Há cerca de duas semanas, Rashid se uniu a Chico César para um poderoso desabafo em forma de canção. “Diário de Bordo 6” ganhou o mundo em 5 de maio e tem ressoado como um manifesto do agora, como colocar um megafone sobre tudo que o Brasil vive em 2021.
Com produção do DJ Caíque, a música foi lançada em conjunto de um sombrio clipe recheado de cenas reais. A letra política se atém ao discurso de reflexão e crítica ao atual momento vivido no país e no mundo.
Durante um dia frio de outono, próximo do meio-dia, o rapper abriu a câmera e o microfone para conversar com o Papelpop sobre música, projetos e como a faixa recém lançada se formou. Um fato curioso sobre o single é que, além de fazer parte de uma série musical que passa dos dez anos de duração, pode ser encarado como um registro de um jornalista no campo de guerra. Essa foi a analogia que o cantor criou ao abordar o sexto “Diário”. A arte também conta a nossa história.
Agora, Rashid se prepara para realizar a primeira performance da faixa. Em 22 de maio, próximo sábado, ele fará um show virtual ao vivo pela plataforma Legato. Intitulado de “Tão Real”, Uma jornada Musical”, o evento será um momento para os fãs aproveitarem apresentações do último álbum do artista. Ingressos podem ser adquiridos aqui.
Confira abaixo a entrevista completa com o cantor, que revelou detalhes sobre a vida durante a pandemia, sua relação com o processo de criação, o amor aos diferentes nichos da cultura pop e como se sente ao “botar na rua” essa potente canção.
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Papelpop: Rashid, “Diário de Bordo 6” é uma forte expressão cultural e política. Pouco mais de uma semana após o lançamento como você enxerga essa mensagem sendo pulverizada entre o público, ainda mais depois de tudo o que aconteceu nos últimos dias?
Primeiro, estou surpreso positivamente. Pelo momento que a gente está vivendo, imaginei que ia acabar rolando um pouco mais de debate, achei que as opiniões ficariam mais divididas de uma maneira mais fervorosa. A gente recebeu muitos comentários reacionários, mas foi rechaçado por uma porcentagem quase ínfima em relação ao pessoal que abraçou a ideia. ‘Mano, obrigado! Eu precisava desse grito’. O rap sempre representou essa parada pra mim. Sempre sentia que os caras, na maioria esmagadora das vezes, estavam falando alguma coisa que eu queria dizer e não conseguia. Isso por não ter poder de síntese ainda, porque não tinha acesso aos fatos, ao microfone ou ao palanque. Agora, quando vejo “Diário de Bordo” sendo recebida dessa maneira pelo público e as pessoas falando “Obrigado, Rashid! A gente precisava desse grito aí. A gente precisava gritar desse jeito!”, sinto que estou fazendo o que o rap sempre fez comigo, estou conseguindo fazer isso pelas pessoas, para as pessoas. Isso me deixa muito orgulhoso! Notar a importância da música, da mensagem, do momento que ela veio para se encaixar na vida desse pessoal também é algo absurdo. É como se fosse um jornalista no meio do campo de guerra reportando os acontecimentos. A minha sensação agora é talvez a mesma de um jornalista que faz aquela matéria que retrata muito bem esse período ou como um fotógrafo que registra a época e depois tem sua foto usada para estudo. Essa é a minha sensação com “Diário de Bordo”.
Papelpop: Chico César é um gigante da música brasileira. Como foi realizar essa conexão com ele?
Meus primeiros contatos com o Chico César foram em shows com a galera do Laboratório Fantasma. Trombei ele com mais tempo pra trocar uma ideia no show Quilombo Lab, o trio elétrico de carnaval do Laboratório Fantasma, no ano passado. Me convidaram pela relação que a gente tem há muito tempo e ali nos bastidores tive o mínimo de convivência com o Chico, tanto nos ensaios, como no show. E já dá pra reparar um pouco da energia do cara. Ele tem aquela energia que abraça, que dá aquele sorrisão, mesmo quando ele não sabia quem eu era. Depois, eu tive a oportunidade de entrevistá-lo no Conexão Lab, um programa da Lab TV da Twich. E naquele dia, putz, a energia bateu demais! A gente conseguiu trocar várias ideias, eu trouxe algumas coisas que havia observado na obra dele e percebi que ficou feliz com aquilo. Feliz também por estar se comunicando com a rapaziada nova. O artista sente isso mesmo. “Meu caminho continua sendo trilhado. Estou sempre colocando mais um tijolinho ali. Isso tá chegando nos moleques novos, que estão me admirando”. A partir daquele dia, a gente foi se falando por mensagem. Assim que ele saiu da transmissão, me passou o telefone e falou “vamos conversar”. Respondi: “Vou te chamar pra fazer alguma coisa”. Ele adorou a ideia. Se passaram meses, pois não tinha surgido nada a altura do Chico. Fiquei caçando alguma coisa para fazer com ele.
Quando fui compor “Diário de Bordo” pensei nele. Era o começo de uma semana, música já estava mais encaminhada. Uns 80% pronta. Sabendo que ia colocar isso na rua. Mandei mensagem pra ele na terça-feira e falei “Chico, to fazendo uma música e acho que chegou o momento. Tem uma coisa legal pra te mostrar, queria que ouvisse e me dissesse o que acha, se você topa colaborar”. Ele agradeceu e pediu para mandar. Na quarta, acordei daquele jeito! Levantei, tomei dois litros de café, terminei a música e gravei. Editei e fiz os retoques para deixar na melhor qualidade e mandei pra ele na quinta de manhã. Dez minutos depois ele retornou: “Irmão, obrigado por me chamar pra uma música tão forte”. Conversamos um pouco e nos dez minutos seguintes ele escreveu a parte dele e me mandou. Jamais imaginei que isso ia acontecer! Pensei “mano, é o Jay-Z do outro lado da linha?” Falei pra ele “Mestre, jamais imaginei, nem nos meus maiores sonhos, que fosse conseguir fazer uma música com você e que fosse fazer tão rápido assim”. Ele fez os versos em vinte minutos, aquela canetada absurda! Acredito que levou a música para outro patamar também. A poesia, a energia e a emoção que ele traz ao cantar colocou a faixa no andar de cima, sem dúvida nenhuma. Sem falar também que me leva junto para esse crescimento artístico. É uma busca que a gente tem junto. Com certeza eu sei que ele quer que o pessoal mais novo do rap conheça ele. Não tenho dúvida de que ele me deu a mão e me levou para um novo degrau artístico, e até de respeito na cabeça das pessoas. “Pô, ele fez uma música com o Chico César”. É assim que estou me sentido! [risos]
Papelpop: “Diário de Bordo 6” apresenta uma sequência muito rica de informações e conceitos. Além de citar questões relacionadas ao Brasil e a sua vida pessoal e profissional, também há referências da cultura pop. Como foi criar esses versos?
Sou muito impulsivo com minha arte. Geralmente eu vou para cima de uma vez. Eu gosto dessa coisa de “eu vou eu vou derrotar a música hoje”, tá ligado? Nesse sentido de “vou terminá-la, vou conseguir fazer!”. Só que “Diário de Bordo” exige um pouco de cuidado justamente por ter essa coisa mais jornalística, então não pode ser feita só de achismo, tem que pesquisar. Isso acrescenta verdade e dá estofo para essa informação que estou passando. Não vai ser uma comparação ou metáfora vazia. É uma coisa que tem sentido e que se a pessoa abrir essa pasta e descobrir os significados vai ter uma visão maior da música e da realidade. É isso que eu gosto de fazer, usar essas camadas como se você estivesse trabalhando no Photoshop e abrindo os layers. Escrevi em alguns dias. Em momentos que sentia que o nível não estava no mesmo do que tinha escrito antes, parava, ia brincar com os cachorros, fazer um café e voltava depois ou no outro dia. Isso porque tudo precisa estar conjuminando, conversando muito bem. O diálogo entre os versos precisa estar muito bom, assim como a poesia. Não é apenas um texto jornalístico, isso envolve muita coisa. Explicando parece um processo complicado, mas pra quem faz isso no dia a dia é algo que acontece naturalmente. É uma coisa da vivência. Eu sei o momento de parar e quando está fluindo. É como no filme “Soul”, da Pixar, a gente sabe quando entramos no estado de flow, quando as coisas estão fluindo mesmo. E ainda tem as referências de cultura pop, que são coisas que eu gosto de verdade, coisas que fazem parte da minha vida. Então, encaixo sempre de uma forma muito natural, sem forçar a barra. Não é uma coisa que eu penso “eu preciso colocar isso aqui”. Geralmente vem quando eu estou escrevendo. Por exemplo, tem uma citação do Ta-nehisi Coates, de “Entre o mundo e eu”, um livro absurdo! Uma carta que ele escreveu para o filho dele e tal. Fazia duas semanas que tinha lido e ele estava forte na minha cabeça. Ele começa o livro dizendo não sentir que ele é o dono de si mesmo. Essa é a vida do negro norte-americano, no caso. Apesar de ser ele falando, sabemos que isso acontece no mundo todo. Achei aquilo sofrido, bonito e poético. Aquilo ficou fincado no meu cérebro e quando comecei a música, essas questões estavam batendo na porta. Acabo percebendo que isso comunica com meu público e com o público em geral. Teve um cara que comentou feliz que citei Hideo Kojima na letra. Ele é o criador do Metal Gear Solid, jogo clássico, onde o personagem principal se chama Snake. Eu faço uma analogia e o cito durante a música. Colocá-lo ali teoricamente não tem nada a ver, mas no contexto geral acaba se encaixando. O processo é natural. O artista precisa ficar íntimo desse processo de criação.
Papelpop: É muito interessante ter um projeto como o “Diário de Bordo”, que ao longo dos anos foi nutrido com algumas faixas até, teoricamente, ter o seu encerramento em 2015. Como isso tudo começou?
Quando comecei, lá em 2010, não tinha essa pretensão de que fosse tão longe. Ao mesmo tempo, queria que tivesse pelo menos três, que fechasse em uma trilogia, porque muitos artistas que admiro fazem esse tipo de coisa. Acho que isso também acaba sendo um glossário para entender um pouco da evolução do artista. Ouvindo “Diário de Bordo”, de um a cinco, você já tem o panorama de como o Rashid cresceu, mudou, evoluiu. Acabei gostando de ter esse lugar onde as pessoas podem visualizar minha evolução. Ela foi até a número cinco, pois sempre estava sentindo aquela necessidade de me expressar. Estava em um período super produtivo, que estava fazendo muita música, de um jeito acelerado. Hoje ainda produzo bastante, mas o processo é muito mais complexo. Encerramos em 2015, mas com tudo que estava acontecendo politicamente no Brasil a partir de 2016, as pessoas começaram a me pedir um novo “Diário”. Até então estava relutante, tinha fechado esse ciclo, colocado as músicas em um EP. Porém, no meio do ano passado, com tudo que estava acontecendo no país, veio a pandemia, todo mundo preso dentro de casa com medo de tudo, do vírus, a falta de zelo do Estado, tudo ficou muito delicado. Pensei que era o momento de fazer o “Diário de Bordo 6”. Desde o meio do ano passado venho tentando criar essa música. No final de 2020, o DJ Caique me mandou uns instrumentais e vi que se encaixava. Depois do ano novo comecei a escrever e a gente bateu o martelo. O instinto artístico levou a gente. Infelizmente notícias e fatos eram coisas que não faltavam. A gente tinha muita munição pra escrever. Consequentemente, a inspiração veio de um lugar ruim. Das outras vezes foi um apanhado geral que deu vazão aos “Diários”.
Papelpop: “Diário de Bordo 6” chegou mais de um ano depois do megaprojeto “Tão Real”. Você veio de uma sequência bem intensa de lançamentos nos últimos anos. Artisticamente, o que rolou nesse período e como foi essa nova vivência?
Essa pausa na verdade é a pausa da exibição, do lançamento. Eu não parei de produzir. Fiquei sem escrever no máximo um mês, mas de fato, foi o maior período da carreira que fiquei sem lançar. Quase um ano e meio desde o disco “Tão Real” sem divulgar nada inédito. Estava confortável com isso, pois foi a primeira vez que me senti tranquilo em não colocar música na rua. Sentia que não precisava disso para ficar na casa das pessoas. Estava fazendo muitas coisas e aparecendo de outras formas. Quando a gente planeja um disco ou até mesmo um single, trabalhamos por meses. Dependendo do tamanho do projeto, até por seis meses. O ano acaba passando muito rápido porque a gente tá focado e trabalhando para coisas futuras. Saímos desse hiato por sentir a necessidade de colocar “Diário de Bordo 6” na rua. Mas como falei, não parei de produzir. Continuei estudando. Não tinha me tocado nisso, mas fiz praticamente um álbum que nunca vou lançar. No começo da quarentena estava fazendo diversas músicas good vibes porque estava procurando essa cura. Depois daquele primeiro mês trancado em casa, quando a bad começou a bater, comecei a procurar esse refúgio nas coisas que estava fazendo. Então, tem muitas músicas bem ensolaradas. Algumas delas vão sair porque realmente ficaram incríveis. Já outras nem tanto, serviram como um estudo, como cura. Eu fazia e mandava para os meus amigos pelo whatsapp. Só eles tem essas canções. Talvez o público nunca ouça a maioria delas. Fiz umas 11 músicas nessa vibe. Dessas, provavelmente três vão ver a luz do dia. Nesse período acabei desenvolvendo outras habilidades, coisas que quero levar para o futuro. Foi um momento de ocupação mental. Fiquei tanto tempo sem lançar que rolou uma baita ansiedade para a estreia de “Diário de Bordo 6”. Parecia que fazia muito tempo que não lançávamos nada. Uma experiência muito legal. Foi como se estive lançando pela primeira vez.
Papelpop: Sua presença em podcasts também é um marca muito forte, além dos trabalhos de roteiro. Como distribui esses projetos alternativos com a música? Está curtindo?
Estou gostando! São novos desafios e acho que tem a ver com o caminho que escolhi. O caminho dos roteiros está relacionado com a escrita e a literatura, além do caminho dos podcasts. Tudo já está conectado ao meu trabalho. Faz parte do que eu sou, faz parte do desenvolvimento do projeto e da causa Rashid. Acredito que tudo faz parte da minha arte. É um processo de desenvolver habilidades, coisas que podem acrescentar na minha música, na minha carreira. A maior parte dos artistas que admiro faz isso e muito mais. São outras maneiras para estar na vida das pessoas e expressar minhas ideias. Por exemplo, tenho um podcast com a Dani, minha esposa e empresária. No “Cama, Mesa e Trampo”, a gente consegue desenvolver muito bem o que falamos nas músicas. Há bastante tempo para destrinchar temáticas em momentos leves e reflexivos. Além de ser um espaço de troca e comunicação com meu público. Isso tudo é como transformar o Rashid em Harry Potter, estar em todos os lugares e plataformas. [risos]
Papelpop: Sei que você é um fã de cultura pop e queria saber: se pudesse criar uma música para a trilha sonora de algum personagem, qual seria?
Wolverine! Eu comecei a esboçar uma ideia. No começo da quarentena, queria ter feito um EP baseado nele, mas não andou. Talvez seja uma coisa para o futuro. O Wolverine tem uma semelhança com Miyamoto Musashi, o mais famoso samurai da história do Japão. Os dois tem uma coisa introspectiva e selvagem. Gosto muito disso. Um personagem que faria a trilha inteira de um filme ou uma música tranquilamente. Inclusive, estamos aí!
Papelpop: A Marvel Studios adquiriu os direitos dos X-Men, que eram da Fox, e provavelmente vai sair um novo filme do Wolverine….
Vou mandar minhas intenções e aguardar a proposta [risos]
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