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Entrevista com Zélia Duncan: “Digo que sou uma formiga. Mas uma formiga atômica”
Uma composição despretensiosa, feita com a mesma frequência de um espasmo, deu a Zélia Duncan o fôlego necessário para a gravação de um disco. Física e emocionalmente abalada, a artista tomou o exercício como o pontapé de uma colaboração com o poeta e produtor pernambucano Juliano Holanda. Juntos, fizeram brotar por um aplicativo de mensagens quatorze outras letras que viriam a compor o disco “Pelespírito”.
Lançado na última sexta-feira (21), o material entrelaça melodias e arranjos delicados à força lírica de Duncan – um diálogo propício entre sentimentos e ativismo. “No meio dos lutos todos, tenho ainda muito forte a pulsão de vida”, diz, em entrevista por e-mail. “Talvez até para ir na contramão desse fascismo que nos assola hoje, que destrói o ar, que detesta arte, menospreza educação e cultura”.
Entre dúvidas e dores, ela passeia por gêneros como folk, country, rock e blues a fim de consumar uma tentativa de partilha. Neste documento pessoal de transformação, mapeia ainda as sensações que a mantém viva e agarrada ao esteio da arte, que queima sem queimar no meio do caos. Ao Papelpop, a voz de “Catedral” resgatou memórias dos quarenta anos de carreira, falou sobre as amizades que firmou no percurso e os sonhos que tem para o Brasil.
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Papelpop: Como define sua relação com a música ao longo desses 40 anos? O que mudou, quais as lições mais valiosas adquiridas?
Zélia Duncan: Descobri que queria cantar com uns 15 e depois que comecei, aos 16, nunca mais parei. Tenho uma relação íntima e cotidiana com o que faço. Sempre tentei me alimentar de muitas coisas, para que isso desaguasse na minha música. Livros, filmes, viagens, sonhos, tudo é material pra mim. Isso não mudou, percebi cada vez mais que as coisas simples são as mais importantes e que as grandiosas nascem delas. Na verdade, tudo parte do desejo inicial e do amor pela música.
Eu noto na faixa “Vou Gritar Seu Nome” uma narrativa agridoce, que dialoga com a beleza contida nas coisas tristes, com o desabrochar de sonhos. Tendo vivenciado experiências artísticas, sonoras, culturais, sociopolíticas tão distintas… com o que tem sonhado ultimamente?
Acho que, no meio dos lutos todos, tenho ainda muito forte a pulsão de vida, talvez até para ir na contramão desse fascismo que nos assola hoje, que destrói o ar, que detesta arte, menospreza educação e cultura. Ainda assim, eu proponho que o futuro, quem sabe, nos espere com flores… mas a arte é esse grito de descanso, esse oásis no deserto que atravessei! Aliás, a tristeza, esse existencial, cultivo com carinho, ela me ajuda a seguir criando.
Alimenta algum arrependimento?
Não dá tempo! rsrsrs Teria tentando caprichar mais em algumas relações e acontecimentos, mas é besteira nos prendermos a isso, estamos vivos, vamos tentar melhorar sempre. Eu pelo menos vou. Imperfeita, doida, às vezes cansada, mas tenho muita energia pra recomeçar!
Todas as 15 faixas de “Pelespírito” são composições suas, um trabalho que se desenrola com muita sensibilidade. Para além do próprio repertório, é nítida a relação intrínseca que mantém com a poesia… Que espaço ela ocupa na sua formação? Acha que ela tem o poder necessário para transformar um país afundado em ignorância, em brutalidade e que tem rechaçado a arte como o nosso?
Eu só canto por causa da poesia e escrever pra mim, é tentar rastreá-la. Eu fiz todas com Juliano Holanda, melodia e também um letrista/poeta. Foi um espasmo nossa parceria. Às vezes mais de uma por dia. Tudo por zap! Se a poesia tivesse força pra conter a ignorância, não estaríamos aqui, falando assim, não é? Eu faço o que me cabe, como cidadã, artista, mulher, LGBT. Digo que sou uma formiga. Mas uma formiga atômica! “E quando eu digo vem, é porque eu também vou!” Adoraria ter mais força e espaço, mas se cada um fizer o máximo que puder, chegaremos em algum lugar melhor.
Um momento que marca a sua biografia é o período em que passou vivendo nos Emirados Árabes depois de lançar o LP “Outra Luz”. Que importância teve essa temporada no Oriente Médio? Que memórias guarda dessa viagem?
Foi muito bonita minha viagem, porque pra tão longe e pra um lugar tão longe, pra um lugar tão improvável, você acaba mergulhado um tanto pra dentro. Foi quando rompi meu cordão com minha família, no bom sentido. Percebi que eu poderia viver sozinha também. “Solidão, quem pode evitar? Te encontro enfim”. Eu andava na pior no Brasil e fui trabalhar, tinha um salário, abri a cabeça, depois passei 5 meses na França, depois de umas férias de mochila na Tailândia. Coisas da juventude, foi muito importante pra mim. Escrevi bastante naquela época, muita coisa virou música.
Não faz muito tempo você excursionou com Jaques Morelenbaum. Chegou a ouvir o EP de estreia da filha dele, Dora? Quais são os discos que não param de tocar por aí, as suas leituras do momento?
Dora é uma das gratíssimas surpresas do que acredito ser novo e belo, entre as coisas que ouvi. Ah, Joni Mitchel, Caetano, Itamar Assumpção, sempre estão perto de mim.
Nessas quatro décadas você fez grandes amigos, entre eles a Simone, com quem gravou o DVD “Amigo é Casa”, e Filipe Catto, que te convidou pra cantar Madonna em uma live neste mês. Que legado as amizades firmadas nesse percurso deixam à sua carreira, à sua trajetória?
São sinais, acredito neles. Simone, um ídolo pra mim, quando comecei a cantar. Filipe, que cresceu sabendo que eu existia, uma voz que abala meu coração, aliás essas duas! Eu dou muito valor aos amigos, talvez seja o que faço melhor. Esses amores encontrados e escolhidos!
Quem te acompanha sabe que você sempre foi uma artista singular, muito comprometida com o que acredita e que nunca teve medo de se posicionar. Você encara também o envelhecimento de uma forma muito saudável e inspiradora. Sente que o etarismo te afetou de alguma forma? Em algum momento se viu pressionada, cobrada pela indústria, pelo showbizz?
O mundo e especialmente o Brasil, não tratam bem a velhice. Mas faz parte da ignorância e da superficialidade das relações, da publicidade, do capitalismo desenfreado. Tive meus momentos frágeis, mas eu me pego pelo colarinho e boto meus pés no chão. Envelhecer é um prêmio que só ganha, quem vence o tempo. Às vezes dou risada, quando numas fotos minha cara fresquinha, bonita e ao mesmo tempo sei que hoje eu sou tão mais interessante e sabida. Não tenho inveja da juventude, tive a minha, aproveitei bem e me sinto muito bem aos 56. Corro quase todo dia, malho, me sinto amada. É chato vez em quando, porque são muitas fotos e posts, já não rola a mesma fotogenia rsrsrs Mas eu realmente não quero perder tempo fingindo idade, usando filtros na rede, imobilizando minhas expressões. No Japão, envelhecer é uma honra! No Brasil devia ser uma glória!
Vários artistas respeitados (entre eles Elton John e Ney Matogrosso) têm trabalhado na escrita de autobiografias, livros de memória. O próprio Caetano, de quem você é muito fã, reeditou anos atrás “Verdade Tropical”. Já teve vontade de escrever algo parecido? Vê como instigante a ideia de dissecar a própria obra, os próprios passos?
Estou escrevendo um livro que talvez saia esse ano, não é biográfico exatamente, mas tb não deixa de ser. São impressões, conversas sobre música, letras, músicos, acho que cumpre um pouco esse papel. Não me vejo escrevendo uma biografia oficial, não acho que eu mereça isso. Mas tenho vivido o bastante para querer falar de algumas coisas. Espero que seja interessante, eu amo escrever.
Em “Pelespírito” há também espaço para reafirmar a paixão de viver. Se pudesse fazer uma declaração de amor a si mesma, qual seria?
Obrigada por perguntas tão inteligentes, fazia tempo que não respondia uma assim. ‘O que eu amo em você é quando você percebe, que ainda falta muito pra fazer’.
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O novo LP de Zélia Duncan está disponível em todas os tocadores digitais. Ainda como parte da agenda de lançamento e a fim de celebrar a carreira, a artista prepara uma live a ser realizada no dia 19 de junho, às 21h. Mais informações devem ser reveladas em breve no site oficial.