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“Meu Coco”: um faixa a faixa do primeiro álbum de Caetano Veloso nesta década
O mundo sem Caetano Veloso seria pelo menos o dobro de vezes mais chato. É por isso que passar 9 anos sem músicas inéditas foi um desafio para os dois lados da moeda: para ele, enquanto criador, e para os fãs, cobiçosos por uma nova safra. “Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor?, negligência crítica? Deve ser”, questiona o cantor na carta de apresentação de “Meu Coco“, disco que lança nesta sexta-feira (21). “Mas acontece que desde a infância amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação. Quem gosta de canções gosta de quantidade”.
Logo, o dia é de alegria, mesmo que a experiência proposta por Veloso agora seja a de pensar o Brasil com seus crescentes problemas e o caminho tomado pelas coisas que nos fazem cidadãos, amantes, família. Pensar é mesmo a palavra, afinal, ele abre “seu coco” para que possamos nos colocar ao seu lado nesta vindoura superação de “câimbras, furúnculos, ínguas/com naras, bethânias e elis“.
Veja bem, o novo LP não é festivo, a definição mais adequada seria “reflexivo”, talvez. Isto não impede que brechas sejam abertas para celebrar a música popular brasileira a partir de numerosas citações, parcerias assertivas e uma estética que mantém Caetano em caráter vitalício como o grande ídolo pensante contemporâneo. O todo ainda nos lembra do pertencimento de sua poesia aos cadernos mais insubordinados, do poder que tem de devolver a razão de ser e existir a um fragmento de país que passou a odiar a arte.
É, pois, na doçura e observância que se encontra a chave para percorrer esta jornada. Abaixo, minhas impressões sobre cada uma das faixas.
“Meu Coco”
(Caetano Veloso)
Caetano Veloso é uma cabeça pensante, isto já sabemos. A faixa-título do projeto é um aceno aos saberes que nem sempre se restringem às ciências exatas e formais, um lembrete de que seu ego criativo continua inquieto, pronto para comunicar e nos lembrar que o Brasil não se perdeu. São muitas citações e referências, um aspecto que vai se seguir ao longo de toda a obra. Seu mestre João Gilberto, Leila Diniz, Nara Leão, Maria Bethânia e cidades como Belém, Natal e Vitória estão lá. Entram no samba até os católicos e neopentecostais.
“Ciclâmen do Líbano”
(Caetano Veloso)
Este foi o título que mais me despertou curiosidade. Caetano é sempre muito bom com títulos, afinal. Uma das canções de amor romântico do álbum, “Ciclâmen do Líbano” vai buscar na delicadeza das flores a fórmula para descrever uma paixão digna dos anjos. Ao fundo, suavemente, ouvem-se instrumentos como o doumbek árabe. A música é quase uma valsa do oriente.
“Anjos Tronchos”
(Caetano Veloso)
Esta poderia ser lida como um poema. E, sim, acho que é arriscado trazer uma discussão sobre tecnologia para uma canção, fundamento isso convidando você a pensar na velocidade com que avançam os recursos e seus provedores. Mas em “Anjos Tronchos”, Caetano Veloso reverte a lógica e consegue mais uma vez o trunfo de sair ileso do escrutínio temporal. É um dos grandes momentos do disco e, mais até do que o som, o destaque está na longa letra, uma composição típica de seu repertório que, cheia de complexidades e reconvexos, acena para momentos já consagrados da carreira. Não chega a ser uma autorreferência explícita, como acontece em outros momentos, mas lembra muito a estrutura e a visualidade de “Fora da Ordem” (1991). A menção a Billie Eilish e Finneas acaba sendo apenas um detalhe. Foco nos riffs de guitarra, sombrios e que avançam como o bater de asas dos corvos. Essa atmosfera só se deixa atravessar pela marcação precisa da zabumba de Pretinho da Serrinha.
“Não Vou Deixar”
(Caetano Veloso)
Se a bossa nova é foda, Caetano é igualmente pop. Nesta moderna e agridoce canção, que já se insinua como favorita na primeira escuta, o artista nos lembra da importância de se manter a obstinação. É preciso seguir confiantes de que, apesar de genocidas e golpistas, que destroem dia trás dia o Brasil, o país não acabou. Os sonhos precisam seguir vivos na teimosia, apesar dos dramas reais. No fim, a melodia quase se revela um funk 140 bpm. Pede uma cenografia grandiosa na próxima turnê que, espero, caia na estrada em 2022/2.
“Autoacalanto”
(Caetano Veloso)
A música que Caetano Veloso fez para o neto Benjamin é tudo o que o título já aponta: uma canção de ninar das mais doces, um presente de família que se transmite com o mesmo afeto de uma joia. Embalada apenas pelo violão, a faixa representa em termos técnicos um momento sereno do disco. Se “Meu Coco” se constrói entre uma profusão de pensamentos, lugares e pessoas, aqui ele entende que o nascer, a chegada de uma vida é um sinal para fechar o sinal. Frear é preciso quando se quer dar espaço a sutilezas internas, organizar as ideias ou mesmo amar, puramente.
“Enzo Gabriel”
(Caetano Veloso)
Outro título que suscitou curiosidade. Enzo Gabriel foi o nome mais registrado no Brasil entre os anos de 2019 e 2020 e, portanto, fica fácil inferir que a letra surge das várias leituras diárias de Caetano. A composição é um olhar taciturno sobre o futuro, sobre o papel de crianças que já nascem com a sina de encontrar um mundo quem sabe esfacelado. Emociona observar, especialmente pelo fato de que tudo se desenrola ao som do acordeom, como o “coração vagabundo” do maior artista vivo da MPB está aberto ao diálogo, pensando em gente espalhada pelos vários Brasis. Gente de verdade, distinta, mas que se interliga por um nome. “Enzo Gabriel, qual será teu papel/na salvação do mundo?/Olha para o céu, não faças só como eu (…)/Um menino guenzo ou um gigante negro de olho azul/ianomâni, luso, banto, sul“, canta no refrão. É curioso que ele queira rimar “sutil” com “Brasil”, ainda mais vivendo tempos tão complexos como os de agora. Mas a licença poética é também um fio de esperança, pelo menos nestes 4’50.
“GilGal”
Uma profusão de referências com a alma do filho Moreno Veloso. “GilGal” nasce da beleza e da riqueza do candomblé, uma batucada melindrosa que se abre referenciando Pixinguinha, Jorge Ben, Djavan e Milton Nascimento, entre outras figuras importantes para Caetano. Uma canção minimalista, que traz vocais adicionais da jovem Dora Morelenbaum.
“Cobre”
(Caetano Veloso)
O pai de Dora, Jacques Morelenbaum, é uma parceria antiga de Caetano. Os frescos e elegantes arranjos utilizados em “Cobre” remontam a finesse do espetáculo “Prenda Minha” (1997). Em “Meu Coco”, eles constroem uma apaixonante narrativa ambientada na Bahia, mais precisamente no Porto da Barra. A cor da pele de sua amada, dourada pelo sol, se entrelaça com a beleza das águas ao cair da tarde. Do início ao fim são fusões, de modo que até no som orquestra e samba terminam por se fundir.
“Pardo”
(Caetano Veloso)
“Pardo”, gravada inicialmente por Céu no disco “APKÁ!” (2019), já era lá conhecida do público na voz de seu autor por uma interpretação esporádica, feita durante uma live. Agora, devidamente registrada em estúdio, a canção ganha contornos suntuosos de trombones que a distanciam de qualquer apresentação prévia. Embora assuma uma visão homoerótica, o tesão da letra fica em segundo plano para dar espaço a uma suave melancolia. É como se Caetano fosse criando a trilha sonora de uma quarta-feira de cinzas, um fim de tarde pós-Carnaval que o faz ver o sol brilhar na pele enquanto respira, apaixonado.
“Você-Você”
(Caetano Veloso)
Um dos meus momentos prediletos. Caetano convida aqui a cantora Carminho para cantar um fado e brinca com as palavras. Os pronomes de tratamento são subvertidos mais uma vez em sacadas espertas, tal qual fez há exatos 15 anos no disco “Cê”. Eu disse que é um fado, mas veja bem, não é qualquer um. “Você-você” é inédita e traz sotaque português. O amor, embora não seja protagonista, é tema inesgotável e agora recorre ao dedilhar da guitarra portuguesa – um sinônimo de dramaticidade. A música é uma comovente obra de arte.
“Sem Samba Não Dá”
(Caetano Veloso)
“O samba ainda vai nascer/O samba ainda não chegou/O samba não vai morrer“, cantou Caetano em 1993 no álbum “Tropicália 2”. De fato, o samba renasce nesta faixa de “Meu Coco”, um momento que tem menos a cara do Rio e mais a de Pretinho da Serrinha. É uma ode à música popular que se vê transpassada pela verborragia de referências que, novamente, vai de Anavitória a Marília “Maravilha” Mendonça, de Gloria Groove a Baco Exu do Blues. A repetição do recurso parece fazer menos sentido do que em outros momentos, que fique claro: não pela escolha dos nomes, interessante porque reverencia as novas gerações, mas talvez pela disposição que lhe foi dada no trajeto. Não soa como novidade, embora deva funcionar muito bem no palco do Circo Voador.
“Noite de Cristal”
(Caetano Veloso/Laércio Alves/Max Nunes)
Na mesma toada em que se encerra o disco mais recente de Bethânia, “Noturno” (outra estreia respeitável), “Meu Coco” finda sua jornada deixando na boca um gosto de sol. Bethânia, aliás, gravou a música anos antes, mas aqui Caetano volta atrás para nos escrever uma carta. Ele pede foco e paciência para alcançar “dias de outras cores/alegrias para mim, pro meu amor/e meus amores“. Como a noite que é prisma, sai de cena dizendo que os ares hão de mudar.
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“Meu Coco” está disponível em todas as plataformas de música. Escolha sua favorita e ouça clicando na foto abaixo.