Não é incrível quando a gente se enxerga nos conteúdos que a gente consome? Todos nós temos vivência e experiências individuais, mas quando assistimos a um filme ou série e nos reconhecemos num personagem, nós nos sentimos menos sozinhas. “Tem alguém que já viveu a mesma coisa que eu”, a gente pensa. Com “Manhãs de Setembro”, do Amazon Prime Video, é assim. É um despertar de pertencimento que é raro de sentir para uma parcela tão marginalizada da sociedade: as mulheres trans.
Ao longo dos anos, a representatividade das personagens trans na televisão passou por lentas transformações. No senso comum, ela sempre foi mostrada para despertar curiosidade aos espectadores cis. “É homem ou mulher?”, “Mas como será que é entre as pernas?”. Sempre foi motivo de espetacularização ou sarro. O jogo virou quando em “Manhãs de Setembro” a gente conhece Cassandra, vivida por Liniker, uma motogirl de aplicativo que começa a série finalmente conseguindo seu próprio teto para morar. Porém, ela é surpreendida com a visita de uma ex-namorada, Leide, e uma criança de dez anos que diz ser o filho dela. “Esse é o meu pai”, Gersinho diz. Os dois estão em situação de rua e a empatia de Cassandra é colocada à prova justo num momento tão especial para ela.
Os cinco episódios de “Manhãs de Setembro” estão repletos de situações comuns, frustrantes e desafiadoras que Cassandra vive e que fazem parte também da rotina de uma mulher trans. Gersinho, por exemplo, não entende a importância de respeitar os pronomes de Cassandra. Ele continua chamando ela de pai e isso a incomoda de forma que ela não consegue criar tantos sentimentos por ele. Como gostar de alguém que não te entende como mulher? A protagonista passa pela mesma coisa com estranhos na rua, com Leide, como se a existência dela ainda não fosse validada pela sociedade. Mas Cassandra já criou uma casca tão grossa sobre isso que apenas responde prontamente e volta a tocar os outros dramas de sua vida.
Outro ponto interessante que a série traz para os holofotes é a questão do afeto. Cassandra tem relação com Ivaldo (Thomas Aquino), um garçom que gosta muito dela, porém é casado. Cassandra aceita o papel de amante, mas vive com a certeza de que será colocada de lado no momento que a família de Ivaldo ficar no pé dele. Numa cena importante da Cassandra entre amigas, a personagem de Linn da Quebrada desabafa sobre nenhum homem querer assumir uma travesti e que amor não é para elas. O papo com certeza abre uma realidade inédita para muitos espectadores, mas para pessoas trans, a conversa é como ver uma roda de amigas na TV.
Ver todas essas questões abordadas numa série é uma experiência transformadora? Sim. Mas outra coisa linda de ver é que Cassandra também é muito mais que isso. Dá para citar dezenas de cenas que normalizam a rotina de uma mulher trans. Vemos Cassandra acabada com a cara amassada depois de acordar, tendo uma cena de sexo digna, indo ao banheiro, vivendo um dia de mal-humor…Todos esses fatores desmancham aquele estereótipo caricato, misterioso e até bestializado que o entretenimento sobre botou em cima da representatividade trans na TV.
Estamos acostumadas a ver séries sobre a vida de pessoas cis na cidade grande. Os dramas amorosos do grupo de amigas na vida urbana badalada e as fofocas e intrigas de um grupo de colegas. Entretém? Sim! Mas é muito mas incrível quando a gente se vê nessas narrativas. Por isso “Manhãs de Setembro” é uma conquista enorme por trazer uma mulher trans preta interpretando outra mulher trans preta da forma que foi feita na série. Essa é a importância da representatividade: mostrar uma realidade diferente para uma maioria e gerar identificação para a minoria retratada.
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