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(Foto: Alex Santana/Divulgação)
(Foto: Alex Santana/Divulgação)
música

Entrevista com Preta Gil: “Hoje me vejo mais madura, serena e conectada”

Há 18 anos Preta Gil colocava no mundo “Prêt-à-Porter”, seu primeiro álbum de estúdio e símbolo de uma guinada na carreira. Ela deixava de trabalhar em uma agência de publicidade para se tornar um ícone pop dos idos anos 2000. Fez da mulher livre, que ganhou espaço nas capas de revistas e jornais de todo o Brasil, um exemplo para o filho Francisco, que não negaria as próprias vontades e viria a se tornar músico.

Juntos, eles lançam nesta sexta-feira (6) a canção “Meu Xodó”, uma declaração de amor à vida e à arte que subverte os sentidos da afetuosa expressão. A estreia chega como um clarão na discografia e rotina de Preta, que acostumada ao ritmo frenético dos shows e aparições públicas foi obrigada a se isolar e a viver uma sequência de lutos.

No clipe, gravado à beira-mar, ela conta com as participações do pai Gilberto Gil, da neta Sol de Maria Gil e do marido, Rodrigo Godoy.

Com composição do próprio Francisco em parceria com os hitmakers Pablo Bispo, Ruxell e Sergio Santos, a canção soa como um chamado ao dever de cantar. Em entrevista ao Papelpop às vésperas de celebrar 47 anos de vida, a cantora fala sobre afeto, cobranças e desafios – ao parecer questões intermináveis, entranhadas. Os principais momentos dessa conversa você lê abaixo.

***

Papelpop: Nessa letra vocês abordam diferentes significados da palavra xodó, distanciando-se de um sentido romântico. O que tem sido um xodó pra você?

Preta Gil: Com certeza, acho que é a minha família tem sido um xodó pra mim. O meu filho, a minha neta, o meu marido, os parentes… Eu pude encontrar novamente o amor a partir deles. Sinto também muita saudade dos meus fãs, que são um xodó pra mim. Isso, aliás, é uma coisa que eu sei que tá ali e que tá em suspenso, né? A gente não tá podendo se ver, mas é um xodó muito forte que eu sei que a gente vai voltar a conectar em algum momento. Mas os maiores xodós de todos, esses eu posso dizer, são a música e a minha própria existência, o fato de eu estar viva, saudável e de ter tanto acalanto.

Em resumo, tudo o que essa nova canção simboliza.

Sim. Quando o Fran me mostrou essa música que ele já tinha feito pra mim ano passado, mas eu não tinha gravado, bateu essa vontade de me conectar com coisas que me fizessem ter vontade de ver no meio de um luto muito profundo uma oportunidade de respirar e de voltar a me conectar com coisas boas. O meu estrogonofe com batata frita é um xodó, eu tenho um xodó por esse computador que uso pra trabalhar todo dia feito louca, eu tenho muito xodó pela minha neta que no meio dessa pandemia não me deixou surtar e pela música, que eu brinco dizendo que é minha boia salvação. É a mola do meu fundo do poço, que minha mãe sempre diz pra mim que fundo do poço tem uma mola e quando eu tive vontade de gravar ela, ela veio como uma mola pra me botar pra cima, me fazer emergir de novo com essa vontade de respirar, de trabalhar, de falar sobre música, de ter eternizado uma música feita pelo meu filho pra mim. Então, sim, são muito simbolismos que essa canção tem no que eu chamo de renascimento pessoal.

Ia te perguntar justamente isso. O que você ressignificou?

Tudo. Primeiro, a valorização da família nesse momento pandêmico foi fundamental. Meu filho e eu moramos no mesmo prédio aqui no Rio, somos vizinhos e essa proximidade foi realmente o que não me deixou pirar. Foi esse amor, foi essa conexão que temos muito forte, e que muitas vezes por conta do trabalho, né? De você estar em lugares diferentes, todos distantes, cada um pra um lado, cada um correndo atrás do seu, você não tem essa essa conexão. Minha relação com o meu filho nesse momento se estreitou, a gente resolveu muitas questões, a gente fez muita autoterapia um com o outro, a gente se abraçou muito, a gente se amou muito e e resultou nessa nessa canção. Mas agora me vejo como uma Preta que tem uma uma pulsação mais equilibrada, é uma uma Preta mais velha. Uma Preta que que tá entrando nesse amadurecimento, nessa velhice com mais afeto, mais carinho, mais cuidado. Uma Preta muito muito muito mais calma, mais pé no chão [risos]. Eu comecei a pandemia já doente, vindo de um Carnaval, de uma agenda intensa de shows e, de repente, aquilo tudo foi arrancado de mim. Foi de uma brutalidade muito forte. O que a gente tá vivendo, na verdade, é uma brutalidade. Você vê a sua carreira ser arrancada, o seu ofício ser arrancado de você. Eu sou uma cantora de palco, uma cantora que fazia muitos shows. Me ver tanto tempo em casa me fez querer rever muita coisa, me transformou em uma mulher mais madura, serena, conectada com a minha essência, com a minha ancestralidade, a minha fé, a minha ligação com os orixás. A minha fé, aliás, foi fundamental pra que eu sobrevivesse, fundamental pra enfrentar os lutos que enfrentei. Você fala agora com uma Preta mais sábia, que vai fazer vinte anos de carreira ano que vem e que começa a apontar pros cinquenta anos logo mais. Me sinto diferente, mas tô gostando.

Para estrear “Prêt-a-Porter” [álbum de estreia, lançado em dezembro de 2003] você também teve que passar por uma super mudança. Hoje, olha pra trás e guarda o quê desse período, dessa decisão? 

Penso que valeu muito a pena… Como valeu a pena. Ainda bem que eu tive um retorno de Saturno ali aos 27 anos, 28 anos. Mudar de ramo foi algo gritante na minha existência e me sacudiu ao ponto de dar coragem de voltar pra minha essência de cantora. Ao mesmo tempo, os dez, onze anos que tive de experiência como produtora, como executiva foram imensamente importantes pra que eu pudesse impulsionar a minha carreira. Sempre fui uma artista independente, se eu não tivesse tido esse comprometimento com o cinema, com a arte, ou produzido tanta coisa relevante, talvez não tivesse conseguido produzir a minha própria carreira que sempre foi muito suada. Sempre tive que que colocar minha mão na massa, nunca fui apadrinhada ou eleita ou escolhida. Sempre tive que ir na contramão de muito preconceito, de coisas que eu só comecei a lidar quando me tornei uma pessoa pública. Eu era uma pessoa por trás das câmeras, quando eu mudei de posição houve um ônus e um bônus. Encontrava pessoas que me admiravam e curtiam o que eu fazia, mas também havia muito preconceito, figuras muito opressoras… imagine o contexto há 20 anos pra uma figura como eu era. Foi um divisor. Eu falava de coisas e assuntos que hoje a gente vê com naturalidade, mas que eram considerados escandalosos. Eu falava de corpo livre, de amor livre e eu falava da minha bissexualidade com naturalidade, do meu corpo com naturalidade. Aquilo num primeiro momento foi muito chocante pra sociedade, tive que lidar com muitos preconceitos e sem bagagem. Era eu sendo eu, eu não tinha letramento, não tinha estudo. Eu somente era e não tava nem um pouco preparada pra enxurrada de preconceito que encarei. Foi se formando aí uma vivência, alguns frutos. Fui testemunha, vi nascer uma vontade nas mulheres, na comunidade LGBTQIA+, que ia se impondo, se empoderando, se juntando e lutando. As individualidades passaram a ser coletivas. Mas eu não deixei de apanhar, eu apanho até hoje, né?
Ainda existe quem te cobre algo? 
As pessoas? Elas falam. Eu sou um ingrediente muito bom pras pessoas falarem bem e falarem mal, pra inventarem  coisas. Isso se relaciona até com o meu Odu, com o meu orixá. Faço aniversário nesta semana e fico pensando em como tenho essa coisa de de causar estranheza versus causar muita paixão. É com essa sensação dúbia que eu lido há vinte anos, mas vem mudando. Talvez tenhamos sido agentes dessas mudanças.
Sente que a forma com que o público te via mudou nesses quase 20 anos? Você, sendo uma mulher libertária, que sempre auto afirmou, que lição passou pro Francisco sobre ser livre, que pretende deixar também pra Sol?

O Francisco, mais do que receber uma lição, ele viveu tudo isso comigo. E uma das que é mais emblemática é essa busca pela nossa essência e pela valorização de quem somos. Quando ele nasceu, eu não era cantora. Tava ali começando, eu trabalhava numa agência de publicidade quando fiquei grávida e depois fui por esse caminho da produção, da publicidade. Aos oito anos de idade ele viu a mãe largar aquilo tudo, uma vida estruturada e com grana dizendo ‘Não quero mais nada disso’. Eu, literalmente, comecei de novo. Ele sempre do meu lado vendo a dor que tudo isso provocou em mim, mas mantendo a alegria de ser livre, de se libertar dessas dessas amarras que você mesma vai criando, né? Eu tinha medo dessa coisa da família, pensava na morte do meu irmão lá atrás. Eu fugi da minha essência. Voltar e ter esse resgate dá uma sensação muito forte de encontrar quem você é. Então, eu sempre criei ele com muita liberdade intelectual pra se encontrar, sem nenhum tipo de pressão e eu tenho muito orgulho. O Fran é um cara que hoje é praticamente meu pai assim, que sempre teve essa função de me educar. Aliás, essa coisa de que a gente educa os filhos é uma enorme balela, são os filhos que educam a gente. Eles vão trazendo coisas pra nossas vidas e o Fran, sendo parte dessa geração, ele já nasce um homem desconstruído, com valores muito mais atuais e muito interessantes. É muito louco você ver esse papel invertido, o filho que instrui, que alimenta de afeto, amor e arte, de uma forma natural. Todo o peso que jogaram em cima de mim se tornou um filtro que tem a função de deixá-lo desabrochar da maneira mais linda, sem se desvirtuar como eu me desvirtuei.

Tá mais fácil de dominar o ego criativo?

O meu ego criativo foi completamente aniquilado pela pandemia. Me cobraram bastante uma movimentação nos últimos meses, lançamentos, projetos… e eu sofrendo, triste, angustiada, tanto com as dores do mundo, quanto com as minhas próprias dores. Pensando em como o meu trabalho, o meu ofício foi atingido, mas principalmente na forma com que o mundo tem recebido esses golpes. Confesso que fiquei desprovida de ego por um tempo, mas esse desejo criativo voltou a existir no ponto mais essencial, onde ele tem que estar o tempo inteiro. É no amor, no afeto e no reconhecimento da arte pela arte onde ele volta a brilhar. Nada além disso. A minha arte vai atingir um público pela essência da minha arte e não por um planejamento. Hoje em dia, com certeza, penso que primeiro a essência de uma criação é a parte mais importante. É preciso lançar canções que são de verdade, que te representam e só depois, automaticamente, elas vão chegar aos meios e dos canais da atualidade. Há vinte anos era o rádio, o CD… Hoje em dia é o streaming e tantos outros meios. Não sou eu ou o mercado que vamos inventar uma forma de levar essas mensagens até o público, por mais que se tente. Você vê um artista superplanejado e a internet de repente te mostra alguém do dia pra noite, com uma força autêntica. ‘Meu Xodó’ simboliza isso, mais uma vez. É essa dor que não passa, uma dor advinda das perdas que sofremos, da minha avó, do meu melhor amigo, de quase 600 mil pessoas. Dor pela ignorância, pelo negacionismo e a maldade, sentimentos que são combinados ao amor que resiste pela arte. É meu berço presente me lembrando que você não para de sofrer e vai ser feliz. Existe um equilíbrio de adequação que entendemos apenas na maturidade. A música me ajudou nesse processo. Vai ter que ser assim pra todo mundo.

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Ouça “Meu Xodó” também nas plataformas de streaming.

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