A cultura pop moldou a personalidade e os gostos da jornalista e doutoranda em comunicação Mariana Lins. Aos 11 anos e moradora do Recife, ela tinha o hábito de gravar as canções que tocavam em seu mini-system usando uma fita-K7. “Um dia tocou ‘One More Time’, do Daft Punk, e achei o som interessante. Apertei rec”, lembra. Quando os 5:20 de duração terminaram, sem ao menos dar um intervalo entre a próxima faixa, a voz robotizada de Madonna emendou recitando os versos introdutórios de “Music”.
Começava ali uma paixão. “Fiquei alucinada, mas não conseguia associar a voz à pessoa. Eu a conhecia pelos escândalos e pelos óbvios, por ‘Like a Virgin’ e ‘Like a Prayer’. Pra mim, a Madonna era uma figura dos anos 1980, que não pertencia à minha contemporaneidade”, diz. “Pensava que não podia ser ela, a sonoridade era muito jovem, moderna”.
Depois de levar a dita gravação à casa de uma amiga, viciada nas maratonas de clipes exibidas pela MTV, descobriu que se tratava, de fato, da rainha do pop. “Comecei a pesquisar sobre ela e me encantei. Quanto mais eu pesquisava, mais eu descobria. A biografia me pareceu uma coisa extraordinária e eu não tinha ouvido falar em uma mulher que tivesse alcançado tantos feitos. Comecei a me aprofundar, a comprar discos, baixava algumas coisas, ainda que fosse difícil àquela altura. Virei a cabeça”.
A admiração, que a levou a cruzar o oceano algumas vezes para assistir às apresentações da artista, acabou se transformando em trabalho acadêmico. Lins acaba de lançar em parceria com os professores Thiago Soares e Alan Mangabeira o livro “Divas Pop: o corpo-som das cantoras” (PPGCOM/UFMG), obra com doze artigos e que se propõe a esmiuçar os complexos universos que circundam ícones como a estrela norte-americana.
Soares é professor do departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mangabeira, por sua vez, atua no departamento de Comunicação Social da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), sendo doutor em comunicação também pela UFPE. Alinhado, o trio fez a curadoria de textos que se entrelaçam ainda às trajetórias pessoais de cada um dos autores.
Da soprano Maria Callas, considerada a primeira e maior diva pop do século 20, a Pabllo Vittar, um fenômeno representante da era dos streamings, o projeto reforça a produção de conhecimento interdisciplinar sobre os constantes entrecruzamentos da cultura pop com os campos da comunicação, história, filosofia, etnografia e sociologia.
“Todos temos histórias com a cultura pop que dizem respeito, para além do viés acadêmico, ao consumo ao longo da vida. Sempre fomos fãs, sempre fomos a shows. Minha relação com Madonna foi determinante pra minha escolha da graduação em jornalismo, e depois o que veio a ser o mestrado e o doutorado”, explica Mariana. “O fato de eu ser fã me levou a essa jornada acadêmica porque eu a usei muitas vezes pra pensar política, envelhecimento e o próprio feminismo”.
O artigo que ela assina, intitulado “This is show business“, analisa a cultura dos megaespectáculos pop e a invenção do chamado “padrão Madonna”. Em 1990, a artista revolucionou os modelos de turnê ao vivo ao colocar na estrada o show “Blond Ambition“. Para além das polêmicas envolvendo o concerto que a levou à excomunhão pela Igreja Católica, a superestrutura, a divisão em blocos temáticos e os figurinos alinhados a uma estética conceitual nunca antes tinham sido colocados em cena. A partir dali, reproduções fidedignas seriam feitas décadas adentro pela indústria.
“Claro que havia shows em arenas, estádios lotados. Os Beatles faziam isso, por exemplo. Mas não existia uma coisa cênica exacerbada que bebe na fonte da Broadway”, explica. “Meu texto fala sobre a concepção desse estilo, historicizando a coisa. Eu, particularmente, nunca achei algum artigo que falasse claramente sobre isso e sobre o fascínio que se cria no público a partir do que Madonna faz no palco. Ela se tornou muito conhecida não só pela polêmica, mas pela qualidade. É um conjunto que a torna uma figura grandiosa na música, independentemente do gênero”.
“Divas Pop”, cabe destacar, é igualmente fruto das reuniões do Grupo de Pesquisa em Comunicação, Música e Cultura Pop da UFPE, o GruPop. Criado há dez anos, ele é responsável por interlocuções com a rede de pesquisadores de Comunicação e Música no Brasil, englobando discussões que tangem ainda os campos da antropologia, da filosofia e de questões ligadas a gênero e raça. Um exemplo é “Anitta no Rock in Rio: negociações de corpos e territórios em performances de divas pop-periféricas”, artigo da professora titular do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF), Simone Pereira Sá.
Surgem também outros momentos importantes na narrativa como o texto que esquadrinha a experiência estética na peregrinação de fãs de Britney Spears a Las Vegas, assinado por Mangabeira. Há ainda análises sobre a “fabulosa aventura da diva”, personificada na “top drag brasileira” Pabllo Vittar, e as performances e dramas do casal Carter. Lady Gaga, outro ícone, oferece como objeto os processos de autoconstrução, canonicidade e exagero relacionados à era “ARTPOP”.
“Tentamos cobrir a maior parte de artistas que pudemos, não só preocupados com a diversidade, mas em incluir pessoas que pudessem suscitar temas amplos. Não queríamos que fosse só sobre musas, mas que pudesse abarcar as questões que estão no entorno de cada uma”, diz.
Até pensar na possibilidade de cursar um mestrado, a jornalista não sabia que podia levar as próprias paixões para a universidade. Diz, em tom de brincadeira, que pensava ser seu destino “escrever eternamente em um caderno de cultura, o máximo que poderia ter de contato com o universo ‘madônnico'”. Foi o chefe de redação e posterior orientador um dos responsáveis por alertá-la sobre a oportunidade de, inclusive, usar o próprio acervo como fonte de pesquisa.
Apesar do interesse e do esforço constantes, os desafios de se desenvolver uma pesquisa no Brasil continuam sendo muitos, a começar pela rigidez dos processos acadêmicos que impedem o aluno de enxergar a possibilidade de pensar figuras e temáticas consideradas mainstream. Ela chama a atenção para este aspecto. “Existe um monte de temas que, à primeira vista, talvez as pessoas que não tem tanta afinidade com o pop julgam não ser pertinentes. É isso que tentamos fazer com esse livro, com os nossos trabalhos. Abordar a política, formas de ver o mundo, estéticas, e temas que dizem respeito a todos nós a partir desses objetos”.
O panorama econômico, de forma semelhante, não é de todo amigável. Em agosto de 2020, por exemplo, o Ministério da Educação (MEC) afirmou que planejava para o ano vigente um corte de R$ 4,2 bilhões no orçamento das despesas discricionárias, ou seja, aquelas consideradas não obrigatórias. O saldo significaria uma redução 18,2% no orçamento de universidades e institutos federais – medidas que fazem com que a pós-graduação, considerada o motor da pesquisa científica no Brasil, não tenha força suficiente para sobreviver às repetidas tentativas de sufocamento.
Nesse cenário apocalíptico, Lins pondera que os financiamentos minguam mais nas Ciências Humanas em comparação ao investido nas demais áreas de conhecimento – ainda que todas sofram com os desmontes. “Vivemos um período em que as humanidades são meio que ‘patinhos feios’ no campo dos investimentos e financiamento, estão em um segundo plano. Imagine uma pesquisa em cultura pop que encontra resistência dentro da academia. As pessoas acham que não é tão necessário. O nosso livro vem pra legitimar esse espaço, reforçando a seriedade do trabalho a que nos propusemos”.
O panorama, entretanto, não deve ser aceito como desanimador. “Vivenciei muitas resistências na academia e sei que, apesar de tudo, as coisas mudam devagar. Nosso trabalho não apenas é contemporâneo, como oportuno, necessário. Muitas vezes urgente. Queremos difundir a ciência e ainda que seja de pouquinho em pouquinho, a única coisa que não podemos fazer é nos calar”.
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