Quando veio ao Brasil, em abril de 2019, St. Vincent foi destaque do festival Lollapalooza. A cantora norte-americana surfava na glória de “Masseduction”, disco lançado dois anos antes. Com figurinos vibrantes, penteados milimétricos e uma guitarra elétrica nas mãos, a persona artística de Annie Clark cantou com honestidade seus versos sobre melancolia, dependências e receios. Elevou o próprio nível criativo a uma bolha pop atravessada com timidez.
A direção, no entanto, mudou quando no fim daquele mesmo ano tabloides decidiram invadir sua privacidade e revelar um imbróglio familiar: seu pai tinha passado os últimos 9 anos detido em uma penitenciária depois de cometer fraudes fiscais na casa dos US$ 40 milhões. A fim de narrar a experiência de ressocialização, que inclui a retomada de laços, e reverter a seu favor o ritual de exposição iniciado pela chamada imprensa amarela, Clark começou a compor.
Chega às lojas nesta sexta-feira (14) o LP “Daddy’s Home“, estreia que acontece apenas um dia depois do aniversário de sua máxima estrela guia, Stevie Wonder. Com temas autobiográficos e tratando as novas pautas apoiada em um lirismo sofisticado, cheio de bom humor, a produção e a identidade sonora saudam ídolos ao buscar referências em eras de ouro.
A partir dos sons criados por Wonder e outras estrelas como Joni Mitchell, Vincent busca redescobrir formas de empunhar a guitarra. Da esfuziante cabeleira loira de Candy Darling, atriz símbolo do movimento trans e musa de Andy Warhol, toma emprestada uma parte do elegante visual de agora. Acessórios como bandanas e peças clássicas como blazers, calças boca de sino e sandálias de salto grosso se tornam responsáveis por construir uma nova personagem capaz de sonhar e se entreter com o próprio azar.
Nesta entrevista feita por telefone, a artista fala sobre as recentes mudanças na relação com o pai, a experiência de gravar nos mesmos espaços em que seus ídolos e a admiração que sente por Caetano Veloso.
***
Papelpop: A jornada de ‘Daddy’s Home’ é muito curiosa porque você criou uma obra de arte a partir de uma questão delicada de família. Tem um pouco de alquimia nisso. Foi desafiador transformar acontecimentos pessoais em música?
Annie Clarke (St. Vincent): Na verdade, acho que a experiência de viver é mais difícil do que transformar a dor em arte. Porque pelo menos eu sei que esse é um lugar em que consigo fazer coisas com o que restou de um coração partido. No que diz respeito ao emocional, isso é mais difícil do que, simplesmente, se sentar para escrever sobre um determinado tema ou acontecimento. Quando você está compondo de alguma maneira também se vê dando ao caos uma certa ordem. Essa é uma tarefa muito adaptável e também muito poderosa por ser capaz de criar coisas belíssimas. Bom, coisas pelo menos que eu julgo serem belas.
Há dez anos você lançava o disco “Strange Mercy” e já falava sobre esses mesmos temas, embora de forma mais sutil. Por que escolheu detalhar a experiência que viveu com o seu pai justo agora?
Eu não sei. [risos] Eu acho que aconteceu porque esta foi uma história contada, infelizmente, sem a minha autorização e em uma narrativa bastante característica dos tabloides. Isso vazou e se transformou em parte da minha história com a imprensa, o que não é nada do que eu quisesse ou tivesse esperado que acontecesse. Mas acho também que, pra mim, fazer o exercício de escrever sobre isso e também poder falar sobre a minha própria transformação é um jeito de recuperar minha história e dizer ‘Ei, isso pertence a mim e se eu puder contá-la, vou contá-la com várias nuances, com humor, compaixão e sutileza’.
A letra de “Pay Your Way in Pain” desperta a reflexão sobre determinados temas como culpa, julgamento e, mais literalmente, preços que se paga por errar. Depois de fazer esse disco, concorda com aquela velha ideia de que a arte é um tipo de terapia? Como você mesma lida com as suas dores?
Bem… Como alguém que há um ano e meio se desligou da análise, eu não diria que há algo semelhante entre ambas as coisas. Vejo a terapia como terapia. Porque nela você está tentando entender sua própria mente, o que você é, como você age e, claro, a fazer escolhas melhores porque, finalmente, pode-se entender o que está em jogo. Você tem mais instrumentos de compreensão do todo. Já a música tem que ser revolta e catártica e eu sigo acreditando nisso de que todas as coisas da vida que são inexpressivas, aquelas que você não consegue encontrar as palavras suficientes pra expressar, podem ser ditas com verdade por meio da música. Eu acho que provei a sua teoria, né? [risos]
[risos] Eu gosto de trazer um pouco de filosofia pras minhas conversas e você aceitou o desafio.
Sim!
Em ‘Melting of the Sun’ você menciona ícones femininos como Joan Didion, Joni Mitchell, Nina Simone – todas elas mulheres reverenciadas ainda hoje, embora me pareça que poderiam ter recebido um reconhecimento maior ao longo de suas carreiras. Concorda que artistas de novas gerações como você assumem um papel de introduzir, de apresentar essas pessoas pra um pessoal mais jovem?
Eu já me questionei a respeito disso. Acho que cada geração precisa de seus próprios contadores de história. Quer dizer, não é como se a arte de maior relevância de fato testasse o tempo. É se fazer um questionamento mesmo. Daqui a cem anos, as pessoas voltarão pra ouvir os discos de Joni Mitchell? Os discos de Nina Simone? Porque essas músicas estão expressando algo que é profundo e eterno, então eu não acho que seu poder, ou nada relativo ao seu poder, vai ser diminuído. Só fica maior com o tempo de uma certa maneira. Mas nós também vivemos das histórias que contamos a nós próprios, também vivemos da nossa saudade. E por isso precisamos de pessoas contando histórias para as novas gerações, para o futuro, da mesma forma que essas mulheres fizeram. De tempos em tempos, precisamos ter alguém que assuma a tarefa de narrar o presente.
Em síntese, seria dar voz aos ícones da nossa geração, mas ao mesmo tempo reconhecer determinado pioneirismo.
Exato! Porque a arte que assume um certo peso realmente atravessa as gerações e essas pessoas que cito na música são… grandiosas. ‘Melting of the Sun’ é uma forma que encontrei de dizer ‘Muito obrigado pelo trabalho que vocês fizeram, pela música que nos deram. Por serem mulheres fieis ao que defendiam, por pavimentar o caminho pra mim, pras gerações subsequentes’. Eu espero que tudo que estou fazendo agora, ainda que seja algo pequeno, tenha um impacto lá na frente também.
Figuras icônicas como Marilyn Monroe e Candy Darling também aparecem nas suas letras. Não sei se interpretei bem, mas consigo ver dois aspectos chave nisso. Primeiro, uma certa crítica ao machismo e, em segundo lugar, uma exaltação ao chamado “blonde power”. São coisas que parecem dialogar muito bem quando a arte caminha pra um lugar mais político. Como vê a relação entre ambos os pontos na música?
A certa altura me vi obcecada por alguns penteados, cabelos que estavam em alta nos anos 1970. A Candy Darling tinha um tipo de beleza, de glamour, mas ao mesmo tempo também revelava ser dura e determinada. Você sentia ao observá-la que era como se dissesse ‘Se cruzar meu caminho, vai levar um soco na cara’. Nos filmes em que atuou, no entanto, ela assumia o paradoxo de ser ao mesmo tempo muito frágil e forte. Acho que o grande foda-se que alguém pode dizer ao machismo é o fato de ser absolutamente você mesma. Eu cresci em uma família em que minha mãe criou todas as filhas sozinha. Sempre tivemos na mente aquele ideal que diz ‘Eu posso fazer qualquer coisa’. Se eu me deparo com o machismo no mundo, eu só me viro e digo ‘Isso é um problema seu, não meu. É algo estúpido. Lide com isso sozinho’. Eu sei que não é um ponto de vista, uma filosofia que todo mundo tem, que é um privilégio. Eu fui privada de muita coisa na minha experiência pessoal, mas acho que pode ser uma chave para o enfrentamento. Ser absolutamente você e não deixar ninguém frear os seus desejos.
Ainda sobre mulheres inspiradoras, acho que cabe citar a Patti Smith. “Horses”, disco de estreia dela, foi gravado há 45 anos no Electric Lady, mesmo estúdio em que você passou um tempo trabalhando com Jack Antonoff nas canções de “Daddy’s Home”. É um lugar mítico, fundado por Jimi Hendrix… As pessoas falam muito sobre a energia criativa concentrada em espaços assim. Você acredita nisso, que gravar ali pode exercer algum tipo de influencia no processo criativo?
Acredito. Eu acho que há uma espécie de poder, uma vibe diferente no Electric Lady. Há algo muito forte ali que você consegue sentir logo que pisa isso lá. Por outro lado também é interessante pensar que Jimi Hendrix construiu aquele espaço, mas quase não gravou nada porque ele morreu logo após a inauguração [o guitarrista sofreu uma overdose em setembro de 1970, menos de um mês após a abertura do espaço]. Isso é uma loucura. Mas pra mim isso vai além, as coisas se tornam ainda mais curiosas quando penso que vários álbuns dos quais extraí referência para ‘Daddy’s Home’, especialmente os de Stevie Wonder lançados no início da década de 1970, nasceram lá.
Bom ponto. Senti mesmo que a estética sonora do novo álbum tem uma forte relação com o som de pessoas que você admira. É interessante observar que esse recorte histórico na música é igualmente relacionado a um momento de intensa inquietação social. O Caetano Veloso, por exemplo, lançou o disco “Transa” há 50 anos e é um trabalho que nasceu num contexto político de ditadura, é uma obra que continua atual. Consegue ver paralelos entre as muitas transformações que rolaram naquela época e o que acontece no mundo agora?
Consigo. Inconscientemente, acho que foi por isso que decidi me aprofundar no período que compreende o início dos anos 1970. Aquela foi uma época de muita agitação social e greves econômicas que com certeza remete aos dias de hoje. Parece que estamos vivendo um período de transição, realmente interpreto dessa forma. Que estamos derrubando, reavaliando estruturas de poder e tentando recriar uma bolha de mundo sob uma ótica mais “ecologicamente correta”. Você citou o Caetano Veloso e eu preciso dizer que fiquei obcecada pelo documentário ‘Narciso em Férias‘, principalmente, com a cena em que ele narra o dia na prisão em que um dos militares o reprimiu dizendo ‘Não diga uma só palavra e ande em linha reta’. Foi brutal ver Caetano relatando fome enquanto aquele cara comia uma galinha inteira na frente dele… Você já assistiu?
Sim, e na estreia. Confesso que sou muito fã do Caetano. Em especial dos lançamentos feitos no início dos anos 1970 [risos] e o período que engloba as três últimas décadas…
Você sabe do que estou falando. Eu odeio ser tão nostálgica e não necessariamente gostaria de viver aquela época ou diria coisas do tipo, mas precisamos reconhecer que foi um período grandioso para a arte, coisas geniais foram criadas em todas as áreas possíveis. Os melhores filmes já feitos em toda a história sugiram ali, as melhores canções surgiram ali. Me parece que a vida era mais difícil, mas a arte era muito, muito boa.
Você visitou o Brasil em 2019 para fazer dois shows. Foi muito bom ver você encerrando o show do Lollapalooza com “Fear the Future”. Como a sua relação com a guitarra mudou desde o último disco? Quero dizer, a fim de encontrar novos contornos que resultaram no que vem a ser “Daddy’s Home”.
Por muito tempo eu quis que a guitarra soasse como qualquer coisa, menos uma guitarra e então, neste álbum, por alguma razão, eu me apaixonei pelo puro som do instrumento. Gosto da ideia de uma guitarra sendo apenas uma guitarra. Também voltei a me encantar pelos solos artesanais e toco um pouco nesse disco em “Live in the Dream”, por exemplo. Não é, necessariamente, algo que se enquadre em um nicho pop, mas eu sinto que flui e é como se eu deixasse a guitarra assumir os vocais, ao invés de asfixiá-los.
E o seu pai ouviu o disco? Te contou se tem uma música favorita?
Ele tem, sim, uma música favorita que é, por coincidência, a faixa-título. Ele disse amar essa. Eu me lembro de ouvir essa afirmação da boca dele e perguntar ‘Você prestou atenção em todas as letras?’ e ele me responder ‘Sim, sim. Curti muito’. Eu fiquei ‘Mmm, okay’ [risos]. No início eu não sabia como e se nós iríamos conseguir atravessar isso. Tive muitas inquietações a respeito de como seria a vida depois que ele cumprisse a pena, sobre quem ele seria, por exemplo. Com certeza passar dez anos encarcerado muda uma pessoa e isso é curioso porque parece que tenho diante de mim um homem que é, de fato, mais aberto, falante, até mais interessado em crianças e na possibilidade de ter netos. É algo doce de se ver após ter ficado presa por um tempo nesse cenário de incerteza. É engraçado também… ele tem me visitando recentemente e enquanto conversamos tem restaurado a pintura de umas flores que tenho na parede. Eu passei mais tempo com ele nas últimas semanas do que talvez na minha vida inteira. Acho muito bom poder estabelecer uma boa relação com ele. Ele nunca foi um ‘papai’ [risos], o título tem um pouco de ironia e até me faz rir, falei outro dia sobre essa transformação que sinto. É como se a filhinha do papai assumisse agora o posto de papai. É uma coisa meio dúbia… Ele é um cara legal.
O que espera que as pessoas sintam quando finalmente ouçam as canções de “Daddy’s Home”?
Todos nós estamos sobrecarregados, caminhando pelo mundo com o desejo de receber amor. Espero que todos possam entrar nesse disco como você entraria em uma casa em que se sente confortável e pode se sentar em uma poltrona reclinável depois de preparar uma bebida pra si, sentindo-se bem por ser quem você é.
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