O sentir sempre movimentou os integrantes da banda Tuyo em direção à arte. Deixaram o coração de todos tocados com as composições de “Pra Curar” e “Pra Doer”. Até fizeram a galera dançar (com a mão no peito) com um posterior disco de remixes. Agora, depois de tantas histórias e movimentações, sejam elas literais ou simbólicas, o grupo aterrissa sua nave repleta de emoções em “Chegamos Sozinhos em Casa”, novo álbum.
Lançado há uma semana, em 27 de maio, o projeto é feito de laços do início ao fim. Não apenas dos elos que unem o trio formado por Lio, Lay e Jean, mas também algumas parcerias que trazem novos ares melódicos aos trabalhos do grupo. A produção musical tem toques de Janluska, jvck, Bruno Giorgi e Lucas Silveira. Ao lado de Luccas Carlos, Jonathan Ferr e Jaloo, o vocalista da Fresno, inclusive, também é uma das colaborações presentes nas faixas.
Há poucos dias, o Papelpop conversou com os integrantes da banda. O trio paranaense falou sobre o momento que simboliza a chegada do primeiro volume do disco, a escolha da temática, faixas potentes como “Pra Curar” e “Tem Tanto Deus”, além do significado de serem elogiados pelo jornal The New York Times pela apresentação no Festival SXSW, em que, segundo o jornalista Jon Pareles, eles dividiram “vocais harmônicos em canções que mesclam indie rock com eletrônico e tendências rítmicas brasileiras”.
Antes de iniciar a leitura da entrevista completa, anote na agenda: o projeto que recebe direção musical de Janluska e da própria Tuyo vai ser esmiuçado amanhã durante uma live do circuito #EmCasaComSesc. Será a primeira apresentação ao vivo do trabalho. A transmissão começa às 19h, no Youtube e Instagram. O acesso é gratuito.
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Papelpop: Com esse disco vocês chamaram a galera para entrar na casa de vocês de muitas formas. É um processo muito íntimo. Nossa casa pode ser o lar, nosso coração, mente, por aí vai. Como foi a construção desse disco e a formação desse convite artístico?
Lio: Eu acredito que o nosso principal mote de composição é a confissão, de dizer o que sente, de falar sobre si. Dá pra dizer que o disco é uma espécie de ata de assembleia de tudo que a gente viveu nos últimos tempos. Então, a coisa do convite para entrar em casa, ele não é uma metáfora que quisemos explorar, é uma história. Morávamos juntos e nos separamos. Começamos a melhorar de vida e cada um arrumou o seu cantinho. Eu gostei muito de termos começado essa conversa com a ideia de receber visita, sabe? Que é uma parada que não fazemos há muito tempo, que a gente não pode ser a visita e nem receber. Quando pensamos nesse disco, não imaginávamos que estaríamos numa situação parecida com essa no lançamento. Talvez ele tenha ganhado uma carga de preciosidade pra mim, pelo menos ainda maior, porque marca também o quão saboroso é dividir território com alguém.
Lay: Sim! E o que eu acho massa também é que pra dividir primeiro você tem que ter. Também existe o convite pra nós mesmos entendermos o que é a nossa casa, né? O que é a minha casa? Quem é o que? Quem eu quero que saia? O que eu quero manter? O que eu não preciso mais manter? Acredito que também tem muito disso, de começar a mapear o lugar, mapear o seu território e criar. Porque a gente vive em transição, a gente já tentou se convidar para vários lugares, para várias casas, o que não deu muito certo. E aí, criar sua própria casa, seu próprio lugar, espaço seguro, é uma tarefa muito difícil.
Papelpop: A casa também é um ambiente em que muitas pessoas estão passando a maior parte do tempo. Fomos obrigados a mudar a nossa vida por conta de um ser invisível. Pensei muito nisso quando ouvi o primeiro single, “Sem Mentir”. Nesse contexto, o que o último ano contribuiu ao projeto final?
Jean: Deu tempo de olharmos para esse novo movimento e aceitar ele, sabe? Internalizar. Porque é uma ironia o disco ter sido concebido antes da pandemia e ele se encaixar tão bem com o que estamos vivendo hoje. Antes da pandemia, eu sinto que estávamos falando sobre essa individualização de cada integrante. Não é sobre uma separação, é um fortalecimento de cada um. No momento em que você tá na rua, você tá interagindo com tantas pessoas, é muito fácil se perder, é muito fácil esquecer de quem você é ou conseguir se ouvir pra entender o que você realmente precisa. A gente precisa ser autossuficiente, tanto dentro da sua própria cabeça, quanto nas elaborações que você tem. Seja em tudo o que vai fazer no dia, numa rotina prática, ou sobre como você mesmo se enxerga. Então, era muito sobre isso antes da pandemia. E agora o disco está materializado neste contexto de chegar sozinho em casa, de ser obrigado a se ver sozinho, a ser forçado a ser autossuficiente.
Papelpop: Sobre os vídeos que foram lançados juntos do disco, é bonito ver como esse compartilhamento dos registros da rotina de vocês agrega para um disco que se chama “Chegamos Sozinhos em Casa”. Como surgiu a ideia de fazer essas gravações e incluí-las no lançamento?
Lio: A gente estava conversando sobre como é importante criar desdobramentos de linguagem para um disco. Gostamos muito disso. Eu venho do universo da literatura, de ficção, trabalhei muitos anos com incentivo a leitura de literatura e de repente fui parar na música. Gostamos de pensar na multiplicidade da linguagem, não que o filme ou a imagem precise servir a canção, que é o cerne. Eu entendo enquanto artista que a dureza do momento que a gente enfrenta é justamente a ausência de espectros, de perspectivas, a falta de estímulo que a gente tem desde cedo, de perceber as coisas menos bidimensionais. Sabemos que a galera gosta de escutar música no YouTube. Joga lá na televisão e vai limpar a casa. Eu dropei a ideia e executamos juntos. Pensei que seria muito interessante nesse momento a gente se fazer companhia, o universo virtual tem servido de andador nesse momento difícil em que não podemos sair. Para ajudar em casa, usamos o virtual, né? Para se encontrar, conhecer ou ver outras pessoas. Que é um bom jeito de estar mais perto de quem nos acompanha, quem tá experimentando o disco. Você coloca os visualizers lá na tua TV e eu tô lá comendo, vendo vocês limparem a sala, a Layane está tirando cochilo enquanto você também cochila…não queríamos criar nenhuma realidade de passado, de futuro. Queremos falar com o tempo de agora.
Papelpop: Gosto muito da maneira como conseguem unir questões cotidianas com a poesia, com sentimentos. Por exemplo, a forma como narram uma história em “Sonho da Lay” e também no início de “O Jeito é Ir Embora”. Isso também acontece em trabalhos anteriores. Me contem sobre os processos criativos, as vivências e experiências que colaboraram com essas músicas.
Lio: Acho que a gente divide muitos episódios marcantes. Estávamos presentes na vida um do outro em muitos momentos. Temos isso no nosso catálogo de assuntos. Nosso abandono da fé cristã, primeira grandessíssima decepção amorosa da Layane, a saída do Jean da cidade natal dele, que é Vitória, Espírito Santo, e como ele se relaciona com essa memória…e outros episódios ainda mais duros.
Lay: Todos os movimentos de saída de um lugar também. Os movimentos da saída de Londrina, por exemplo. Todo mundo se acompanhou, apesar de não ser tudo ao mesmo tempo. Os processos de sair de um emprego, entrar em outro emprego, processos de faculdade, todas essas frustrações e as coisas que a gente conquistava.
Lio: Sinto que são marcações de tempo, marcações cíclicas, acredito que o nosso assunto é o existir e os trajetos do existir. Gostamos de colocar uma lupa nesses ritos, nessas marcações de tempo. E acho que a grande lupa de “Chegando Sozinhos em Casa” é o que acontece depois dos vinte, pra algumas pessoas, depois dos trinta pra outras, que é isso de sair da casa dos pais, se separar e ter que morar sozinho, terminar a faculdade, ter que sair da república ou apenas ir para outro lugar. Trata-se daquele momento que você tem que reorganizar o que fica dentro da mala, o que vai pro espaço no guarda-roupa, se você fica com aquele quadro do lado da mesa de cabeceira ou não.
Lay: A gente presenciou nossas vidas acontecendo juntas e também cada um foi vivendo a sua. Enquanto algumas coisas eram convividas, outras eram super diferentes. Mas sinto que, uma das coisas que mais me inspira hoje em dia, na hora de pensar e de escolher o que eu quero elaborar na minha cabeça, colocar no papel, são as diversas conversas que a gente tem no final do dia, sabe? Saber um da vida do outro, saber como é que está. E aí, a gente engata nessa e surgem conversas que são muito legais sobre tudo, sobre o mundo, sobre o universo, sobre a morte, sobre perda, sobre amor e cada um vai falando. Sinto que essas coisas também me inspiram muito.
Papelpop: Durante o show realizado no Mimo Festival deste ano, fiquei tocado pela experiência sensorial que vocês propuseram, como fechar os olhos e imaginar o futuro, quando tudo isso acabar. De que forma o novo disco se encaixa nesse caminho de chegar nesse lugar, nesse tempo que a gente espera tanto?
Jean: Quando estávamos no estúdio fazendo disco, nosso sonho era fazer arranjos que servissem ao show. Porque fizemos o “Pra Doer” e o “Pra Curar” como álbuns para ouvir em casa, mais introspectivos mesmo, sabe? A ideia para esse disco era ter uma função mais enérgica para o show, porque antes a gente adaptava o repertório e arranjos para as músicas funcionarem melhor na execução ao vivo. E assim que terminamos de gravar a voz da última música, veio a notícia do lockdown. Março de 2020. A ideia dele era fazer um rolê ao vivo e não existe mais. Será que a gente ainda existe? Será que isso ainda é uma profissão? Acabaram os shows! Meu Deus! [risos]
Lio: Talvez a contribuição do disco para o futuro seja o fato dele ter sido feito pensando num futuro que seria imediato, mas rolou esse parêntese, esse hiato. Então, talvez essa seja a principal força dele. De coisas da nossa obra, fora o disco de remixes, é também o mais upbeat.
Lay: É um exemplo bem didático do que acontece sempre: você planeja, você pensa no futuro, você pensa no que que seria o ideal, várias coisas no caminho acontecem que você pode chegar mais próximo desse o futuro que você imaginou, mas às vezes não é exatamente assim, né? Poxa, vida real não é assim, que você planeja uma coisa e ela acontece do jeito semelhante. Tem essa coisa de se reajustar. Eu lembro que a gente reajustava o calendário toda semana, toda semana. “Não, pelo menos vamos deixar umas datas possíveis lá? Tudo que for dentro do possível para o lançamento.” Aí, toda vez que chegava perto tínhamos que mudar. A gente ainda tinha a esperança de conseguir, de que a quarentena acabasse e um milagre acontecesse.
Lio: O disco também é uma espécie de fio condutor pra estimular quem ainda não viveu esse momento de se olhar no espelho e ter que se encarar? Pra quem conseguiu fugir até aqui. A gente foge porque tem medo porque se sente inseguro. Acho que “Chegamos Sozinhos em Casa” tem também essa faceta de um território pro outro. Às vezes a gente chega em casa, tá sentado na sala, tá engasgada e não sabe porquê. Você precisa chorar. Nesses casos, às vezes vai assistir uma novela, um filme triste ou vai ouvir um disco. De repente nosso álbum possa ser esse fio condutor que te protege na hora de se por vulnerável. Tem que ter alguém te guardando enquanto você tá prostrado, né? Pra nada te atingir. Pode funcionar.
Papelpop: O disco foi divido em dois volumes. Como vocês fizeram a divisão? Teve alguma temática ou motivação que fizeram essas 9 músicas estarem na primeira parte?
Lio: A banda Tuyo não desistiu da democracia, apesar dos ventos contrários. Então, tudo que é feito dentro desse território é feito a partir do voto. [risos]
Lay: A gente tentou equilibrar o máximo possível como temas e músicas que se assemelham na condução.
Lio: Esse primeiro volume tá falando bastante sobre movimentação. Entradas e saídas. Movimentação que você faz em direção a você mesmo em “Sem Mentir”, que você faz na direção do teu subconsciente no “Sonho da Lay”, de volta pra tua casa em “Vitória, Vila Velha”, há um fechamento de ciclo em “O Jeito é Ir Embora”. Tudo no primeiro disco tem muito movimento geográfico mesmo. Tem esses mais metafóricos de entrar na própria cabeça, mas tem esses de liberar o apartamento, fazer a faxina, pagar a pintura e ir embora. Eu sinto que o segundo volume reserva outros tipos de tema.
Papelpop: Em uma entrevista, Lio, você disse que “o sentir era universal”. Sinto que há muitas mensagens e sensações que podem ser extraídas tanto das letras e das melodias do álbum. Me contem sobre a produção sonora e melódica de “Chegamos Sozinhos em Casa”.
Jean: No momento em que começamos o processo desse disco também estávamos com muita vontade de compartilhar essa produção com outras pessoas. Queríamos convidar artistas e outros produtores. Olhamos para a mesa e tinha muita música ali. Decidimos organizar tudo e ter um impulso pra que essas pessoas nos acompanhassem, porque se a deixássemos tudo isso a mercê de muitas pessoas, podemos perder a identidade inconscientemente, né? Decidimos criar as pré-produções e compor em cima desses beats, dar uma estética pra essas faixas. Porque aí , o que for levantado vai ser em cima desse sentimento que a gente criou. Assim, nos sentimos mais seguros com o que estava vindo, com a música que estávamos produzindo. Dava pra entender melhor a história de cada música porque ela partia de nós. Então, construímos esse território para que o produtor pudesse incluir a identidade dele também. Ele sabia onde estávamos pisando. Ficou legal!
Lio: Esse segundo disco é bastante identitário. Apesar de tocarmos e vivermos juntos há mais de dez anos, a Tuyo tem quatro, cinco anos. Então, a gente segue bastante no controle. Muito firmes na decisão de seguir controlando a nossa linguagem. Fizemos juntos uma cartilha para que os produtores pudessem operar livremente, mas mantendo a nossa identidade.
Papelpop: Vocês foram aplaudidos pelo The New York Times pela apresentação no Festival SXSW. Sendo uma banda independente brasileira formada por três artistas negros, como receberam essa notícia?
Jean: Ainda sem acreditar. Vibrei no dia, comemorei pra caramba, achei muito doido, mas tem um lado muito forte dentro de mim que não quer acreditar, que pensa que isso não é verdade. A gente tá vivendo muita coisa legal, passando muita barreira da nossa vida, assim, como indivíduos mesmo, sabe? Não apenas como um grupo musical. Eu acho que esse detalhe de sermos três jovens negros tem uma relação muito louca com a notícia. Quando a gente se juntou pra fazer música e nossa banda, queríamos fazer nossa arte. Depois pensamos “Vamos viver disso. Vamos levar mais a sério!”. E aí, eu acho que tem uma coisa dentro de mim que não me permite viver, acreditar ou aceitar essas coisas. Uma autossabotagem e o jeito que o mundo faz a gente se perceber. Ao mesmo tempo eu comemoro e luto contra um movimento externo pra me autorizar a receber uma notícia dessa, que não é comum. Enquanto jovens negros e brasileiros, ser reconhecido por uma mídia internacional tão importante como essa é uma coisa muito maluca. É muito doido.
Lio: Ao mesmo tempo eu sinto que um outro aspecto desse episódio nas nossas vidas leva a gente pra uma reflexão antiga. Conversamos muito sobre como vamos dar um jeito de alterar a nossa realidade, de construir um lugar que a gente seja livre pra receber as mesmas oportunidades que todo mundo recebe. Acho que esse é o caso de qualquer, entre milhões de aspas, minoria. Pode sair meio superficial, mas acredito que a solução que a gente busca está na tomada de poder. Estou falando de espaços, lugares. Não estou falando aqui desse discurso de Instagram. Quero ter o direito de querer e alcançar o que eu quiser, que é o mínimo. Não acredito mais que eu consiga isso no textão. Acredito que consigo isso mudando símbolos. Eu cresci com a Xuxa, alguém vai crescer com a Iza. Eu cresci com a Angélica, alguém vai crescer com a Taís Araújo. E não porque ninguém escreveu um textão, mas porque existia um lugar de poder, alguém conseguiu hackear um sistema que foi feito pra que nós não entrássemos. A gente hackeou e entrou. Alguém tem que correr pra o próximo poder caminhar, né? Todo poder a Jup do Bairro! (Todo poder a Jup do Bairro!) Sinto que figuras como como nós, Liniker, Jup do Bairro, Ventura Profana, Emicida, Fióti, a própria Iza, enfim, essas pessoas tem restabelecido as lógicas do que é bom para o imaginário coletivo. E eu gosto muito da ideia de que ainda que lá longe, a gente também faça parte dessa dessa movimentação de tomada de poder.
Papelpop: “Tem Tanto Deus” é um faixa muito forte que pode se relacionar com inúmeras questões. Divinas, religiosas, de relação de poder, por aí vai. Analogias não faltam. O que motivou a criação da faixa?
Jean: Eu lembro de um momento que a Lilian estava muito insegura com essa música. Acho que por essa questão óbvia, quando a gente tá no Brasil, que é majoritariamente cristão, além de um cristianismo completamente duvidoso também. Tinha uma preocupação com isso, mas também com o entendimento das pessoas. “Será que o pessoal vai me entender? Como é que vai ser?” Essa música tem um peso histórico, uma carga muito pesada. E agora que a gente lançou o disco, a gente tá relaxando e começando a olhar pra história com outra perspectiva, sem a ansiedade do lançamento. Hoje se você olhar pros acessos da Tuyo, “Vida Louca” é a mais escutada no Spotify. E teve essa mesma relação, a Lilian também teve a mesma preocupação com ela. “Tem Tanto Deus”, apesar do curto tempo, tem tido um resposta muito doida. Estou feliz! Foi difícil fazer essa música.
Lay: Sinto que essa música é sobre ter coragem de falar sobre o que todo mundo pensa. Não no sentido de “agora vou dizer umas verdades!”, mas de encontrar alguém que esteja vivendo o mesmo conflito. Lembro que fui entendendo o meu desligamento do cristianismo por conta de você (Lio). Exatamente. Porque foram questões que você foi provocando em mim. Fui assistindo, vendo a Lilian se questionar até não sobrar mais nada. Isso tudo vira um retalho estranho cheio buracos e lacunas que vão aparecendo. Nisso, você não sabe mais o que sobrou e o que está te estruturando. Fui vendo a Lilian viver esse processo e tentando entender qual era o meu. Porque não é só sobre isso, é sobre a minha perspectiva de vida, do que a minha vida é pautada. E antes era pautada por culpa, por dever, muitas coisas não só na religião, mas a relacionamentos também. Sinto que essa música provoca, obviamente, o questionamento da sua raiva, da sua culpa, de seus pecados e tudo que envolve a crer em alguma coisa e ter fé. O que você abre mão por causa da fé, o que você sacrifica, porque tem a ver com sacrifício. Mas depois você vai vendo que esses conceitos vão se espalhando por tudo que você toca. O jeito que eu falo, o jeito que eu me relaciono, o jeito que eu ando na rua e absorvo o que eu estou vivendo.
Lio: Nascemos acreditando na punição enquanto método, né? Porque tem que ter um “senão”. Isso nos escraviza, a gente tá preso aqui assim por isso. É tão violento e cansativo questionar isso, porque é uma questão que acaba em si. Não vou construir uma nova sociedade num terreno que eu vou comprar. Não sou branca. Temos outras prioridades. Os nossos estão sendo assassinados, preciso correr com outras coisas antes de chegar nesse lugar. Eu acredito muito que “Tem Tanto Deus” ultrapassa o lugar da religião, mas passa por ela por conta da questão da culpa, da cobrança, da punição e se conecta também com o restante do tema do disco que tem a ver com esse rito de passagem. Quais são os novos ritos de passagem da vida adulta? Hoje a gente sabe que é o boleto, que é a cobrança.
Papelpop: “Pra curar” é um lembrete ao álbum anterior e tem frases emblemáticas que podem muito bem se relacionar com o agora. “Nenhuma dor dura pra sempre, mas esse chegou pra me desafiar” e “Nenhuma dor é pra curar” são versos que vão ecoar por muito tempo na cabeça das pessoas. Podem me falar um pouco sobre?
Lay e Lio: A gente é muito debochada! Adora se contrariar. [risos]
Jean: É uma contrariada sincera. Assumir isso nessa música é legal pra caramba, é um deboche, mas é verdade mesmo. A gente às vezes acha que vai se curar fazendo um processo, mas quem garante que vai mesmo? A famosa sangria. Aprender a conviver com a própria dor, lidar com isso. Não apenas as que provocaram em você, mas as que você mesmo se provoca. Faz parte.
Lio: Eu quero deixar claro que não estamos falando de resiliência, em momento nenhum queremos romantizar sofrimento imputado pela lógica que a gente escolheu viver em sociedade. Estamos falando sobre aquele sentimento de pânico, que te dá quando você vê aqueles especiais da Netflix, filmes ou coisas “Rick and Morty vibes”. Quando você assiste dá uma risadinha, mas quando coloca a cabeça no travesseiro pensa “Meu deus! Talvez eu nem exista, talvez eu seja o sonho de alguém, talvez eu seja uma maquete”. Vivemos combatendo essa ideia de “a pessoa me enganou, levei o golpe porque a vida quis me ensinar alguma coisa”. Nada! Você levou o golpe porque a outra pessoa é mal caráter. Eu não queria precisar passar por todas as coisas que eu passei pra aprender alguma coisa, eu aprendo lendo. Escreve pra mim! No “Pra Doer” e “Pra Curar”, em nenhum momento pensamos em romantizar a dor. A gente pensou em não negar que ela existe. A ideia era assim: “Machucou? Não adianta você fingir que não tá lá, tá aberta a porcaria, sabe? Olha lá, vai ter que sentir.” Na música “Pra Curar” , brincamos com essa ideia, brinca com esse com o assombro que é existir e a gente tendo sido estimulado a vida inteira a sermos protagonistas, muito especiais. É dos alicerces do capitalismo, né? Você se sentir a pessoa mais especial, que precisa de alguma coisa para viver melhor. E aí você se dá conta, quando tem contato com a realidade, que você não é nada. Dói. Talvez não traga nenhuma reflexão, a não ser dor.
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