O que eu sinto é que a gente tá atravessando um momento de novas possibilidades. Porém, ainda temos muito, muito, muito o que caminhar. As coisas estão sendo falas, expostas, isso é muito bom, importante, e eu acho que é de extrema importância que a gente fale mesmo do lugar de cada um, que entendamos a realidade e o espaço de uma maneira empática, pra perceber pertencimentos. Quando a gente faz música, a gente faz música pro todo, e a mensagem deve ser livre. A gente tem que poder cantar, a música é da ordem do sentir e eu acho que se a gente começar a não permitir mais poder cantar coisas que nos tocam porque vão dizer que ‘isso não pertence a você’, ‘você é de elite’. Isso pode provocar um silenciamento extremamente perigoso, temos que fazer tudo com responsabilidade, ter um olhar atento, de respeito e empatia. Deixar de fazer o que nos emociona é uma forma de censura. É preciso muito estudo, com preocupação, leitura… a gente tem que se preocupar em se conectar, porque no fim das contas o que a música faz é nos unir. Temos que seguir nesse movimento de aproximação até pra tentar arrumar essa zona que a gente andou fazendo. Isso é bonito.
Você descreve “Feelings” como uma faixa que tem uma coisa meio brega em si. Eu dei risada e lembrei daquele verso clássico do Álvaro de Campos que diz que “todas as cartas de amor são ridículas”. O amor é, sobretudo, cafona?
[risos] 100%! Não preciso dizer mais nada. Eu fiquei mesmo na dúvida sobre gravar essa música, até pela quantidade de regravações, não sabia se acrescentaria algo… mas eu sou esta pessoa. Eu sou cafona e essa é mais uma camada que eu queria trazer. Sabe, eu adoro me acabar no karaokê cantando ‘Feelings’ rasgadamente. Achei que essa era a faixa perfeita pra contemplar esse lado.
“Um Gosto de Sol” também te coloca na posição de fã ao eleger as figuras desses intérpretes e compositores como grandes ídolos. A Sade, por exemplo, está há 11 anos sem um disco de estreia. Você também sofre pelos seus ídolos? [risos]
[risos] É assim que eu me vejo, eu sou apenas uma fã à espera de um disco da Sade. Por isso me sinto vertendo os lugares, mostrando de onde eu vim, quem eu amo. Sou super essa pessoa.
Outro dia você contou uma história muito boa, dos tempos em que morava em Nova York e cruzava com frequência com o MCA, líder dos Beastie Boys. Ele era seu quase-vizinho. Quais outras memórias afetivas de contatos, ou quase contatos, você destacaria?
Tenho uma história muito boa com a Erykah Badu. Eu sou muito fã dela, muito mesmo, ela é uma das pessoas que poderiam facilmente estar neste disco num capítulo 2, 3 ou 4. Foi exatamente neste período em que morei em Nova York e veio “Baduizm” (1997) e eu sentia que ela trazia de um jeito despretensioso essa linguagem nova, que vinha do íntimo feminino, era muito foda. Muito tempo depois soube que ela vinha pro Brasil, eu tinha acabado de lançar o “Vagarosa” (2011), e nós tínhamos uma pessoa em comum, o [fotógrafo] Brian Cross, aliás, casado com a minha amiga [a atriz e cantora] Thalma de Freitas. Escrevi pra ele dizendo que queria apresentar Erykah pra um monte de gente, fazer algo aqui e se ele achava uma boa ideia contatá-la. Pois mandei um e-mail explicando quem eu era, até com links pra ela se situar. Lembro de ter dito ‘Olá! Eu sou esta pessoa, amiga desta, desta e desta. Estas pessoas são loucas por você, estamos ansiosos pela sua chegada! Queria fazer um jantar, te convidar pra fazer algo’. Ela respondeu, maravilhosamente, e seguimos trocando uma ideia. Passado um tempo, ela foi primeiro pro Rio e eu lembro que tinha uma apresentação marcada em Curitiba. No aeroporto, chegando com a minha filha Rosa já na esteira, vejo ela brincando com outra garotinha da mesma idade. Fui buscá-la e quando levanto os olhos e vejo a mãe… era a própria Erykah Badu [risos]. Acenei e disse ‘Eryka, eu sou a pessoa que está te escrevendo por e-mail’. Ela me deu um abraço carinhoso e depois demos um super rolê pela cidade. Fiz a ponte com algumas amigas, entre elas a Anelis [Assumpção], de quem ficou muito amiga até hoje, fomos a um restaurante vegetariano, fomos ver obras d’OS GÊMEOS, na loja da Melissa, fomos até mesmo a um terreiro juntas. Esta é uma história muito massa.
Esta entrevista se centrou muito na relação intérprete/compositor e eu não posso deixar de perguntar… O que achou da versão de “Pardo” que Caetano gravou em “Meu Coco”, com arranjos de Letieres Leite?
Per-fei-ta. Caetano é meu ídolo, sou completamente apaixonada por ele. A versão que ele fez é Bahia até o último fio de cabelo. O que eu amo na música é isso mesmo, esse poder de levar as canções a outros lugares, de sair dessa onda dos beats e da estética Jamaica anos 1990 rumo a um espaço único, transformador. Que é puramente Caetano.
E o que tem gosto de sol pra você?
O próprio sol tem gosto pra mim, contrariando todas as dermatologistas. Justiça, igualdade, ver o ser humano coabitando nesse planeta e não sendo altruísta, deixando de sugar todo o tutano do planeta até destruir tudo e depois viajar pro espaço também tem. Um futuro melhor tem gosto de sol.
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“Um Gosto de Sol”, o novo disco de Céu, está disponível em todas as plataformas de streaming.