Majur escolheu o dia 12 de maio, hoje, para lançar “Ojunifé”, primeiro e aguardado álbum de estúdio. Certeiro e recheado de simbolismos, o título foi escolhido por fazer referência ao conceito de “amor dos olhos” em iorubá , além de ser o nome religioso da artista no axé.
Em entrevista ao Papelpop, a cantora fala que passou por um processo de renascimento para criar canções que conectam passado, presente e futuro em um caldeirão de referências afro-brasileiras somadas a elementos do pop.
Responsável pela direção musical e por todas as letras do disco, a artista chega em 2021 renovada após um retiro obrigatório ocasionado pelo isolamento social. Nas dez canções, canta sobre amor, sobre a potência de encontrar o verdadeiro eu, fala sobre Exu, Iemanjá, e estabelece uma obra sobre ancestralidade.
O poderoso e potente vocal da baiana ganhou o mundo em 2018 com o EP “Colorir”. O vozeirão teve consideráveis ampliações quando participou de “AmarElo”, faixa de Emicida que ainda soma Pabllo Vittar e o sample de “Sujeito de Sorte”, do eterno Belchior.
Depois de uma estrada recheada de singles e colaborações, Majur estreia um álbum afropop que, majoritariamente, fala sobre si, mas também se conecta com tantas muitas outras pessoas da Bahia, do Brasil e de todo o mundo. Confira abaixo o bate-papo completo que realizamos com ela.
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Papelpop: Majur, “Ojunifé” significa “olhos do amor” em ioruba, certo? Como você chegou a este conceito e por que decidiu utilizá-lo para nomear o disco?
“Ojunifé” sou eu, a Majur do futuro estabelecendo uma carta aberta sobre a Majur do passado-presente. Trata-se do meu nome de axé, uma parte essencial de um processo de renascimento. Portanto, o disco fala sobre mim. Tive que me amar muito para poder escrever sobre essas vivências, para existir e para ter coragem também. E acabou que tudo se juntou e deu certo. Tinha que entitular o projeto com esse nome porque é o que mais simboliza esse renascimento, o meu nome verdadeiro de axé, “Ojunifé”.
Papelpop: O afropop é um conceito interessante para definir o gênero do seu álbum, que traz exatamente essa justaposição e mistura da música africana e brasileira com elementos do pop. Pode me falar sobre a pesquisa e criação do trabalho melódico do álbum?
Afropop é um conceito muito rico. Vou voltar um pouco para falar sobre. Em Salvador, nos estilos musicais, a gente busca muitas coisas. Sons, instrumentos e músicas com timbres e toques alternativos que têm influência das culturas indígenas e africanas, por exemplo. A gente tem bilhões de tipos e gêneros que a gente estuda em por lá. Porém, algo que infelizmente acontece toda vez que contam nossa história é a tentativa de reduzir a riqueza dessa vivência. Portanto, falando de Brasil e de resgatar os totens e os experimentos de matriz africana, a gente precisa falar o que é real. “Afro”, para mim, é uma das muitas definições que estão ali e que tem origem africana, e brasileira também; e o pop é inserido porque as músicas também contém esse estilo. Importante dizer que o afropop não é algo que estou lançando. Já existe. A Margareth Menezes e o Carlinhos Brown já faziam isso e o conceito nunca teve reconhecimento como um gênero musical. É o que acredito, é o que eu sou, é minha raiz. Eu vim trazer isso com um pouco de diferença, levando um pouco mais para o pop, para que as pessoas possam entender que esse som existe e que pode ser muitas coisas, não se limita a uma coisa só.
Papelpop:A identidade é um tema recorrente no seu disco. “Eu posso ser quem eu quiser” é um verso forte que canta em “Flua”, além dos trechos de “Seja o que Quiser”. Seu álbum pode ser considerado um manifesto à autenticidade?
Exatamente! Meu álbum é um manifesto à originalidade, individualidade do que é ser só você. Porque hoje a gente tem muitas ideias de “se referenciar”, “estar para”, mas na verdade quem pode contar a nossa história somos nós mesmos. Não nos foi dado esse direito de escrever a nossa história. Então, realmente, a gente precisa entender o que somos e quem somos. Desde suas raízes, desde entender qual é o seu desejo real de ser, de existir. Isso tem que acontecer a partir de uma conversa do ser humano consigo mesmo. Como eu digo lá em “Flua”, que sou completamente contra todos os padrões. Sou porque os padrões nos prendem, eles nos encaixam. E se encaixar quando se trata de ser humano, um ser complexo, não faz sentido. Eu não sou uma pessoa que vive sem fazer sentido. Sou libriana, muito louca, estética, doida. Quero ter certeza, ter embasamento, saber, ter história, aprofundamento. Acho que todo mundo merece isso, sabe? Entender-se é muito necessário para você conseguir alcançar o que você quer, ter coragem e segurança para ser quem quiser. Não precisamos de nada disso: cortes, formatos, cores, diferenças. Não preciso recortar, nem dizer que a pessoa é diferente. Cada um tem a sua originalidade. Se a gente vivesse assim, ninguém ia tomar conta da vida de ninguém. Não ia ter críticas negativas sobre o outro e cada um ia entender a individualidade do outro ser humano. E entender também que o coletivo é feito de pessoas diversas. Ainda mais aqui no Brasil, um país muito contraditório. Vivemos em um país extremamente diverso em que as pessoas não respeitam a diversidade. É um lugar completamente contraditório.
Papelpop: Tanto nas músicas como no próprio material visual de “Ojunifé” há muitos símbolos e signos da cultura africana. “Que lugar essas referências ocupam na sua vida? Como se deu a sua relação com eles?”
Antes, eu tinha uma vontade: queria descobrir quem eu era. Com quatro anos, olhava no espelho e tinha uma dificuldade surreal de entender quem eu era. Não me sentia homem, mas também não me sentia completamente mulher naquele momento. Por causa do meu corpo, eu não entendia nada neste sentido. Sempre quis saber quem eu era, mas pra viver no mundo em que eu vivia, minha mãe me dizia para cortar o que era necessário. ‘Tira o bully, faz carão, se concentra, entra no padrão.’ São coisas que eu ouvi para que pudesse acessar os espaços. Então, tinha que ser esteticamente um homem para ter essa vivência no coletivo, nas empresas e tudo mais. Estudei, trabalhei como designer, e tive que viver nesse corpo que não era meu. Viver essas experiências foi uma loucura. Só que eu entendi que faltava algo que me desse coragem de lutar, de ir atrás, mais fundo. Esse álbum só aconteceu quando, por um momento de acreditar em alguma coisa, acreditei em Iemanjá. Fui na água, joguei uma rosa e falei algo para ela. Em pouco tempo, ela começou a me responder e a me levar a novos lugares. Pessoas começaram a aparecer na minha vida e comecei a procurar cada vez mais o candomblé. Dali que veio minha segurança. O axé me segura, coloca meus pés no chão, minha terra nas minhas raízes. Me conecta à minha ancestralidade e faz com que eu tenha coragem para combater tudo que tenho contato todos os dias: a transfobia, a LGBTQIfobia, o racismo, o preconceito. Não tem como falar sobre essa construção sem falar primordialmente sobre esses conexos, as coisas que me conectam até chegar a ser eu mesma. Por isso que eu trouxe todos esses signos, símbolos, orixás, que estão próximos a mim, seja pela casa, seja pela minha cabeça, pela cabeça do meu pai, dos meus irmãos, das pessoas mais importantes que passaram pela minha vida e seus orixás. Ali, existe uma representação muito grande da obra prima da minha vida, o caminho que simboliza Exu, que inclusive está representado em uma das fotos (abaixo) que criamos.
Papelpop: A trinca que encerra o disco, “Nostalgia do Amor”, “Última Dança” e “De Novo”, fala sobre amor. Você comentou em um dos materiais de divulgação que passou muito tempo sozinha durante a descoberta do seu corpo, de si. Sei que cantar sobre amor em tempos como esses é um ato de resistência, mas pessoalmente, como foi o processo de traduzir esse tema nestas canções?
Com certeza todos nós estamos sendo muito prejudicados pela pandemia e tudo que estamos vivendo agora, mas para mim também foi um momento muito importante para pensar em mim mesma. Desde que saí de Salvador, em 2018, tenho trabalhado sem parar. Viagens, projetos, criação…eu não tinha parado ainda. E essa pandemia possibilitou essa pausa, o que foi muito importante. E como a gente ficou longe das pessoas, consegui ter mais sensibilidade e aprofundamento sobre o tema, já que não tinha mais o contato com outras pessoas. Pude ver o amor e o afeto de fora.. Mas só tinha eu e eu. Precisava lidar comigo mesma. Precisa daquele momento. Esse processo aconteceu na pandemia e foi aí que eu escrevi a maioria das músicas. Porque parei para analisar tudo o que tinha acontecido comigo ao longo dos últimos dois anos. Antes da pandemia tinha escrito no máximo três músicas. Durante o isolamento consegui compor mais quando voltei ao passado. Como sempre digo, eu tenho uma autoria biográfica. Só escrevo sobre o que vivo. Mas eu tenho uma dificuldade: não consigo falar sobre o que eu vivo agora, apenas sobre o passado. Por isso essa demora de dois anos desde o primeiro lançamento, em que soltei apenas singles e colaborações. Foi porque eu precisava analisar de fora o passado para falar sobre o agora.
Papelpop: No projeto, você tem colaborações com Luedji Luna e Liniker. Como foi produzir esse trabalho com elas?
Meus amores! Foi um convite de músicas que, quando eu estava compondo, comecei a pensar com quem eu poderia construir. A direção musical desse disco é minha. Dirigi o disco todo, criando melodias e com autoria de todas as letras. Nesse processo, eu tive conexões. A Liniker tem uma conexão anterior comigo. Em 2018, a gente se encontrou no palco, em Salvador. Foi a pessoa que me colocou pela primeira vez num palco. Eu era muito fã dela, tinha levado um violão e uma história muito engraçada. Por conta desse violão, acabei a conhecendo. Foi incrível! Não tinha como a Liniker não fazer parte desse álbum. Ela tinha que fazer parte disso tudo porque faz parte da minha construção. Me vi na Liniker para ter coragem em mim mesma. Quando ela apareceu em 2017, me bateu um estalo. ‘Caramba! Eu posso ser eu mesma! Tem uma pessoa aqui que também é assim. Se ela conseguiu, eu também vou!’ E eu acreditei nela e acreditei em mim por ela também. Muito doido, né?! Ela faz parte de uma música muito forte, o ponto alto do meu disco, que fala sobre uma mulher entendendo como é o seu corpo, como ele se manifesta, entendendo o poder de ser ela mesma. Convidei a Liniker exatamente por esse motivo. Está tudo amarrado! Ah, e chamei Luedji para a música de Iemanjá. Precisava fazer uma colaboração com alguém da Bahia. Afinal, eu sou baiana. E a minha música tem muito da história da Bahia, além dos sons e dos instrumentos escolhidos. A Luedji é uma mulher de muita coragem. Mulher preta, saiu da Bahia desbravando completamente o mercado. Ela estourou lá em Salvador sendo uma mulher preta, algo muito difícil. Nós, eu, Luedji e Xenia [França], somos pessoas que não sairíamos nunca. Isso é muito sério. A nossa música, o nosso estilo, o nosso jeito de falar, a nossa revolução, tudo isso incomoda muito o machismo que impera no nordeste. Enquanto mulheres pretas, isso foi um movimento muito grande. Especificamente falando de mim, sendo uma mulher trans da Bahia, o estado que mais mata pessoas trans no país, psicológica e fisicamente. Precisava chamar alguém que estava comigo nessa revolução, e a Luedji é uma aliada, uma amiga. Eu amo o trabalho dela. A gente fala de coisas muito parecidas sobre nossos corpos. Ela lançou um disco chamado “Um Corpo no Mundo”, que retrata a história das raízes dela. Achei que tinha super a ver. Esse convite que fiz a Luedji foi lindo! Estou apaixonada!
Papelpop: É o seu primeiro álbum de estúdio, que foi precedido por singles potentes e um EP de 2018. Com a estreia de “Ojunifé”, o que diria para a Majur do passado, do início da carreira artística?
Para a Majur do passado eu diria: “Ame a si mesma. Você tem coragem! E acredite muito para chegar em algum lugar”. Essa é a frase que resume meu disco: “Ame-se para que você tenha coragem e acredite para chegar em algum lugar”. Essas são as únicas bases que eu consigo imaginar para transformar a nossa vida. Especificamente falando de pessoas sem acesso. Eu não tinha acesso a nada. Periférica. Salvador. Lá do outro lado do país, do Nordeste. Para sair de lá e criar um imaginário que me possibilitasse outras coisas, eu tive que me amar muito e acreditar muito!
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