Shirley Manson é o que se pode chamar de morning girl. Da costa Oeste dos Estados Unidos, ela atende o telefone às 6h da manhã (10h no horário local) para uma entrevista com o Brasil. É a primeira conversa do dia em uma longa agenda que tem feito para divulgar o disco “No Gods No Masters“, sétimo trabalho de estúdio do Garbage.
Lançado na última sexta-feira (11), ele reafirma mais uma vez a decisão do quarteto, formado ainda por Duke Erikson (guitarra, baixo e teclado), Steve Marker (guitarra e teclados) e Butch Vig (bateria e produção), de dar voz a todos e todas que se consideram um ponto fora da curva, cantando sempre o agora.
Com mais de 25 milhões de discos vendidos, há quem diga que eles tenham marcado uma época a partir de hits como “Only Happy When It Rains“, “I Think I’m Paranoid” e “Bleed Like Me”, transformando a juventude ao libertá-la do conservadorismo. Basta fazer uma audição mais atenta de trabalhos lançados nas décadas seguintes para perceber que o tempo é que acompanha o Garbage, não o contrário.
Aos 54 anos, mais da metade deles na estrada, Manson vê com interesse mudanças ocorridas na música, entre elas o fato de os palcos terem passado a receber com o devido protagonismo garotas insurgentes como ela. Não deixa de fazer críticas, por outro lado, ao funcionamento da indústria nos bastidores.
Se sua maior arma sempre foi a voz, ela agora a utiliza a fim de descrever sob a própria perspectiva a ação melindrosa de charlatões e falsos messias que estão no poder. De um extremo a outro, do rock urgente e combativo às baladas existencialistas, cria ao lado dos parceiros um mundo de utopias, memórias e questionamentos.
Nesta nova jornada, o Garbage traça uma realidade brutal e amável em proporções equilibradas, conduzindo direto para a fogueira machistas, adoradores do dinheiro e inimigos dos direitos humanos. Em “GodHead“, por exemplo, a letra diz:
“O centro do mundo é você
E a verdade continua pesando
Você é uma divindade
Você me enganaria
Se eu tivesse um pau?”
O que comentam por aí, definitivamente, não importa. “Encaixaram a gente em qualquer lugar agressivo e barulhento demais pra sermos considerados uma banda pop”, diz Shirley, bem-humorada, referindo-se às múltiplas classificações dadas à banda. “Mas aí fomos bem-sucedidos demais pra sermos considerados artistas alternativos ou mesmo indie”.
Nesta entrevista, a vocalista fala sobre o novo momento e se propõe a refletir sobre temas como política, comportamento e armadilhas da criação.
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Papelpop: Vocês estreiam um trabalho que faz dançar, sentir saudade de shows, ao mesmo tempo em que coloca o dedo em várias feridas. ‘No Gods No Masters’ vai direto ao ponto, enquanto a maioria dos artistas tem lançado discos palatáveis para os ouvidos alheios. Foi uma forma de convidar as pessoas a pensar sobre o que está acontecendo no mundo?
Shirley Manson: Na verdade, é mais uma declaração pessoal do que eu acho que está acontecendo. Em outras palavras, não vou dizer a alguém para pensar mais, ou mesmo fazer isso esperando que concordem comigo. Nessas canções só estou afirmando ‘Isso é o que eu penso, discordo daquilo e discordo disso’. Neste LP eu me proponho uma inclinação para fora de uma perspectiva pessoal. É a tentativa de entregar uma proposta simples.
“Wolves” é uma faixa que provoca identificação rápida ao levantar uma série de questões sobre essa luta interna contra os próprios demônios na tentativa de ser alguém melhor. É um desafio aceitar que nossas personalidades são complexas, enfrentá-las de fato?
Não, exatamente. O fato de sermos seres-humanos em um mundo como esse é, por si só, complexo e complicado. Mas eu sempre soube que nós somos contraditórios e capazes de realizar tanto grandes atos de generosidade, quanto também em suas fraquezas cederem à crueldade. Então a natureza da humanidade não me surpreende mais, é algo que sou fascinada, amo examinar comportamentos. Me ajuda a entender quem somos, em que lugar me fixo no mundo.
As pessoas seguem obcecadas, principalmente no Instagram, com padrões inalcançáveis de beleza. “Unconfortably Me” é uma das faixas que mais me tocou porque você faz uma reflexão sobre não se sentir confortável consigo mesma. Penso em como meninas jovens e pessoas queer, principalmente, vão receber essa mensagem. Por que ainda é importante falar sobre isso?
É engraçado porque, quando começamos a compor esta canção, eu estava pensando em mim mesma quando era mais jovem. Nesse dia eu tinha bebido alguns coquetéis, bem fortes por sinal, e aí o primeiro verso surgiu na minha mente. Eu enveredei por um caminho que me trouxe até onde estou agora e continuo me sentindo desconfortável nele, nunca me encaixei bem. Eu sempre me senti solitária. Sou um ponto fora da curva, do mesmo jeito que o Garbage é uma banda que é um ponto fora da curva na música também, nenhuma outra banda fez o que fizemos. Parece que nós realmente somos um tipo de ilha em um infinito mar de arte [risos]. Encaixaram a gente em qualquer lugar agressivo e barulhento demais pra sermos considerados uma banda pop. Mas aí fomos bem-sucedidos demais pra sermos considerados artistas alternativos ou mesmo indie. Então surfamos, existindo simplesmente nesta bolha peculiar e pequena, desconfortável às vezes. Acho que em algum ponto da vida me senti um pouco feliz por ser assim também, tá tudo certo não em se encaixar.
O Garbage teve sua identidade moldada muitas vezes pela tecnologia, mas ela própria, aliada ao capitalismo, também passou por um processo que me parece uma espécie de “endeusamento” por parte das pessoas. Existe uma lógica perversa por trás dessas coisas, artistas também têm que vender mais e mais, estar dentro de uma caixa… Como se desvencilhar disso na indústria musical e ainda assim se manter relevante?
Sabe, esta é uma pergunta difícil, complexa…
… Eu tinha que fazê-la [risos]
Não, não! Eu amo perguntas complicadas, acredite! É interessante pensar porque eu acho que existe muita pressão sobre os artistas para se conformar, como você disse, com a ideia de vender pencas de disco. E acho que todos se sentem, ou uma boa parte deles sente, que eles se arriscassem ou tentassem a sorte, poderiam ser comercialmente punidos. É algo predominantemente capitalista, esse interesse constante de só fazer e ganhar dinheiro. Estamos vendo com frequência aí fora uma geração de músicos cansada de assumir esses desafios em suas respectivas carreiras. Ironicamente, ao se amedrontarem, eles se tornam defasados, entende? Eu acho que você tem que continuar seu juramento, seu compromisso enquanto artista pra sobreviver a essas mudanças que ocorrem décadas adentro e vão seguir acontecendo. Cada geração tem esse poder de virar o disco, as tendências musicais existem e em um minuto você está no centro, no outro você não está. Você precisa estar disposta a não trair a si mesma, a ser a versão mais autêntica de si mesmo, deixando de lado essa obsessão de ser bem-sucedido. Esta é, literalmente, a causa da morte de um artista a longo prazo.
Existe um grande vilão nesse cenário pra você hoje? É possível apontar um nome?
Mmmm, meu Deus. Este é um grande problema. Eu citaria a distribuição global de música, que apresenta uma série de questões. Há uma pequena parcela, uma minoria de superstars, que consegue florescer neste ambiente, mas o restante, a dita maioria, sofre pra vender suas próprias criações por compensações ínfimas. As gravadoras são como profetas da indústria e a distribuição acaba sendo feita por centavos, cagando por meio de acordos feitos a portas fechadas entre eles, distribuidoras e plataformas de streaming. Essas pessoas por trás não são a favor do artista, então isso faz com que eu espere, eventualmente, por uma mudança. Enquanto isso, no entanto, é importante citar outros benefícios contidos nessa coisa do streaming como a capacidade de expansão, uma vez que você está aberto a isso e conduz uma carreira de sucesso, tentando mantê-la, dando continuidade ao alcance de novas audiências. Nesse aspecto é bem mais fácil do que era antes. Grandes artistas hoje sabem que estão vendendo mais que artistas que despontaram décadas atrás pelo simples fato de que as plataformas de distribuição se firmaram como algo muito eficiente.
Simone de Beauvoir dizia que bastava uma crise política, econômica ou religiosa pra que os direitos das mulheres fossem questionados. Que elas não poderiam baixar a guarda em nenhum momento e sempre teriam que estar voltando e falando de igualdade. Isso está acontecendo no mundo todo, no Brasil, no Chile, em Israel… Como você observa esses acontecimentos?
É horrendo. E é também uma das razões pelas quais a faixa que escolhemos para abrir este novo disco, batizada como ‘The Men Who Rule the World’, é parcialmente inspirada pela realidade de mulheres da América do Sul, do Brasil, da Argentina, do Chile. Quando essas pessoas tomaram as ruas e protestaram em massa contra os governos e o que se entende como resultado de estatísticas de violência sexual, doméstica. Fico constantemente chocada em como mulheres continuam sendo tratadas internacionalmente e isso não se restringe apenas à América do Sul, situações similares de abuso acontecem em todos os lugares. Até que possamos virar a chave do desejo, da ambição masculina, vamos continuar sofrendo nas mãos do patriarcado e tudo o que há em torno dele. Por isso é significativo que encorajemos nossos governos futuros a abraçar a diversidade na representação geral, incluindo em seus projetos a comunidade queer, os negros, os povos indígenas, pessoas de todos os sexos, gêneros, credos e religiões. Eu acho que é imperativo pensar assim para avançarmos. É a única maneira de resolver os problemas que enfrentamos atualmente como sociedade, você sabe, sob o governo patriarcal.
Logo mais o Garbage completa 30 anos de estrada, uma trajetória marcada por um comprometimento com causas e uma responsabilidade que sempre se manteve viva. Os críticos continuam escrevendo bobagens machistas e me parece que isso é prova de que eles não aprenderam nada…
[risos]
… Sente que pagou algum preço por ter sido você mesma?
Sabe, esta é uma questão boa pra caralho. Se eu paguei algum preço… Eu não sei. Aqui estou eu, continuo aqui, aos 54 anos. Posso me considerar quase uma anciã da indústria musical. Eu me sinto triunfante, os meus algozes não tiveram aquilo que queriam. Não quero dizer que foi fácil, porque não foi mesmo. Ou que não foi doloroso, definitivamente… Estou farta de encontrar sexismo e misoginia nos espaços em que trabalho, com certeza. Mas ao mesmo tempo sei que eu sou a mulher da porra toda. Posso lidar com eles. [risos]
Os festivais nos anos 1990 priorizavam homens no lineup, isso é um fato. Mas hoje é nítido como existe mais diversidade e protagonismo feminino. Acha que isso é fruto daquela semente de rebeldia que você plantou em várias meninas 28 anos atrás?
[risos] Eu espero que sim! Certamente, e fico grata por isso. Tenho o bom senso de falar sobre como melhorar o quadro de igualdade para mulheres, lá atrás eu buscava falar sobre as injustiças do sistema. Sempre encorajei outras mulheres, pessoas LGBTQ+ na música, mas agora eu sinto que também tenho uma preocupação em divulgar os artistas negros, pardos e indígenas, porque sinto que eles estão sofrendo mais, acima de qualquer outro grupo. É importante continuar promovendo o interesse pelos outros, passamos muito tempo focados em nós mesmos, nos nossos próprios egos… Acredite, é muito importante identificar quem está sofrendo mais do que nós. Claro que podemos sentir pena de nós mesmos, mas se realmente começarmos a olhar para quem está ao nosso lado, você sempre vai encontrar alguém que está sofrendo mais, pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Ao ajudar os outros, existe uma espécie de reabastecimento. Você se sente bem! Quando se passa a vida inteira nessa de se colocar em um espaço de vulnerabilidade, apenas focado em si mesmo, você sofrendo trancado, sozinho. Isso corrói, é altamente destrutivo, te faz alguém miserável e prestes a enlouquecer. Mas se você ajuda os outros e vê quem está à sua volta, começa-se a criar um caminho, você se ajuda de alguma forma. Eu acho que as novas gerações, os mais jovens, as pessoas não binárias, a comunidade queer, está mudando tudo. O cenário está se transformando, as margens estão mudando. E quanto mais cedo os governos globais embarcarem nessa paisagem de mudança do mundo, melhor. Será melhor para todos nós porque acho que estamos predominantemente preocupados com o meio ambiente, uma parte considerável das pessoas se preocupa com o planeta que nossos filhos vai encontrar adiante, enquanto alguns seguem rindo na nossa cara em uma espécie de estado estranho de delinquência. Esses são assuntos urgentes que exigem não apenas nossas atenções, mas também das nossas autoridades, de quem está no poder.
Às vezes minha avó brinca que a humanidade precisa ser reiniciada pra dar certo. Se você tivesse o poder necessário para recomeçá-la do zero, quem salvaria?
A Patti Smith estaria, absolutamente, na minha lista. Eu salvaria com certeza a maioria dos músicos, a maioria é super legal e adorável, e é engraçado que você tenha me perguntado isso porque, mais uma vez, a primeira música do nosso disco, ‘The Men Who Rule The World’, é uma versão futurista, bastante moderna do conto bíblico da Arca de Noé. Quando compus essa música eu me imaginei, justamente, chegando a outro espaço em uma nave mãe comandada pelo grande George Clinton [cantor, compositor e produtor norte-americano], abrindo as portas e salvando tudo que é divino e maravilhoso, assim como eu escolho agora. Vivemos enterrados em corrupção, em tristeza, muitas fraquezas… na minha fantasia eu economizaria o máximo que pudesse, levando apenas as coisas e pessoas que são lindas, gentis e poéticas. Salvaria o que é divino, deixando para trás tudo o que não se encaixa nisso.
***
“No Gods No Masters”, novo disco do Garbage, está disponível em todas as plataformas de streaming. Ouça já clicando aqui.
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