Caminhar pelas ruas de Madrid nunca foi uma atividade muito atrativa aos olhos de Antón Álvarez. Em entrevista ao Papelpop, o cantor espanhol, que hoje atende pelo nome artístico de C. Tangana, diz nunca ter sido um grande fã do estilo arquitetônico da capital espanhola. Não pelo menos até botar o pé na estrada.
“Quando era criança, me lembro que a cidade me parecia pouco exótica, pouco sofisticada quando comparada a outras cidades da Europa. Com o tempo, voltei a amá-la”. Tangana, de fato, precisou de um distanciamento saudável para reconhecer a cidade em que nasceu não apenas como lar, mas também como um espaço de atmosfera própria, capaz de transformar qualquer um que se aventure a viver ali.
Aos 30 anos e sob a batuta dessa filosofia, ele acaba de lançar o disco “El Madrileño”. É o segundo álbum de estúdio da carreira, seu projeto mais ambicioso. Em meio a um curioso diálogo entre referências musicais captadas durante suas andanças por países ibero-americanos, ele convida um punhado de ídolos pra cantar.
Entre as parcerias estão o guitarrista cubano Elíades Ochoa, o uruguaio Jorge Drexler, os reis do rumba-pop Gypsy Kings e o ícone José Feliciano. Do Brasil, quem entra tocando um violão comedido, de alma bossa novista, é Toquinho, convidado do single “Comerte Entera”.
“Sou um fatalista otimista”, diz o veterano. “Essa fusão musical de criadores estrangeiros com a cultura brasileira é saudável, muito criativa, embora não seja nova. Gosto. Quem subtrai isso da sua própria vida, os artistas consagrados, está preparando a cadeira de balanço pra envelhecer”.
Essa inquietação também se reflete na maneira de compor adotada por Tangana, que com frequência se coloca na posição de criador insubordinado. São letras sobre amores platônicos, desejo, solidão, dias cinzentos. Canções que, em praticamente todas as vezes, vão abdicar dos eufemismos. A bússola do mais madrileno de todos não se guia pelo pudor.
Nesta entrevista, o artista apresenta o novo trabalho e fala sobre sua volta pra casa. Ele também ressalta o respeito que tem pela cultura brasileira e narra parte dos caminhos que o trouxeram até o agora.
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Papelpop: “Comerte Entera” é uma faixa que me chama a atenção pela mistura de bossa nova e funk. Como você chegou a esta fusão, a essa combinação de referências tão específica?
C. Tangana: A música tradicional brasileira sempre foi algo que provocou em mim um interesse especial, alguns discos de Toquinho e Vinícius [de Moraes] são discos que escutei ao longo de toda a vida, ou seja, fazem parte de mim. Já o funk é uma descoberta um pouco mais recente, que se deu por conta de uma colaboração que fiz com MC Bin Laden, que se chama “Pa Llamar su Atención”. E um dos meus últimos singles, retoma esse padrão rítmico do funk. “Nunca Estoy”, faixa que me refiro, é fruto de uma colaboração com criadores que já estiveram em estúdio com gente como Drake… Para mim, é um dos sons mais originais que existem no mundo e quando penso na explosão do afrobeat e do reggaeton, era o que mais me parecia fresco, com seu discurso próprio, singular. Agora… o funk é um tipo de música que me faz querer guardar sempre um cantinho do meu estúdio pra inseri-lo nas faixas. Trabalharia com ele sempre que pudesse.
Falamos sobre Toquinho, que te acompanha em voz e violão. É uma parceria que conecta dois universos da música, o clássico e o contemporâneo, para além do contexto ibero-americano. O que simboliza pra você, enquanto artista, poder criar com esse ídolo?
Para mim foi um sonho. O que tenho tentado fazer com essas faixas mais recentes é me reunir com artistas que realmente admiro e não tanto ficar preso à ideia de conseguir eventuais colaborações, parcerias que cairiam bem a um artista de música urbana para fazer com que a carreira deslanche. É uma honra que Toquinho aceite entrar em estúdio comigo e também valorizar minha visão. Isso me dá uma sensação de orgulho muito forte. Felizmente, todas as canções lançadas do projeto estão tendo um ótimo desempenho, o que faz de “El Madrileño” uma espécie de constatação pessoal de que vivo o melhor momento da minha carreira. Acho que vai além dos números, das companhia, da própria percepção. Ter essas pessoas compartilhando o seu processo criativo vale muito mais do que qualquer outro tipo de repercussão, sabe?
Suas letras são bastante provocadoras, rompem com uma hegemonia pop que é, majoritariamente, polida. Não que seja um problema, mas os seus colegas quase sempre cantam evocando uma certa castidade. Em algum momento já se colocou nessa posição de compositor rebelde?
Bom. Sempre foi uma ambição minha ser um artista fora de normas, que não sejam capazes de reconhecer como parte de um padrão, que não sejam capazes de classificar. Entre os diretores, escritores e músicos que mais gosto estão pessoas que são, ligeiramente, controversas, que não seguem o caminho que todo mundo segue. E é bem por aí, dentro da cena de música latina eu sou europeu. Na cena de música urbana tenho alma de compositor, dentro da música mais orgânica me vejo como rapper. É como se eu não estivesse em nenhum lugar, que não tivesse um espaço pra chamar de meu. Às vezes isso faz com que a sua carreira seja um pouco mais difícil, você tem que se explicar para o público, pelo fato de ter muitas aberturas. Mas pra mim é um honra. É o lugar que eu sempre quis ocupar.
A solidão é um tema que interliga grande parte das suas canções. Pessoalmente falando, como lida com esse sentimento específico?
Em geral eu sou muito nostálgico. Vivo com essa ‘saudade’ constante, não é algo que pertence à minha personalidade, uma tristeza radical, desesperada, mas a nível criativo é uma fonte enorme de inspiração. A dependência, o sentimento de estar um pouco à margem de tudo, essas coisas me parecem muito curiosas.
Você gosta muito de compartilhar playlists. Outro dia fez uma a pedido da Billboard com o próprio tema “nostalgia”, em outra ocasião, logo depois do anúncio do disco novo, apresentou pistas do processo criativo em uma nova lista de reprodução. Qual é a parte mais complicada de se fazer uma curadoria musical, de montar um set?
Acho fácil recomendar coisas, selecionar canções… o difícil mesmo é encontrar algo que dialogue com o conceito do que se propõe. Por exemplo, fiz outro dia uma playlist que revelava o percurso criativo de ‘Comerte Entera’ em que as canções não apenas traziam discursos relacionados, como também instrumentações potentes. Portanto, pensar a proposta amplamente é o que mais me deixa ressabiado na hora de montar um set.
E quem é ‘El Madrileño’, personagem que dá título ao novo disco? Como você o descreveria?
Para mim, me referir a ‘El Madrileño’ é me referir a um modo de entender e de renovar as coisas mais tradicionais, e também uma forma de me reconhecer enquanto cidadão fora da Espanha. Eu viajei muito nos últimos anos, me encontrei com várias pessoas durante essa estadia nômade, mundo afora, e isso me serviu entre outras coisas para me lembrar daquilo que gosto da minha cultura, e por que não, aprender também a mergulhar na cultura do outro. ‘El Madrileño’ é aquele que se vê como estrangeiro em Bogotá, alguém que sente falta de seu país no México e por fim retorna. É uma persona nascida na capital espanhola e que honra seus antepassados. É importante lembrar também que esta cidade é feita de pessoas que vieram de vários lugares e em vários tempos diferentes. É uma cidade que experimentou muitas perseguições, mas que ao fim aceitou aqueles que a escolheram como lar. Os madrilenos, na real, são muito legais, tolerantes, determinados…
Você ainda vive na capital?
Sim. No ano passado, com a pandemia, eu voltei e confesso que fiquei bem feliz. Porque é bastante inspirador poder parar e observar como um todo, com certo distanciamento, o projeto desenvolvido nesses últimos anos.
Me lembra que o próprio poeta Federico García Lorca só deu fôlego a sua produção depois de, efetivamente, passar uma temporada em Madrid. Distante de sua amada Andaluzia…
Isso mesmo! Pensando em poesias descritivas, outra coisa é que eu não curtia muito, pra ser sincero, é a arquitetura local. Quando era criança me lembro que a cidade me parecia pouco exótica, pouco sofisticada quando comparada a outras cidades da Europa, com Lisboa, Paris, por exemplo, que são localidades mais próximas. Mas com o tempo voltei a amá-la.
Bom, fiz a pergunta anterior porque você completou 30 anos em 2020. O conceito do disco como um todo acaba fazendo uma homenagem, ainda que indireta, à cidade, às situações do cotidiano que podem formar alguém enquanto pessoa e artista. O que mais gosta daí?
O que mais gosto de Madrid, como cidade, é que é uma espécie de lugar de passagem pra muita gente, suas características próprias é estar aberto aos demais, muita gente de muitos lugares se misturam. Também gosto que é um ponto de intermédio entre o norte e o sul da Espanha, as duas Castillas, algo que para a idiossincrasia espanhola é muito distinto. Essa coisa de ser catalão, basco, andaluz… Madrid tem coisa dos dois lados. E também adoro que Madrid é a cidade mais ambiciosa da Espanha, aqui existe até um ditado que diz “De Madrid al cielo“, que na prática é algo do tipo: ‘Se você quer triunfar, vá até lá”.
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