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Entrevista com Laura Pausini, indicada ao Oscar: “A emoção não tem idioma”

Autora de incontáveis baladas românticas lançadas ao longo das últimas três décadas, Laura Pausini recebeu notícias da Califórnia na última semana. Sentada no sofá de casa ao lado do marido Paolo e da filha Paola, soube que uma de suas músicas disputaria uma estatueta do Oscar. Os pais, isolados no Norte da Itália, festejavam a boa nova em meio a gritos atônitos pelo telefone. Todos eles acompanhavam a cerimônia à distância, pelo ZOOM.

“Eu comecei a cantar com meu pai aos 8 anos de idade. Você sabe, é ele o Pausini original, o que controla muito”, diz ela em entrevista. Filha do cantor e multi-instrumentista Fabrizio Pausini e da professora Gianna Balardinni, a artista lembra que seu senso de realidade na infância humilde, vivida ao longo dos anos 1980 no povoado de Faenza, nunca foi estimulante ao ponto de permiti-la fazer grandes planos.

“Quando criança, eu queria ser arquiteta e cantar à noite em um piano-bar. Já ele me dizia ‘Não gosto que você sonhe pequeno’ e, de fato, a ambição do meu pai sempre foi muito maior que a minha. Só que eu não conhecia nenhuma mulher que cantasse sozinha, como eu faço. Não achava que era possível, por exemplo, cantar em um grande festival como o San Remo. Ganhar o Grammy, então, era algo inalcançável. Ter um Golden Globes e um Oscar na estante? Nem sabia que era uma coisa para cantores”.

Quase 30 anos depois de ter vencido o mais tradicional festival de música da Itália e estourar nas rádios de países como Espanha, Brasil e México com o single La Solitudine, a artista vê sonhos antigos se materializarem. Após levar pra casa, em janeiro deste ano, um Golden Globe na categoria Melhor Canção Original, vive a nova experiência como uma menina “que se delicia com uma caixa de caramelos que nunca se esvazia”. Agora, a faixa-tema do drama “Rosa e Momo”, primeiro filme em décadas estrelado pela lenda do cinema italiano Sophia Loren, é quem a faz correr pela mais importante prêmio do cinema.

Baseado no livro ‘A Vida Pela Frente’, de Romain Gary, o longa se dedica a esmiuçar o drama da imigração tendo como protagonista um adolescente senegalês. Interpretado pelo estreante Ibrahima Gueye, o jovem órfão vive de pequenos furtos e serviços feitos para o tráfico de drogas até que conhece uma ex-prostituta sobrevivente do holocausto. Ao assumir a missão de cuidar dos filhos de suas colegas de profissão, esta experiente senhora também decide acolhê-lo em um gesto que amplia a definição de família. 

Ibrahima Gueye (dir.) e Sophia Loren (esq.) em “Rosa e Momo”; Foto: Divulgação/Netflix

Poliglota, Laura faz questão de se comunicar com a mesma dedicação em todos os cinco idiomas em que é fluente – línguas estas que, por consequência, escolheu cantar ‘Io Si (Seen)’. No perfil que mantém no Instagram, com cerca de 3,5 milhões de seguidores, faz legendas enormes e reafirma o desejo de se dirigir, diretamente, ao público. “O francês eu pratico menos. Mas nas redes sociais, gosto que as pessoas entendam tudo o que eu escrevo porque como falo muito, também escrevo muito. Traduzo tudo na maior parte das vezes e só quando não posso envio prints da legenda pra minha equipe. Aí eles sobem”.

Parece bobo, mas o gesto aponta uma preocupação que tange, em consonância com o enredo de “Rosa e Momo”, um compromisso social. Nos últimos dois anos, a crise migratória se agravou no Sul da Europa. Dados do Ministério do Interior da Itália mostram que o número de refugiados no país mais do que dobrou entre agosto de 2019 e o fim de julho de 2020. Neste período, foi registrado um aumento de 148% no percentual de pessoas que pediram asilo – a maioria, em condições sub-humanas após atracagens autônomas feitas em barcos e botes superlotados.

O tema da canção que concorre ao Oscar, portanto, não é estranho ao repertório da artista. Em 1996, no disco “Le Cose Che Vivi”, Pausini já cantava sobre um “mundo dos sonhos” em que pautas do gênero seriam tratadas com justiça e acolhimento. “Lembro de ‘Il Mondo Que Vorrei’, primeira faixa que compus sobre isso aos 19 anos. Depois muitas outras vieram, sempre com o mesmo assunto, mas chegou ao ponto de o disco ‘Simili’ (2015) abordá-lo em todas as músicas. Somos diferentes, mas dividir, separar, não é algo possível no meu pensamento pra um ser-humano que só quer viver”.

Por ter embarcado em turnês que a deixaram longe de casa com cada vez mais frequência, diz tentar enxergar o drama dos refugiados sob a ótica da fraternidade. “Um imigrante não é um clandestino que quer matar, é alguém que precisa que alguém lhe ofereça uma mão. É importante que abramos nossos braços para sermos mais compreensivos, atentos às necessidades das outras pessoas, não pensar somente em nós. Com a pandemia não houve uma melhora nesse aspecto. Sempre se pensa mais em si e isso não é justo”.

Ao se afirmar como uma deles, embora cheia de privilégios, sugere uma reflexão. “Eu moro nos países do mundo há 28 anos. Imagina se não tivesse tido a chance de receber o amor que recebi de tantas pessoas, de tantas nações? Como eu viveria tudo isso? Agora mesmo posso dizer que o Brasil tem uma indicação ao Oscar, porque a Laura tem!”.

Apesar de estar cercada por estrelas, Laura não é chegada a extravagâncias. A primeira ligação que fez depois de saber que concorria ao troféu foi para a escola da filha, ansiosa para que os colegas de classe soubessem do feito da mãe. “Foi lindo ver todas as crianças gritando”. Isolada em Roma, permitiu-se apenas estourar uma champanhe. Ela garante que foi um ato simbólico e que sequer bebericou a taça. “Eu sou abstêmia, só tomo água sem gás”.

Nos últimos dias, as horas de sono também rarearam. No fim de semana anterior à revelação dos indicados, não pregou os olhos pela tensão. Depois de, finalmente, colher os louros, acabou insone por causa da adrenalina. Havia ainda uma extensa agenda de compromissos pela frente.

Na segunda-feira, por exemplo, atendeu a imprensa yankee – fundamental nesta fase em que a campanha pelo prêmio segue em um ritmo alucinante. Na terça, usando um terninho desenhado pelo estilista Pierpaolo Piccioli, da grife Valentino, reservou a manhã para falar com a Europa. Em seguida, pela tarde, foi a vez da América Latina. Havia também uma gravação de TV agendada para o início da noite – e que os assessores lembravam a todo momento.

Prolixa e atenta aos mínimos detalhes, Laura pretende ir a Los Angeles no próximo dia 25, quando acontece a cerimônia de entrega do Oscar. No tapete vermelho, deve repetir a parceria com a maison italiana que veste agora, diante da câmera, em um traje que a princípio deseja ser vermelho ou fúcsia. “Vamos ver o que me aconselham”. Por enquanto, apesar do frenesi e das celebrações, ainda não sabe se vai poder se apresentar em virtude do rígido esquema de segurança adotado contra o vírus.

“A gente espera que aconteça o mesmo que rolou no Grammy, foi bem organizado. Mas ainda não temos um roteiro, uma agenda que garanta algo”. Em contato com a parceira de composição Diane Warren, preza pelo otimismo. “Ontem à noite nos falamos e soube que estão fazendo uma nova abertura gradual na Califórnia, permitindo visitas a shoppings, teatros e cinemas… pode ser que haja uma boa resposta até o fim de abril. Uma vez que tenho uma oportunidade de estar lá, quero cantar”.

Foto: Divulgação

Durante a conversa, foram várias as vezes em que se emocionou. Primeiro, pelo feito da indicação ter sido conquistado no dia 15 de março, data em que celebra o aniversário de morte da avó. Depois, por um sentimento de culpa já que, em suas palavras, é um tanto difícil celebrar enquanto centenas de pessoas perdem a vida vítimas da Covid-19.

“Eu esperei muito por tudo isso, mas quando, finalmente, se alcança uma oportunidade assim… você se borra”. Ela faz uma pausa, pega o celular e o aproxima da tela. “Há 158 mensagens não lidas aqui, você vê? Minha família e meus amigos estão sempre conversando comigo e reforçam que dentro das notícias de dor que estamos todos recebendo, estar indicada acaba sendo um presente para a Itália. Isso significa que preciso viver sem culpa”.

Um dos recados é de Edoardo Ponti, diretor do longa “Rosa e Momo” e filho da própria Sophia Loren. “Não sei se vocês entendem o que é para um italiano estar ligado à Sophia Loren de alguma forma. Veja o que ele me escreveu: ‘Mamãe ama tanto você que quando perguntaram se ela queria que você cantasse e te confirmaram, digo com tranquilidade, ela ficou 1000% comovida’”.

A Diane Warren, superpremiada compositora que compartilha os créditos de “Io Si (Seen)”, também não faltam elogios. O currículo e a longevidade justificam. Clássicos como ‘Because You Loved Me’, de Celine Dion’, e “I Was Here”, de Beyoncé, entre outros, partiram de suas mãos. A amizade com Laura veio antes, ainda nos anos 1990, durante uma temporada da italiana em Los Angeles. Para o mundo, no entanto, a parceria só se revelaria agora porque àquela altura “nenhuma das partes se dava por satisfeita”.

“Diane me perguntava: ‘Você está 100% contente?’. Eu respondia ‘acho que falta algo’. Não estávamos convencidas de que aquilo era realmente bom, que conquistava as duas. Agora sabemos o por que”. A chance de ouro tardou, mas veio. “Quando me convidou pra fazer ‘Seen’, me disse exatamente ‘I feel this is the fucking right time for us‘. Diane sempre usa ‘fucking‘ nas frases, acho que é uma marca de sorte”.

Laura Pausini ao lado da estrela mor do cinema italiano, Sophia Loren, nos anos 2000; Foto: Divulgação.

Não foi fácil a tarefa de traduzir para tantas línguas uma canção comovente como esta. Entre armadilhas linguísticas existentes entre os idiomas latinos e a soberania anglo-saxã, Laura diz que a confiança de sua parceira foi essencial no processo. “Em italiano você precisa de uma frase inteira pra traduzir uma palavra de 4 letras como ‘Seen’. Por exemplo, ‘Visto’ pra gente quer dizer passaporte. Perguntei a Diane se me autorizava a usar minhas palavras e ela me deixou livre pra enfrentar o desafio de pensar em sílabas e métricas (…). É uma derrubada de muros. A emoção não tem idioma”.

Enquanto a Academia parece se abrir, ainda que timidamente, para demandas inclusivas que contemplam, entre outras coisas, mudanças em títulos de categorias e maior participação de filmes em línguas que não o inglês, a cantora vê com esperança os lentos avanços. Defende o acesso democrático ao streaming e a manutenção da abertura de fronteiras pela Academia que permitam a nações como a sua não serem esquecidas.

“Muita gente diz achar o italiano lindo, mas pouquíssimos acabam estudando ou falando. É sempre muito difícil estar fora daqui e poder falar no meu próprio idioma. Saber que tenho uma canção com um tema social tão importante e cantada desta forma é um presente, uma honra”.

Parte deste esforço constante de cantar o que se vive, após o Oscar ela passa a se dedicar à criação do sucessor de “Fatti Sentire”, elogiado disco lançado em 2018. Desde o dia 8 de janeiro deste ano reserva às noites o trabalho solitário de audição. Por sua mesa de som já passaram cerca de 500 demos, todas dispostas em um link no Dropbox. Nenhuma traz observações quanto aos autores, já que visa um distanciamento na hora de escolher o que quer interpretar.

“Estou fazendo o que chamo de ‘primeira escuta’. Na próxima etapa, escolho 300 músicas que depois viram 30. Destas, muito diferentes entre si, canto todas pra ver qual se encaixa melhor na minha voz e aí me decido quais levo pro estúdio. Quero ver como me saio cantando novos pops, rocks, baladas”.

O processo exploratório não deve ser tão radical. Embora afirme que as baladas românticas que a consagraram “não vivem um bom momento nas rádios locais”, Laura prefere deixar de fora a experimentação de gêneros como o reguetón e o trap. “Gosto de ouvi-los, mas com a minha voz não é cativante o suficiente, prefiro deixar pra quem sabe cantar. Gostaria de terminar tudo ainda este ano, mas acho que não vai ser possível”. O sentimento, mais uma vez, é quem toma as rédeas. “Não lanço por lançar, sabe? Só faço isso quando tenho algo que dizer. Pra viver, preciso de emoção”.

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