Depois de refletir sobre empoderamento e raízes negras em “Comando”, Negra Li agora se abre sobre o divórcio que viveu em 2019 com o single “Eu Preciso Ir” ao lado de Ferrugem. Para o Papelpop, a artista descreveu a música como “um jeito de por um ponto final na história”.
Nós tivemos a chance de conversar com a cantora poucos dias antes do lançamento. Na ocasião, ela nos deu detalhes sobre a gravação do clipe, que aconteceu em um dia com temperaturas em torno de 4ºC e 7ºC .
A romantização da maternidade, os recentes aprendizados, a relação com outros gêneros musicais e as mudanças provocadas pelas plataformas de streaming na indústria musical também foram temas da nosso papo. Negra Li mostrou que ama o que faz e segue cheia de vontade de revolucionar as coisas.
Antes de ler a entrevista, assista ao clipe de “Eu Preciso Ir”:
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Papelpop: Em “Eu Preciso Ir”, você se joga no pagode junto com Ferrugem. Por isso, me fala a sua relação com esse gênero musical! Ele é muito familiar para você?
Sim, eu adoro pagode! Inclusive, já tenho uma música com o Belo, que tem uma atmosfera bem parecida de R&B com pagode. Já fiz também umas participações, por exemplo, no DVD do Jeito Moleque e alguns DVDs de bossa nova, de projetos como “Casa da Bossa”. Lá em Canela também cantei bossa nova e samba. Então, eu gosto bastante. Não podia faltar nesse disco porque eu adoro fazer coisas diferentes, brincar com vários estilos. Acho que cabia direitinho aí, principalmente, por causa do assunto, por falar de amor. É tão legal fazer sofrência com um pagode, um sertanejo.
O que pode nos contar sobre os bastidores do clipe?
A história, queridinha, é que eu gravei em um dia tão frio que fazia 27 anos que não fazia aquele frio. Eu tive que gravar de lingerie e camisola em uma sacada para jogar aquelas roupas. Estava um vento danado. Sério! A minha assistente pesquisou e disse que fazia 27 anos que não fazia uma temperatura como aquela do dia da gravação do clipe. Estava quatro graus e depois foi aumentando para sete. Eu e o modelo passamos um frio. Fizemos cenas onde contávamos a história de um casal que tinha os momentos de lembranças boas e outros de conflitos. Então, naquele dia, eu passei um baita de um frio. Congelei, mas estava lá linda. Quem vê o clipe não imagina [risos].
E como é abordar o seu divórcio, algo tão pessoal e que envolve família, de forma tão pública por meio dessa música?
É maravilhoso e libertador. Você gosta de ouvir música, não gosta? As músicas falam com você. Não tem aquela música que, quando você está na bad, acaba ouvindo? Minha filha, por exemplo, disse: “Mamãe, a Billie Eilish me ajudou a superar meus momentos difíceis”. Então, a gente, [como artista], canta para gente mesmo. No clipe [de “Eu Preciso Ir”], eu me emocionei. Eu chorei de verdade. Inclusive, fiz questão que essa cena entrasse para o clipe. Eu o editei junto com a diretora e o editor. Eu falei: “Cadê aquela cena que eu choro? Põe ela porque foi de verdade”. Eu fiquei cantando tantas vezes aquelas palavras que, quando gravei, eu senti. Quando eu compus, era o que eu realmente queria dizer. Aí veio um filme na minha cabeça com tudo que eu passei, cada coisa que senti até chegar a minha libertação. Ainda mais que eu estava atuando. A música é um jeito de por um ponto final na história. É muito bom escrever a respeito. Mesmo que não fosse lançar, eu escreveria [sobre isso]. Tenho uma coluna na revista Pais e Filhos falando sobre maternidade. Adoro escrever. Quando eu quero falar alguma coisa com alguém que demanda um certo cuidado, pego e escrevo no bloco de notas antes, penso no que vou falar. [Escrever] é um jeito de desabafo e por as coisas para fora.
Na letra, é narrado um processo de redescoberta em que, por amor próprio, você precisa ir, encerrar um ciclo. Como você avalia a participação da pandemia nessa espécie de epifania?
Acho que a pandemia ajudou nessa questão do meu autoconhecimento porque me obrigou a ficar na solitude. Isso era uma coisa muito rara na minha vida. Por causa dos shows, eu sempre tive uma vida agitada, com muitas pessoas ao meu redor. Com a separação, eu tenho que mandar os filhos para o pai em alguns momentos, de quinze em quinze dias. Então, a hora que fico sem as crianças, fico sem trabalho. Não é todo dia que estou trabalhando mesmo, né? Ainda mais na pandemia, eu faço muita coisa home office. Foi muito importante eu aproveitar esse momento — que não é legal — para aprender a ficar sozinha e curtir a minha própria companhia.
Você disse que agora voltou a ter vontade de revolucionar as coisas, algo que tinha ficado um pouco de lado nos seus 30 anos. Como mãe, esse desejo de mudança vem diferente, com ainda mais foco nas próximas gerações?
Eu mudei bastante. Na verdade, sou uma mulher de fases. Sempre estou em mudança, em transformação. Eu posso te dizer como estou e o que quero hoje, depois da separação, da pandemia, de me tornar mãe. Eu quero fazer o meu trabalho não pensando só em mim, mas pensando no futuro. Isso não só pelos meus filhos, mas com toda a representatividade que sei que tenho em cima de pessoas pretas, de mulheres que me olham como referência. Estou com essa vontade de revolucionar, de fazer coisas que sejam representativas e tenham relevância na vida das pessoas, no nosso país e na nossa música. Eu posso isso. Por que não? Muitas pessoas podem alcançar a liberdade pelas minhas histórias, pelos meus relatos. Por isso estou mais aberta a falar de mim mesma e mostrar a minha descoberta. Quero que as pessoas também descubram coisas que me fizeram bem ou mal. Acho que o verdadeiro papel do artista é esse. Quando vejo pessoas como Madonna, Beyoncé e Lady Gaga colocando dentro dos seus trabalhos e clipes coisas pensando em revolucionar e quebrar tabu, penso que arte é isso. Hoje tenho consciência de que, além de cantar para poder ganhar o meu sustento, posso fazer uma mudança real e tentar ajudar de alguma forma. Espero que esteja conseguindo.
Você disse que está sempre em transformação. Então, depois de tantos anos, o que você acha que mais mudou em você como artista?
Ah, hoje eu sou uma mulher muito mais experiente. Com a experiência, vem a segurança. Olhando para trás, eu vejo uma mulher totalmente diferente, tímida, insegura, mas que, ao mesmo tempo, também já fazia mudanças desde o RZO [ou Rapaziada da Zona Oeste]. Eu fazia rap e delatava coisas que não achava legal sobre o sistema. Só que tem coisas que vêm com a maturidade. Não tem jeito. Vejo que sou uma mulher muito mais experiente hoje e estou conseguindo projetar melhor aquilo que eu quero, do que realmente só deixar a vida me levar, sabe? Passei da fase de experimentar. Agora já sei o que quero. Pensando naquilo, vou projetar a minha vida e a minha carreira a partir de agora.
Tem algo que ainda está tentando aprender como artista?
Nossa sempre [risos]! Estou aprendendo a cantar, minha flor. Eu comecei a minha carreira sem nenhuma aula e dei uma prejudicadinha na minha voz, apesar de ela estar saudável. Só que assim: está saindo um pouquinho de ar. Tem uma coisinha que estou trabalhando nela com uma fonoaudióloga. Eu voltei a fazer aula de canto. Desta vez, estou me aventurando no canto lírico. Por ser mulher, é mais difícil quando a gente para e tem filho. Para as mulheres pretas, é ainda mais difícil nos recolocarmos no mercado depois de um filho. É complicado. Eu tive que abandonar várias vezes a minha escola de música. Toda vez que tinha um filho eu parava. Tenho dois. Aí eu parava um tempo no final da gestação e enquanto eles estavam pequenos para poder cuidar. Muitas vezes eu não voltei, porque teve a pandemia e tal… Estou sempre querendo aprender. Eu não sei tudo. Ainda não domino nenhum instrumento musical, apesar de ter aprendido a tocar piano por um tempo. Em casa, fico me aventurando, tirando umas músicas minhas mesmo. Então, eu tenho muito ainda o que aprender como artista. Meu Deus!
Eu reparei que você sempre tenta falar das dificuldades da maternidade também para não ficar só nas coisas boas. Qual a importância de não romantizar isso?
Romantizar só faz as mulheres sofrerem ainda mais, porque a gente já carrega nas costas aquela coisa da maternidade como imposição, como uma missão só nossa, né? Por exemplo, quando chamam pais de “pães” como se aquilo fosse o papel da mulher. Não é assim. É pai mesmo, porque pai é igual mãe. A única coisa que o pai não pode fazer é dar o peito porque não sai leite. Acho que só romantizar certas situações só traz mais sofrimento e carga. A minha filha tem hora que fala: “Não quero ter filhos”. Ela muda muito, mas eu a apoio em qualquer decisão que tomar. Nenhuma mulher devia ser obrigada a nada. Acho incrível quando mulheres falam que não querem e são decididas por saberem a importância de colocar um filho no mundo. Olha o mundo que estamos! Eu confesso que pensei muitas vezes: “Será que colocar filho no mundo vai ser bom para ele ou ruim? Eu estou podendo escolher o futuro dele. Será que, se ele fosse escolher, gostaria de viver no mundo como é hoje?”. A maternidade e a paternidade não são nada fáceis. Não devem ser romantizadas nunca.
Agora vamos voltar a falar de música! Ao longo da carreira, você já flertou com vários outros estilos. Existe algum que ainda não experimentou e tem vontade?
Olha, sertanejo é uma coisa em que eu ainda não me aventurei, viu? Tem também axé. Com o rock, eu adorei fazer “Estúdio Coca-Cola” [EP de 2007] com a Pitty. Umas coisas na minha música já têm uns elementos de rock, mas eu gostaria ainda de fazer um rock tipo Aretha Franklin e Diana Ross. É esse daí que eu quero! Seria maravilhoso. Eu sou aberta a muitas coisas. Claro que não dá para ficar fazendo um monte de coisas assim sem pensar, mas dá para gente brincar no nosso canal. Quem sabe eu começo interpretando algumas coisas, que não necessariamente entrem para o disco? Artista tem que fazer a sua arte e colocar para fora o que dá vontade. Agora com a internet, a gente faz praticamente o que quer, colocando a nossa arte lá na hora que achar melhor. É muito boa essa liberdade!
Recentemente a Ludmilla lançou um EP de pagode, a Pabllo fez um álbum de forró e tal. Você acha que hoje é mais tranquilo passear e experimentar coisas diferentes sem tanto compromisso?
Eu acho que ficou não só mais tranquilo, como mais natural. Antigamente cada um tinha um segmento e acabou. Era aquilo. Hoje foi ficando cada vez mais natural as pessoas se aventurarem em outros estilos. Eu particularmente gosto. A minha filha me apresentou, por exemplo, o Labrinth. Ela falou: “Mãe, esse cara fez um disco todo para a série ‘Euphoria’. Todo mundo fala que ela é muito boa”. Eu fiquei ouvindo e achei muito interessante como cada música tem uma atmosfera muito gostosa. Teve uma que eu falei “filha, salva porque quero fazer isso em uma música, usando essa linha, esse baixo, essa coisa que ele fez”. Eu gosto de experimentar. Acho bacana essa liberdade do artista de fazer um projeto sem pretensão.
Isso pode ser mais um reflexo das plataformas de streaming?
Verdade! A informação acaba chegando mais rápido e as pessoas se veem tendo mais possibilidades de fazerem coisas diferentes. Com certeza. Pelo menos para mim é isso. Quando você falou, pensei “quanto mais rápido for chegando informação em um grande volume, mais você vai conhecendo e se identificando com outras coisas”. Principalmente vozes que combinam com muitos estilos musicais eu acho que até desperdício não experimentar algo novo.
Já que tocamos no assunto das mudanças provocadas pelo streaming, fiquei pensando no que você prefere: trabalhar com álbuns ou investir em singles avulsos?
Eu gosto e estou experimentando esse novo formato. Ele é como um termômetro. Podemos ir experimentando e brincando com isso. É muito genial quando falamos: “Meu, agora as pessoas estão ouvindo isso e aquilo. Então, vamos lançar essa! Acho que agora é a hora”. Aí lançamos e vemos que tínhamos razão. É muito gostoso. Exige um trabalho. Não é fácil porque você lida com apostas. Você pode errar também. Acabamos nos surpreendendo. Estou gostando de trabalhar com singles, apesar de não ser coisa da geração. A minha geração sempre fazia discos em cada quatro ou dois anos no máximo. Eu achei genial, por exemplo, a ideia da Luísa Sonza fazer um álbum agora para as pessoas verem que existe essa possibilidade também. A Anitta veio com a ideia de lançar um single por mês e agora a Luísa fez um disco completo. Tudo isso é bom para as pessoas entenderem que uma hora vai ser single avulso e outra hora vai ter disco. Cada um faz aquilo que está sentindo no momento. O mais importante é a verdade. Eu, no momento, estou curtindo lançar singles a cada dois meses. Esse é o plano. Veremos como vai ser o próximo álbum, se eu vou querer fazer tudo primeiro e depois lançar. Eu acho muito gostoso trabalhar com possibilidades diferentes. Liberdade é tudo principalmente quando se trata de arte.
O que mais pode me falar sobre os próximos lançamentos?
Eu posso dizer que vou fazer uma coisa quase autobiográfica. Vou falar sobre meus sentimentos e minhas vivências. Todas as músicas que compusemos juntos tem a ver com aquilo que eu quero dizer, com momentos e experiências que vivi. “Eu Preciso Ir” fala sobre a minha separação. “Comando” é sobre meu autoconhecimento e empoderamento quando me redescobri uma mulher poderosa. Espero que todo mundo goste. Vocês vão poder me conhecer. Em cada letra, em cada música, vocês vão saber um pouquinho mais de mim e do que eu penso.
Quem tem te inspirado durante essa nova fase? Achei o clipe de “Comando” muito a cara da Beyoncé.
Own! E foi sem querer. Na verdade, foi sem querer no sentido de que deixo cada um bem à vontade na equipe. Então, tem o cara que produz. De repente, ele ouviu um elemento ali na música da Beyoncé e quis colocar. O diretor de arte falou mesmo: “Eu tirei essas referências da Beyoncé”. O figurinista não sei. De repente, ele também tirou alguma coisa de lá. Cada um tem a sua liberdade. E a Beyoncé é referência. Não tem jeito. Eu achei incrível que as pessoas fizeram essa comparação, mas de um jeito bacana e como um elogio. Foi um trabalho realmente bem feito. Não foi para copiar nada descaradamente, e sim reverenciar o trabalho da Beyoncé. Foi muito inspirador o novo trabalho dela, aquele CD audiovisual onde falou sobre ancestralidade. Eu vi aquilo e saí cheia de inspiração para fazer o meu trabalho. Não só ela me inspira, como outras pessoas também. Gosto de beber da fonte. Entre as que já se foram, tem Ella Fitzgerald, Nina Simone e Rosetta [Tharpe]. Gosto da SZA e da H.E.R. Acho o trabalho delas maravilhoso. Estou adorando Doja Cat. Quando escuto umas músicas dela, me identifico muito porque a Doja canta e rima. Adoro quem canta e rima. A Lauryn Hill também foi minha referência durante muito tempo. Ouço de tudo um pouco principalmente porque a minha filha me mostra essa diversidade toda. Tem o Lil Nas [X]! Ai, eu amo tudo!
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