Entrevista com Marcelo D2: “Sou um cara que gosta do diálogo, mas também do confronto”

Desinibido, Marcelo D2 abre a câmera e se desculpa pelo atraso. À frente de uma parede branca, o artista se senta e passa cerca de uma hora conversando sobre a carreira. Aos 53 anos e vivendo o desafio de enfrentar uma pandemia, cita a palavra “relevância” algumas vezes, referindo-se à missão de se dedicar à música em tempo integral.

Mirando novos horizontes, para além das ditas lives e de uma inevitável migração para a Twitch, o cantor carioca estreou no segundo semestre de 2020 um programa online. Produzido em parceria com o The Cloud Bar, que hospeda os episódios em seu canal no YouTube, o projeto busca desmistificar todos aspectos dos sons e músicas pelo mundo por meio de sua curadoria. No bate-papo, ele também traz novas perspectivas sobre assuntos ligados à arte, levantando semanalmente discussões sobre temas inéditos.

Cada vez mais íntimo da internet, surfando essa onda, D2 também se dedica à finalização de dois discos, um autoral e outro do Planet Hemp. Este último, que deve quebrar um jejum de 20 anos sem material inédito, nasce graças a um cenário de convulsão social. Sobre todos esses projetos, bem como sua relação com as redes sociais e as pautas progressistas que defendeu ao longo dos quase 30 anos de carreira, o artista fala abaixo.

***

Papelpop: Começo falando sobre música. Você pediu ajuda dos fãs e fez um álbum inteiro em lives na Twitch, com todo o processo de criação registrado pelas câmeras, com muita interatividade. Sentiu pressão? Foi bacana?

D2: Cara, acho que todo mundo que entrou nessa quarentena, as pessoas com mais se sensibilidade, começaram a entrar em pânico. Foi exatamente o que aconteceu comigo. Nos dois primeiros meses, fiz até uma live bem legal e deu uma certa maneira de norte, poderia acontecer. Eu tava relutando um pouco quanto a essa coisa de fazer show… A gente vem de duas décadas de DVD ao vivo de banda, era algo que eu não queria fazer show de casa, mas me deram total liberdade pra fazer o que eu queria, falei bastante, além de tocar música. Mostrei livros, DVDs… foi uma parada que eu disse ‘Cara, tenho tanta coisa legal em casa. Poderia dividir isso com as pessoas?’. A Twitch me convidou e entramos em um time de músicos que chegou numa primeira leva, e meio que minha inquietude artística, minha ambição artística não me deixava só fazer a live. Não gostaria de reviver minha carreira, ficar falando das músicas que já fiz. Acho que isso é o começo do fim. Mais do que um disco isso vai virar um processo, uma maneira de se fazer daqui pra frente, não sei se só trabalharei dessa forma, se vai virar uma tendência, mas eu já tô pronto pro segundo. Comecei ontem a bater papo, a falar sobre o volume 2. Assim como os meus dois primeiros discos abriram uma porta na música por meio da mistura de rap, samba, brasilidades sampleadas, a oportunidade de fazer coisa de casa me abriu uma nova porta. De tudo de ruim que a pandemia trouxe, uma das coisas boas foi poder trabalhar de casa, um lugar seguro pra todo mundo. As pessoas se sentem mais confortáveis e isso não foi só uma ideia, virou um processo como um todo que devo explorar bastante. Há ideias pro futuro, coletânea, exposição de arte…

Desde o começo do Planet Hemp você tem focado numa missão do momento… 

Sim. E no momento quero muito explorar esse entretenimento e levar um pouco de arte pras pessoas, aproveitar minha experiência adquirida nesses 50 anos, minha bagagem dos 27 anos de carreira, todos os livros que tenho de vídeos e de cinema, literárias. A gente foi empurrado pra esse lugar pela pandemia, mas é um lugar inevitável. Também acredito que já já estaríamos aqui dando entrevista no Zoom ou Google Hangouts, em qualquer outra plataforma. E o grande lance, a grande lição que eu extraí disso é que mesmo trancado em casa ninguém segura a gente [risos]. A gente pode interagir mais do que interagíamos antes no Instagram. A pauta dá pra ser mais interativa do que só eu botar minha foto na praia e você curtir. Dá pra vir pra cá, no Hangouts ou na Twitch e compartilhar pensamentos. Estamos caminhando pra novos tempos…

Você acabou se transformando em um streamer de arte e chegou a gravar um filme em casa, pra acompanhar “Assim tocam os MEUS TAMBORES”. Qual é a sua relação com o cinema, com essa parte audiovisual?

É muito engraçado porque antes de ser músico, eu andava pela estação Botafogo, um cinema independente no Rio de Janeiro, e às terças-feiras existia uma reunião ali. A galera de cinema se concentrava ali e eu era um moleque chegando do subúrbio em um ambiente super intelectual, achava aquilo o máximo. Sempre curti e acho que enquanto músico temos a oportunidade de expandir isso. A gente vê muita música, tanto quanto se ouve. O número dos clipes no YouTube é tão alto quanto o que se registra no Spotify, as pessoas assistem. Ainda se explora muito a coisa do vídeo, claro, num sentido comercial, mas segue me fascinando. O meu interesse, especificamente, começou no álbum “Nada Pode Me Parar” (2013), dois discos atrás, fiz 16 clipes para 16 músicas com direção da [cineasta] Gandja Monteiro… No trabalho seguinte, “AMAR é Para os FORTES” (2018) escrevi o roteiro antes de lançar o álbum, e acho sinceramente que vai ser inevitável não investir nisso daqui em diante. Com “Assim Tocam os Tambores” (2020), terminamos de produzir e eu já quis fazer um filme. Não tínhamos grana, a princípio, mas fomos atrás. A ideia de fazer um filme em casa foi muito importante porque o disco tem essa coisa de gravar dentro de um isolamento social, no meio de uma pandemia, mas também é o projeto que fiz com o maior número de participações. Foram cento e tantas pessoas comentando no chat da live, pessoas que nunca vi na vida… todos os dias, pessoas comigo no estúdio ali, participando… Então eu achava que havia a necessidade de expandir essas canções pro visual. Me diverti demais, escrevi o roteiro em 3h. Você perguntou sobre pressão, claro que houve. Imagina criar na frente de todos? Houve uma hora em que eu disse ‘Cara, a ideia é ótima, mas se o disco for uma merda… vai acabar com tudo’ [risos]. Houve momentos em que não aguentava mais escrever, tivemos que compor dentro de um cronograma que pedia novidades pro dia seguinte. Mas em dado momento senti uma certa relevância e assim pudemos caminhar.

É legal saber sobre esses bastidores porque, geralmente, ainda que as pessoas acompanhem e assistam todo o processo, nem sempre existe uma compreensão da dimensão do projeto, do quanto isso toma tempo, de que quando as câmeras desligam o trabalho segue.

É, cara… o que a gente tem que entender é que ali era um show, executado em frente as câmeras. Pra preparar tudo isso eu tive que me organizar antes e depois, me reunir com a Luísa, minha produtora e minha companheira, pra ver o que aproveitávamos do dia, irmos pra cama dormir sem jogar tudo fora. Anotávamos, guardávamos, pensávamos a respeito de tudo. Mas tivemos um momento em que decidimos parar de falar sobre trabalho no quarto, porque ficou brabo. A gente acordava já falando disso. Mil perguntas, ‘Ligou pra fulano?’. ‘Escreveu não sei o quê lá?’.

Me interesso muito pelo seu processo de investigação sonora. Nesse último trabalho, por exemplo, o samba e as religiões de matriz africana estão muito presentes, você também tem falado sobre um desejo de expandir isso no próximo álbum, participou de um livro que investiga a obra do Jorge Ben. Sendo dono de uma obra super completa, diversa… ainda tem ambições artísticas?

Essa definição sua é a melhor pro momento, ‘ambição artística’. É tudo o que me move, sabe? Eu costumo falar que a procura vale mais do que a batida perfeita, a procura é que é interessante. No processo desse disco, me deixei levar pelo que o chat propunha, pelo que os beatmakers propuseram… Nesse disco novo, no segundo volume, que preparamos agora, eu vou propor tudo e levar as pessoas. Eu filmo aqui em casa com uma webcam, ainda temos um longo caminho a se descobrir o que pode ou não ser feito no processo. Agora, esse disco, “Assim Tocam os Tambores”, foi uma ideia nova, e a ideia era muito importante. Não que a sonoridade não fosse, mas agora no volume 2 pretendo trabalhar um pouco da sonoridade. Me emociono muito com isso, inclusive, acabei de ouvir o disco do Mateus Aleluia [ex-integrante d’Os Tincoãs], batizado como “Aclamação a Olorum”. Imagine um cara de 70 e poucos anos lançando um álbum super importante pra música brasileira… É isso que eu quero, ser relevante. Acho que enquanto você continuar sendo relevante, o trabalho vale a pena. Claro que tem que correr atrás, trabalhar, refazer versões, regravar projetos, fazer ao vivo, acústico, mas não apenas.

Durante o processo surgiu uma figura bastante específica, o Galinha. Como funciona a sua relação com a criação de personagens nas letras de música?

Cara… [risos] Estar em um chat é algo muito engraçado porque às vezes estamos todos chorando, falando sobre o disco do Mateus Aleluia e vem um papo sobre sorvete de flocos. Eu falo ‘Porra, galera?’. A maneira com que o chat influencia o processo é muito importante, tá ligado? Porque queira ou não a conversa, a troca rola, tô sempre de olho, alguém diz alguma coisa e mesmo que eu tenha certeza do que quero fazer, alguém pode dar uma opinião e a sua cabeça muda. Você pode tanto ficar mais forte na sua própria decisão ou se sentir balançado. Aprendi desde o começo na Twitch que essas comunidades tem esse mundo próprio. O [Alexandre] Gaulês, maior streamer do Brasil, que tá toda hora online, faz 13h de transmissão… é inacreditável! Bem, ele montou essa tribo. Quando entrei, os caras falavam sobre isso, sobre a importância de se nutrir essa conexão. Mas a parada, diferente do Facebook, do Instagram, de outras redes, me remeteu de cara ao MySpace no sentido de que todos querem se ajudar – o que enxergo de uma maneira muito positiva. Queria que as pessoas se sentissem fazer parte, que sentissem o disco como sendo algo nosso. E é mesmo. As criações de personagens, comandos, gírias, foi tudo muito maneiro, muito louco. Foi o trabalho mais maluco que fiz na minha vida [Risos].

Em uma das letras você faz uma menção a “veneno da lata” e eu me lembrei da Fernanda Abreu, com quem eu falei recentemente sobre os 30 anos do álbum de estreia dela. Dado o episódio que originou esse termo, isso acabou virando uma gíria carioca… Hoje, musicalmente, o que você diria que é “da lata”?

Primeiro, vou explicar de onde vem o termo [risos]. Em meados dos anos 1980, o navio Solano Star, vindo da Austrália, trazia maconha traficada em latas. A polícia foi dar uma batida e os caras jogaram isso no litoral do Rio de Janeiro. Foi parar em tudo que é canto, em Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. A história acabou se tornando uma lenda urbana e quem experimentou a maconha “da lata” disse que ela era ótima, o que criou uma nova gíria. O “veneno da lata” é, portanto, uma “maconha boa pra caramba”. No disco eu digo que “Sempre soube que o antídoto era o veneno da lata“, me referindo ao uso medicinal da cannabis, que todo mundo tá usando com esse fim. Nesse momento, a gente tem tanta coisa interessante acontecendo e que pode ser classificada assim. Essa descoberta “nova” do universo online, a gente vai dar risada disso a daqui 10 anos. Se a gente olha pro passado e vê qual era a relação que tínhamos com o celular, entende? Eu mesmo abandonei o uso do computador pessoal, laptop, faço tudo no smartphone. A ideia de como estamos envoltos nisso, a minha ideia de como podemos usar isso pra fazer arte, pra mim é realmente o novo milênio. Chico [Science] falava que ‘Computadores fazem arte, artistas fazem dinheiro’. É por aí.

Você também tem se dedicado um novo programa sobre música, o Na Cabina. Quão desafiadora tem sido a experiência?

Essa coisa do isolamento nos traz pra um lugar de criatividade incrível, a gente tem que buscar novos meios de expressão, de chegar ao público, maneiras de não ficar parado. Desde a época dos vinis e toca-fitas, tá ligado? Adoro fazer playlists. Apesar de o nome ser outro àquela altura, a função sempre foi a mesma [risos]. Gosto muito quando me convidam pra esse papel de curadoria, tenho experiência, bagagem suficiente pra dividir isso. É basicamente o que faço com a minha música, pegar e falar sobre Paulinho da Viola, pegar um beat e misturar… A minha parceria com o The Cloud Bar vem já há algum tempo, temos desenvolvidos outros projetos, e me ensina sempre alguma coisa. O que eu aprendi nesse meio tempo é que podemos viver com menos e que dá, sim, pra trabalhar mais com o que se gosta pra fazer coisas interessantes. Coisas relevantes. Vou usar novamente essa palavra, mas porque faz sentido. Quero que meus bisnetos olhem o que fiz, um programa como o cabina e dizer “Meu bisavô era brabo”. O contexto todo que conduzimos a parceria, realizamos o trabalho, foi muito importante. O jeito com que conduziram e produziram a fim de me deixar a vontade, me guiando pelos caminhos que eles queriam também. Decorar texto seria uma experiência bem difícil, gosto muito de falar. Mas foi legal, porque estamos procurando coisas diferentes pra fazer, mais uma vez trabalhamos em casa com a mesma galera que realizou o disco. Eu acredito que fomos empurrados pra um lugar distinto por causa da Covid-19, mas temos procurado saber como lidar, trocado mais, podendo dividir meu conhecimento com a galera.

Você fala das playlists… Conhecendo a fundo a MPB, qual a parte mais interessante de se fazer uma curadoria musical?

Acho que a maior dificuldade é poder representar uma ideia dentro de um programa. Qualquer tipo de manifestação, quando se quer fazer, vai se deparar com um limite, seja ele de tempo, de escolha. Queríamos trabalhar em um consenso de usar apenas canções disponíveis em canais oficiais e tal… Foi desafiador, maneiro pra caramba, mas também muito legal no sentido de que faço playlists mensais, ainda que às vezes repita uma coisinha aqui e outra ali. [risos] Tipo, das 30 músicas totais, 25 são iguais.

Indiretamente você falou sobre isso da pirataria e me lembrou que volta e meia esse é um debate que ressurge no Twitter. O acesso democrático às mídias… Como você observa essas questões?

O Gilberto Gil tinha um papo muito maneiro sobre isso. Ele dizia que a frase “todos os direitos reservados” era algo impossível porque, de uma certa maneira, quando você cria uma música, existem obviamente influências de terceiros. Quando João Gilberto toca aquele violão, ou o Jorge Ben, que é um cara super inovador… há algo extraído de alguém, de outros lugares. Existe uma balança muito tênue aí, que gera dúvidas sobre onde a gente tá usando uma música comercialmente, onde não. Eu me acostumei, nos anos 1990, a fazer clipes pras TVs exibirem de graça. A gente não cobrava pra MTV exibir nossos projetos, nem pras rádios executarem os discos. Muito pelo contrário [risos], as rádios cobravam jabá. ‘Só vou tocar se você pagar’, tá ligado? É difícil entrar num consenso e acho que quem sofre mais são as grandes gravadoras, que ficam de olho. Existe um debate, ainda inicial, sobre o streaming e os artistas tem se libertado, saindo inclusive de contratos abusivos, em um novo capítulo que vem após uma era em que o mercado vendia milhões de álbuns físicos. As pessoas não precisam mais disso, são donas da própria obra e podem disponibilizar isso em um canal no YouTube, em um perfil no Instagram, em lives. Vi muitos artistas dos quais sou fã morrerem na dureza total. Bezerra da Silva fazia turnê velhinho, com 70 anos, porque precisava comer. A gente tem um caminho diferente hoje, existem mais oportunidades de se viver de música.

Durante a pandemia a indústria precisou se reinventar e de forma muito rápida, abrupta até. Muitos artistas têm feito shows em drive-in, buscado formas distanciadas de se manter trabalhando. Você foi um deles, mesmo tendo se entendido bem com a tecnologia. Por quê?

Eu queria ver qual era [risos]. Fiz 3 ou 4 shows que funcionaram. Foi muito legal, um deles rolou no Allianz Parque [em São Paulo], em um lugar bem utópico com todos trancados nos carros e eu sozinho no palco, sem banda… Era meio triste e ao mesmo tempo algo do tipo ‘É isto o que temos’. Ainda existe a procura por um lugar novo, mas acho que no começo, enquanto era novidade, era mais legal. Agora já não sei. Ainda estamos no meio da pandemia, o caos não acabou, mas quando tenho que sair pra trabalhar vejo que não estou fechado a nada. Obviamente, não quero botar as pessoas em risco, mas quero ver o que há de oportunidades. Vai ser uma gangorra até que a gente encontre a vacina, tô tentando não me envolver tanto com a expectativa. Tive todas as fases possíveis, de crise de pânico a acordar achando que ia mudar o mundo, pensar que tínhamos nas mãos uma grande oportunidade de transformação. Até mesmo não querer levantar da cama e passar o dia vendo séries… A gente tem que se deixar ser triste, ou mesmo ser alegre. Nem tudo é uma novela, com tudo a mil maravilhas.

Você também tá preparando um disco do Planet Hemp agora e acho muito curioso o fato de o livro “Planet Hemp: Mantenha o Respeito” ter apresentado vocês como a banda de rock mais polêmica do Brasil. O que significa receber esse título?

[risos] Sei lá, cara. Na real era isso que a gente queria. Quando resolvemos falar de maconha tínhamos a convicção de que ela não seria legalizada. A ideia era bagunçar a cabeça dos caretas, dos conservadores. Se a gente ficasse falando ‘Ah, nos dê espaço, nos dê voz”… já tinha muita gente fazendo isso e fazendo bem feito, como foi o caso dos Racionais MCs. Então dissemos ‘Olha, nós fumamos maconha’. Todo mundo deu uma devolutiva que serviu como a confirmação de que estavam nos ouvindo. Quando a gente foi preso [em 1997, sob acusação de apologia ao uso de maconha], eu lembro que dos 6 integrantes, metade era parte da formação original. Eu falava pro Black Alien ‘Na mora, fizemos a banda sabendo onde iríamos terminar. Só não sabíamos que ia demorar tanto, algo como 3 anos’. A intenção era chocar mesmo, tanto que em 1995 a gente falava também sobre outros temas como as milícias, uma coisa que agora tá na moda, virou até presidente. Mandávamos a polícia ir se fuder, dizíamos o quanto tudo tava errado. A parte massa é que esses episódios serviram pra levantar uma série de discussões. Meus amigos me disseram depois, por exemplo, ‘Cara, nunca falei sobre maconha em casa, mas quando vimos vocês no Jornal Nacional meu pai deu uma opinião e começamos a conversar.” É óbvio que existia àquela altura toda uma idiotice de ser jovem, com lemas como ‘Dou minha vida pela legalização da maconha’. Ainda acredito nos meus valores, mas é óbvio que isso mudou. Não existe isso de querer ser mártir [risos]. Vamos resolver essa porra com todo mundo vivo. Sou um cara que gosta do diálogo, mas também do confronto. Queria ser polêmico mesmo.

O que você acredita que mudou no pensamento da sociedade brasileira ao longo dessas duas décadas e meia?

A gente pode ver tudo isso como um copo meio cheio, meio vazio. Lancei meu primeiro disco em 1995, quando era impensável a existência de tanta representatividade queer, negra e feminista como tivemos na última eleição para prefeitos e vereadores. Copo meio cheio, certo? Copo meio vazio: candidatos eleitos apenas para vereador, em escalões de menos destaque. Avançamos, claro, mas ainda há um longo percurso pela frente. Posso dizer isso em relação à política de drogas também, uma pauta que a extrema-direita adora usar. Te chamam de “maconheiro”, “drogado”, Zé Droguinha”, “viadinho”, “marica”… São termos que estávamos acostumados a não ouvir, quase banimos tudo isso. Eu achei que não ouviríamos mais, particularmente. Mas ao mesmo tempo, temos ir até a raiz e pensar que o Brasil foi o último país a abolir a escravidão, também o último a adotar o ensino público. É um país que se apega a ideais conservadores que sabem como usar vocativos inimigos ao seu favor. É nojento. Entretanto, do ‘Legalize Já’, que fiz em 1993, dá pra dizer, sim, que tivemos grandes avanço. Hoje temos muita gente usando CBD, a maconha medicinal… e vejo que a cannabis é uma planta muito forte, que vai causar muito impacto quando for regulamentada pra uso, como causou nos Estados Unidos, na indústria farmacêutica, do álcool, do entretenimento.

Esse próximo LP vai ser o primeiro trabalho de estúdio da banda em duas décadas. A atual conjuntura do Brasil tem surtido impacto nas novas canções? 

Total. A gente só resolveu fazer um disco por conta disso. Estávamos com um disco quase pronto, depois interrompido pela pandemia. Ontem olhei o material, durante a live do meu disco novo… e foi foda relembrar, ver que tá bom pra caralho. É muito difícil olhar trabalhos como “Usuário” e “Os Cães Ladram”, de 1995 e 1997 respectivamente, e ver que as discussões são muito atuais. Penso que certas coisas que permitem ter diálogo. Racismo, homofobia, xenofobia… E isso conversa muito com as redes sociais, o que me faz pensar que minha ida pra Twitch aconteceu pra me ensinar muito sobre o Marcelo D2 que usava o Twitter em 2018 e 2019. A gente perdeu essa guerra do ódio e da imbecilidade, não sabemos brigar e temos que trazer essa conversa pra outro lugar. Essa gente que tá do outro lado se baseia tanto nas religiões europeias, cristãs, e só fala de ódio, de extermínio. Precisamos dar uma outra alternativa, quem sabe por meio do voto como começamos a ver neste ano. Ainda é algo meio obscuro, vivemos em uma cidade sitiada, mas…

O jeito é fazer planos pro futuro. Olhando para os próximos 10 ou 15 anos, o que você espera?

Meus filhos dizem que tô ficando velho, mas na verdade sou jovem há mais tempo. [risos] Pra daqui a 15 anos espero estar vivo, o que seria um grande acontecimento estando nesse país. Mas mais que isso, só posso desejar seguir fazendo coisas que honrem a minha carreira, música, produções audiovisuais, filmes, séries… ver meus filhos já crescidos. Quem sabe também esteja com o pé na areia, em uma casinha diante do mar?

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