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Entrevista: Bomba Estéreo faz chamado à cura e ao misticismo colombiano em disco inédito
Para celebrar a estreia de “Deja“, sexto álbum de estúdio do Bomba Estéreo, a vocalista Li Saumet decidiu convocar uma sessão de meditação guiada. Sentada diante de um tambor de língua de aço, a cantora e compositora colombiana passou 30 minutos conectada a uma live, período em que se dividiu entre boas-vindas, justificativas para o encontro e exercícios de respiração.
Este não seria o primeiro ritual feito pelo grupo. Terminadas as sessões de estúdio que originaram treze novas faixas, os envolvidos participaram de um pagamento, cerimônia milenar de origem ameríndia em que se demonstra gratidão à Mãe Terra pelos frutos recebidos. Por Skype, Saumet comenta a intenção de se fazer um disco tendo a natureza como mote.
— O mundo foi moldado para que nós nos desconectássemos dessa essência natural, que é uma questão básica. Fazer esse álbum foi um exercício de resgate, uma tentativa de lembrar às pessoas que a natureza é a essência de tudo. O mais simples, que muitas vezes é também o mais básico, é o que realmente pode nos fazer felizes.
A estreia, que começou a ser gestada na estrada e pouco tempo depois no frio das montanhas, choca-se com um período de sérios desafios enfrentados pela Amazônia colombiana. São cada vez mais comuns episódios envolvendo grilagem, ação de paramilitares e expansão das plantações de coca, todos responsáveis por aumentam o desmatamento e sua respectiva participação na crise do clima.
Sem falar de politica nominalmente, “Deja” chama o ouvinte pra dançar ao mesmo tempo em que capta sua atenção em direção às questões do meio ambiente.
Com mixagem de Damian Taylor, responsável por trabalhos de Björk e Arcade Fire, o LP tem produção de Simón Mejía e ganhou uma estratégia de lançamento que o dividiu em fragmentos. Foram quatro EPs publicados ao longo de sete meses, cada um com três faixas. Uma inédita, uma espécie de oração, foi escolhida para encerrar a jornada.
— A estratégia foi pensada para que as pessoas pudessem entender a obra como um processo natural e prestassem atenção no tempo dos elementos. Não dá pra chegar e dizer a uma flor ou uma planta: ‘Olha, preciso que você floresça amanhã’ — a artista se diverte. — É assim que vivemos, ainda que as pessoas nos cobrem. O processo não podia ser industrial, existem etapas e elas são bonitas de se viver também. Era preciso esperar.
As gravações, que tiveram ainda coros e curadoria sonora da premiada Lido Pimienta, ocorreram em isolamento absoluto na região de Santa Marta, cidade mais antiga do país situada em pleno Caribe. Nascida e criada na região, Saumet passou anos no exterior até ser trazida de volta pelo marido canadense.
— Era importante que nos reuníssemos todos, a banda, as backing vocals, Lido, nossas famílias. Foi uma produção bastante íntima, tomávamos banho de mar todos os dias. Certa vez demos de cara com um grupo de 30 golfinhos na praia que existe aqui de frente. Aconteceram coisas mágicas e creio que no fim isso transparece na música, você consegue sentir. Aqui você acorda com o som dos macacos, os passarinhos, as ondas do mar e é o lugar mais propício para fazer uma música no mundo, uma música que traga essa mensagem de energia. Foi fundamental fazê-lo aqui. Tem um pouco de cidade, das montanhas, onde tudo começou com as bases de Simón. No fim, sinto que foi como um ritual.
Nesses eixos temáticos, as faixas exploram a relação do homem com o ambiente por meio dos elementos básicos da vida, água, terra, ar e fogo, todos temas caros ao Bomba Estéreo desde que este era um projeto solo de Mejía na Bogotá dos anos 2000. Os sons e imagens que reverenciam as culturas indígena e afro-americana, no entanto, ganham novos contornos.
Ao homenagear a riqueza cultural da Colômbia em diferentes sentidos, as capas criadas pela artista visual Orly Anan trazem de volta figuras folclóricas tradicionais como La Marimonda, uma mistura de elefante e macaco símbolo da alegria e do Carnaval de Barranquilla.
— Fica chato quando você alcança um certo sucesso e precisa lidar com obrigações — explica Saumet. —Estava meio cansada em relação a mim mesma, ao que estávamos vivendo, à minha própria arte. Eu me perguntava ‘O que eu posso fazer? Preciso de uma mulher que me inspire’. Foi por isso que busquei Lido, que brinco chamando de ‘sargento Pimienta’, para ser minha curadora. Por isso busquei Anan, que é minha amiga também, para criar de cabeça essas personagens. Nenhuma delas existe, queríamos algo anormal, completamente inventado e que simbolizasse uma viagem do futuro para o presente.
Afinados, os integrantes do Bomba Estéreo seguem com a proposta de criar um tipo de música eletrônica essencialmente latino-americano, marcado por batidas e instrumentos singulares. Na faixa “Tierra”, carro-chefe da terceira parte, eles decidem se aprofundar nas sonoridades do pacífico colombiano, região com uma rara diversidade musical que permitiu neste caso a criação de um som que imita gotas de chuva.
O efeito não deixa de ser ainda uma alusão às lágrimas derramadas em um lugar que atravessou longos anos de guerra e esquecimento.
A tentativa de fazer com que o público se aprofunde musicalmente nessas heranças se entrelaça a um momento em que gêneros como champeta, cumbia e porro são redescobertos pelo pop, chegando consequentemente a plataformas de grande alcance como o TikTok.
— É espetacular que isso aconteça porque estamos falando de uma música de bairro, que vem da realidade, da alma. São sons que, apesar de festivos, tem origem humilde. Com esse alcance, as pessoas podem escutar uma história que não teriam a chance de escutar se não fosse cantada por alguém com uma realidade tão diferente — diz. — Essas músicas foram pavimentando o caminho para que os ouvintes de língua inglesa, pouco acostumados com os sons da América, pudessem nos receber de braços abertos. A salsa mesmo era algo estranho para eles no passado e foi assim com a gente. Quando fizemos essa ponte com o eletrônico uma década atrás, começaram dizendo ‘Hm, okay. Isso me aparece mais fácil [de ouvir], é algo exótico’.
O grupo, famoso por sucessos como “Soy Yo”, é mais um caso representativo da renovação musical que passa a cena indie no país. Além de Lido Pimienta, que em 2020 estreou o elogiado disco “Miss Colombia”, outros nomes conquistam respeito mundo afora. Os coletivos Frente Cumbiero e Meridian Brothers, por sua vez, fizeram do estranhamento causado por suas músicas um trampolim com destino a alguns dos principais festivais da Europa.
O interesse de cantar e musicar a própria cultura, no entanto, ainda é restrito a pequenas bolhas e não torna a Colômbia, um dos principais focos de interesse da indústria musical na América Latina, um espaço de todo plural.
— É preciso entender que somos parte de uma grande raça misturada. Os indígenas e os escravos negros fizeram a cumbia transcender fortemente e é por meio desse misticismo que presenciamos a nossa história sendo contada em forma de música. As pessoas dançam nos nossos shows como se estivessem em transe e eu sinto, ao ver essas cenas, que é como se os negros e os indígenas do passado estivessem ali, em um transe espiritual. A maioria faz mais do mesmo, segue um padrão e não seu instinto, algo que te mova por dentro. Sinto que é mais um negócio do que qualquer outra coisa, muitos começam com boas intenções e depois quando se tornam populares perdem o controle.
O importante, em suas palavras, é manter a voz afiada e os olhos abertos.
— Quando você faz algo diferente do que os demais fazem, isso é o que salva sua arte de se dissolver. Isso é ser artista: chegue onde chegar, poder mostrar as coisas do seu ponto de vista.
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“Deja”, o novo disco do Bomba Estéreo, está disponível em todas as plataformas de streaming. Ouça clicando aqui.