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Entrevista com Rico Dalasam: “Do abismo também se pode ecoar as coisas”

Em 2017, Rico Dalasam decidiu que era hora de meter o pé no freio. Os ânimos não eram os melhores e começava ali um exercício de ressignificação da própria carreira. Dois anos se passaram em completo hiato até que, distante de pressões e estratégias massivas de lançamento, voltou a ser visitado pela deusa da criatividade.

Com o single “Braille“, um de seus sucessos mais recentes e vencedor do Prêmio Multishow na categoria Canção do Ano, entendeu que poderia abrir caminho para algo maior. Surge aí o disco “Dolores Dala, o Guardião do Alívio”, trabalho que chega nesta sexta-feira (12) entrelaçando África e América.

Descrito como “o desenho de um coração preto na América do Sul”, o LP tem produção de Mahal Pita, Dinho Souza, Rafa Dias, Pedrowl ,Moisés Guimarães, Netto Galdino e Wallace Chibatinha. Como um todo, foge de eventuais celebrações de retorno para se voltar em direção ao interior com fábulas que transcendem, a partir de sons e rimas intimistas, um coração marcado.

Como se em um expurgo, “DDGA” homenageia os afetos fazendo com que Rico Dalasam seja… Rico Dalasam.

Abaixo, você confere a íntegra de uma entrevista feita com o artista dias antes da estreia.

***

Papelpop: Na abertura do disco você diz que “não falaria de alívio se não tivesse doído tanto“, uma frase que de certa forma norteia a sua narrativa. Conta um pouco sobre o projeto, sobre essas conexões.

RICO DALASAM: Acho que ‘Dolores Dala, o Guardião do Alívio’ é, antes de tudo, uma fábula. Sou eu me protegendo com ferramentas que quando algo ruim acontece, quando algo dá errado, ou foge do controle da minha mão, ficam as palavras, a literatura. É aí que eu começo a escrever, escrever, escrever, embora a disciplina que eu mais tenha afinidade seja a música – por isso parte das coisas que crio viram canções. Trazer essa dualidade de dor e alívio é pra mim, sem dúvida, o único jeito possível de me ver outra vez fazendo música. O que mais fica nítido nessa história, se você acompanhar toda a minha trajetória, é entender que existiu um tempo de prática de ausência entre 2017 e 2019. Foram dois anos sem estreias, nesse momento todos os códigos precisaram ser jogados fora. Todo o conteúdo que existia dentro de uma pasta que eu tinha sobre festas populares brasileiras, sonoridades e enredos que envolvem, sobretudo, coisas do verão e carnaval, precisei botar isso em segundo plano. Quis buscar outro galho em que pudesse me agarrar. Depois de muito tempo de ausência e ausência das palavras aqui, eu consegui. Nem tô falando de mercado, de indústria… Eu precisei refletir se ainda tinha jeito pra mim, até o momento que eu precisei parar e pensar, se não tiver eu faço outra coisa. Existem outras disciplinas de talento que me permitiriam tocar a vida. Em 2019, quando finalmente escrevi “Braille” e comecei a produzir… Poxa… [risos] Senti que estava vivo. Naquele outro galho que eu estava, estava muito imerso, entregando coisas, vivendo uma demanda, demandas que não eram minhas, inclusive. De alguma maneira, os olhos das pessoas, gravadoras, viam que eu tinha algo a entregar voltado naquele lugar e isso me gerava demanda. Mas eram coisas que eu fazia só pra descolar um dinheiro, pra me virar. Fiquei meio fora de forma e tava sentado no sofá comendo sorvete e pipoca, no senso criativo da coisa. Precisei voltar a fazer esses exercícios, me calibrar… leva tempo pra se habituar de novo. Fomos entendendo que a partir dessa música tinha um sentido, uma narrativa, fui obedecendo o tempo de deixá-la vir sem pressa. É por isso que estamos numa campanha que dura 2 anos.

Você aborda temas como ausência, dor, morte, afetividade. Não é um disco festivo…

… Não é mesmo.

Por ser um artista pop, certamente, imagino que esse não tenha sido o caminho esperado pelo seu público. São duas perguntas: por que tomar esse rumo? Sentiu cobrança?

O caminho que tomei em ‘DDGA’ é o oposto do que eu seguia antes. Apenas. Todos os códigos que você encontrava em mim em 2016, 2017, foram invertidos. No meio dessa rota, eu meti um giro de 90º. Isso vai trazer ao público outra música, as músicas em si obedecem outro bpm. A minha pesquisa do popular está nos acabamentos, eles sim são pop. Se você compreende a fundo minha sonoridade, você vai ver o pagode, o sertanejo no meio das coisas. Algumas narrativas, alguns versos são meus, mas serviriam pra Marília [Mendonça], pro Ferrugem, pro Dilsinho, Péricles, Exaltasamba… Ou você aceita que está sendo outra vez agraciado, recebendo alguma coisa do invisível pra criar, ou fica nadando errado, nadando no caminho contrário que direciona. A gente acompanha, isso só leva a um destino: o esgotamento artístico. Ele sempre vem quando a pessoa insiste em um bagulho que ela já acertou, ela quer repetir, ela não respeita que a própria arte, na relação íntima que trava consigo mesmo, pede uma certa ausência. A ausência é um fator dentro da arte contemporânea, do cinema. O silêncio também é um parceiro dessa linguagem e a gente esquece disso na música. As faixas têm sempre que estar cheias, bombando, você precisa cantar no último tom que a sua voz pode aguentar, não é assim.

Ou transmitindo uma mensagem de felicidade. A felicidade por si só não é um estado permanente.

É, e você tem que narrar sempre algo que vai te dar dinheiro, propor pras pessoas um imaginário de plenitude, ou prosperidade. Ou reafirmar que você se vingou mesmo, que agora é a sua vez. Que alcançou o poder. ‘Okay’ se essa for a sua onda, não é uma crítica minha. Mas existem outros momentos e algumas pessoas recebem um convite pra vivê-los na música, na arte. Vai muito do quanto você se entrega às suas criações. Muitas vezes você faz mil coisas, mas sem nunca ter se permitido de fato. Outras pessoas acabaram se entregando por você, se doando, como pesquisadores de melodias, refrãos, temas. Assim vai se construindo o universo do mercado.

Em alguns momentos fica nítido como você se emociona na interpretação das faixas. Poder colocar esses sentimentos pra fora te tirou um pouco daquele lugar de solidão?

Sabe, do abismo também se pode ecoar as coisas. Você consegue provocar ecos diretamente do abismo. Você consegue comunicar de alguma maneira e a gente se habitua às coisas. A gente se acostuma. Estamos aí usando máscaras há um ano, por exemplo. E eu aposto que comigo aconteceu isso. O que eu era não está mais aqui, coisas tiveram que morrer na música, na minha vida. De alguma maneira fui instigado a encontrar outra performance, outro percurso, outro jeito, inclusive, de lidar com o mercado. Como fazer o dinheiro chegar até mim e eu chegar até ele. Então essa solidão, sendo bem real, não sei se passou. Só não me assusta mais.

“Mudou Como” se volta para isso porque você descreve um sentimento de impotência por não ser ouvido pelo outro. Olhando pra trás, acha que agora as pessoas escutam mais o que tem a dizer?

Na verdade, não acho que as pessoas me escutam mais. As pessoas mudaram, entende? Minhas redes sociais viraram outra coisa, ganharam outra cor de gente, um outro caminho etário. Outro código. Quando você lê estatísticas, demografias da coisa, é possível perceber isso na prática. Eu quis ser sincero com as pessoas pra estabelecer esse encontro, talvez estivesse fazendo isso em um outro momento pensando em algo que dá retorno, mas aí também seria um retorno não intimista, seria macro. É legal também, mas eu preferi essa conexão íntima. As novas faixas foram feitas pra ir no osso dos temas que decidi discutir, não dava pra pasteurizar aquilo ali em seis linhas e ficar repetindo. Nesse momento, não. Eu amo, adoro fazer coisas práticas em que você resolve uma composição inteira em duas linhas e o resto só se elabora pra suprir a falta de algo. Mas já que estou falando de outra coisa, era hora de conceituar de novo.

“Dolores Dala, o Guardião do Alívio” tem arranjos muito elegantes, a forma com que você trabalha as referências de música afro-latina é muito bonita, respeitosa. O que você ouviu nesse meio tempo, como foi a pesquisa pro disco?

Eita. É baita complexo você chegar num denominador tendo em mente o que se produz em um disco. Dizer ‘Olha, embaixo dessa faixa tem uma pesquisa sobre tema X, tal coisa, ah, isso aqui peguei de Gilberto Gil’… Mas nesse trabalho, sem dúvida, nos voltamos pra um pop estranho, que é sonoramente estranho e global. O que é um pop estranho? É aquela coisa que não é feita pra ser gigante, e sim pra sair do underground. Algo que alcança o mainstream, performa e voa. Tem uma série de artistas que me inspira e que pertence a esse lugar. Gosto do primeiro instante da Rosalía, do C. Tangana, que é um cara massa, até já troquei umas coisas com ele. A Kali Uchis também, logo quando ela aparece, é muito legal. Cito também o Frank Ocean… Acho que, em termos de som, faixas estranhas me levam a um lugar que me contempla. Já os acabamentos brasileiros da coisa estão muito no que de fato é o meu repertório de vida, porque trazem minha bagagem como ela é desde o primeiro instante. Uma grande parte dessas músicas, se deixarem apenas um cavaquinho na minha mão, cavaquinho este que estou olhando pra ele agora [risos], dá pra resolver.

O Brasil é um país que tem dificuldade de se reconhecer enquanto latino, também não lida bem com as questões raciais. Com a própria identidade, em outras palavras. O que torna tão complicada a nossa compreensão que atrapalha a percepção desses temas, o “abraço” definitivo a essa identidade?

A nossa história, como ela se dá. Ela vai criando em nós não só um vira-latismo, que é essa coisa de achar que tudo que é norte-americano é mais legal, mas também um lance de isolamento. A gente tá ilhado aqui, a gente não têm uma língua próxima, um outro país vizinho que possibilite uma série de conexões que só a língua pode criar. Estamos falando de um processo colonial que se desdobra e o Brasil é o case de estrutura colonial de maior sucesso da história, o lugar em que esse sistema deu mais certo. Tudo isso respinga no que a gente faz, sobretudo a cultura, o que eu tenho a pretensão de fazer. Nisso aí fica nítida a questão da identidade… Pensando bem, até vemos um desdobramento disso junto ao espanhol nos últimos anos. Falei do Tangana, há pouco tempo ele apareceu cantando com o Toquinho. Vai se criando uma visão de que, culturalmente, é possível se conectar. E no tempo que a gente vive, na arte contemporânea, é mesmo o momento de viver esse retorno, essa ‘reparação histórica’. Hoje existem museus da Holanda que devolvem obras de arte pra nações africanas. Chegamos também num estágio em que a própria Europa se envergonha da colonização. É óbvio que isso vai reverberar na cultura pop. Às vezes, penso em lugares e imagino que, por exemplo, a Rosalía consegue se aproximar muito do contexto latino-americano cantando sob um viés da Colômbia, fazendo uma parceria com J Balvin. Mas ela poderia também se conectar muito mais com a música árabe. A [região da] Andaluzia é muito próxima dessa cultura oriental, foi povoada, inclusive, por essas pessoas, séculos atrás. Tudo ali está a um passo do próprio Marrocos. O desenvolvimento da música local acaba flertando um pouco com a música moura. Quando o artista faz isso, ele se humaniza no colonizado. Quanto à perspectiva afro-latina isso ainda tá por se desenhar. É que estamos falando desse diálogo, a princípio, sob uma perspectiva de branquitude-branquitude, né? O duo Ibeyi é chiquérrimo, chega grandão na Europa, aquelas meninas fazem projetos com Gucci, Beyoncé… Mas esse imaginário, tudo ainda me parece meio turvo. Ou você integra de certa forma um Hemisfério Norte porque se consideram determinados lugares como parte dos Estados Unidos, parte de determinadas ilhas agregadas, ou isso fica meio perdido no caminho, são casos isolados. Não dá ainda pra Rico Dalasam bater em Portugal e achar que é isso, que tá tudo certo. Tudo por conta do processo colonial.

E como foi pra você se reconhecer afro-latino? 

Nos últimos anos eu fiz shows em alguns lugares. Me apresentei no México, no Uruguai, na Venezuela, todos lugares muito distintos de uma mesma América Latina, com universos muitos particulares. E entendendo a história negra nesses espaços, como o território do continente americano vai sendo construído a partir da memória e das suas diásporas, você cria referências. Existem muitos casos de extermínio completo de religiões de matriz africana em qualquer local da América, o que não anula resquícios mais sutis. Você pode até não ver o negro, de fato, mas os traços da cultura dele ficaram ali. O Brasil tem Salvador, o que nos torna muito diferentes. Não existe outro lugar na América que se assemelhe. E aí, se entender como latino-americano fica mais distante do que se entender como África. Um exemplo: meus amigos uruguaios criam uma ligação com Itália e Espanha muito mais fácil. Acho que é daí que vêm essas coisas. Imagina juntar Kali Uchis, MC Tha, Lido Pimienta e Rosalía. Você vai conseguir fazer uma análise de América Latina e de colonialidade dentro desse lugar que de identificação. Quanto ao negro retinto, que é o meu caso, é uma outra lógica. Se eu quiser ir a fundo, pode ser que me entenda muito mais como norte-americano do que como afro latino, tenho muito mais referencial, muitas histórias mais capazes de me atravessar, casos e personalidades norte-americanas pretas que vão me fazer enxergar o que sou dentro delas… muito mais do que qualquer imaginário possível de América Latina.

Pensando no último interlude do álbum, “Outros Finais” [um dos versos diz “Ninguém está mais no mesmo lugar”]… Em que lugar você está hoje? Sente raiva de alguém?

[Risos – o artista faz uma pausa] Eu estou em um lugar muito distante, inimaginável pra mim no meu trajeto, na minha vida. Quando eu precisei me recolher, recolhi tudo que dizia respeito a mim. Isso se desdobrou em uma série de coisas, sou um artista que poderia ser de uma gravadora e não sou, alguém que já prestou serviços que tiveram êxito em vários lugares… Eu tive que me readequar, vivo de uma outra maneira. Sempre tive uma vida simples, não vivi uma onda de ostentação. Gosto de viajar, mas não gosto de esbanjar dinheiro. Mas hoje, meu jeito de elaborar as coisas, antes de elas virarem um produto, sei que ele tá muito distante de qualquer processo que a gente acompanha aí em qualquer seara do mercado. Isso me coloca em um lugar de paz, de pensar que tudo está tudo bem. O que mais me sacia é saber que estou, artisticamente, muito vivo. Eu podia estar fudido. Estar, artisticamente, esgotado, sem saber o que fazer e ficar tentando toda hora uma música que poderia não bater. Se a ausência não está nos seus planos, fica até duvidoso enquanto arte. Achar o alívio não é dizer que ficou de boas, quem bate fica no alívio que já tava. Mas quem apanha precisa achar o alívio de novo, seguir por outros caminhos. Quando você é violentado, você não fica legal de imediato, você tem que tratar seus traumas. Não foi semana passada que apanhei, mas nem por isso vou ficar reverberando fantasmas. Já faz bastante tempo e estou  em outra, esse disco aí é a prova disso.

Quero fazer uma provocação baseada no que diz o refrão de “Braille”. O que é preciso pra “ler” Rico Dalasam?

Não é difícil, não. Mas é inevitável que você tire o sapatinho da colonização, esse binóculo. É preciso olhar da mesma forma que se olha pra um artista universalizado pelo simples fato de ser branco. Inevitavelmente, no meu caso, se fosse um artista branco a história seria outra.

***

Ouça “Dolores Dala, o Guardião do Alívio” no streaming.

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