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Em “AmarElo: é tudo pra ontem”, Emicida resgata história que foi roubada do Brasil

“Eu não sinto que eu vim, eu sinto que eu voltei e que, de alguma forma, meus sonhos e minhas lutas começaram muito antes da minha chegada”, diz Emicida na abertura do documentário “AmarElo: é tudo pra ontem“, que estreia nesta terça-feira (8) na Netflix. Produzido pela Lab Fantasma no formato concert film, o projeto narra a história dos últimos cem anos a partir do palco do Theatro Municipal de São Paulo, uma das casas de cultura mais prestigiadas do país.

Entre cenas heroicas do Movimento Negro Unificado (MMU) e gravuras que resgatam uma mancha na história do Brasil, último país do mundo a abandonar políticas escravocratas, o artista dá uma verdadeira aula pras novas gerações. Mas, apesar de o livro de história estar aberto sobre a mesa, a metodologia é um tanto prática e contemporânea, afinal, as lições saltam em direção ao presente, aos desdobramentos.

Entre eles está o feitio do disco “AmarElo“, lançado em 2019 e vencedor do Latin Grammy de Melhor Álbum de Música Rock/Alternativa em Língua Portuguesa.

É emocionante e didática a forma como o artista consegue amarrar tudo isso em um manifesto de respeito à própria trajetória, que como ele mesmo diz, começou bem antes do próprio nascimento. Um exímio contador de histórias, é Emicida quem narra o projeto – o que lhe dá a soberania absoluta para comentá-lo aqui também. A seguir, você confere uma rápida entrevista com o cantor.

***

Papelpop: O documentário resgata, pra além dos bastidores da criação do disco, a história da cultura negra brasileira nos últimos 100 anos. O que mais te chamou a atenção, mais te surpreendeu durante a pesquisa?

Emicida: Eu fiquei muito impactado com a figura do Mário de Andrade. Embora conhecesse de forma superficial, fazia muito tempo que tinha lido ‘Macunaíma’… Reli depois de finalizarmos a pesquisa e essa figura me tocou profundamente. Isso me fez querer mergulhar no modernismo, na figura dele. Outro elemento que me toca bastante é a formação do Grêmio Recreativo Escola de Samba Quilombo. Temos ali Candeia, o braço musical, e Lélia Gonzalez. É incrível observar o samba como nascedouro desse pensamento crítico da realidade brasileira, um lugar que o gênero é raramente é colocado, infelizmente.

Você cita muitas figuras importantes, entre elas Mário de Andrade, mas é justamente o samba quem assume essa função de protagonista. O que ele significa pra você, enquanto artista?

Embora muitas pessoas tenham se debruçado sobre o que o samba significa, sobretudo, artisticamente, quando falamos dele enquanto movimento musical, ainda estamos devendo uma reverência nos pontos de vista filosófico e de estilo de vida. O comparativo que eu faço ali com o Candeia e a Lélia [Gonzalez] é importante de se evidenciar, porque esse gênero é mesmo o centro gravitacional do filme. Como um movimento que não só produziu uma arte que cantava o Brasil, mas que também provocou ao ponto de ser pensadora, produtora e criadora de um momento que gostaria de viver. Acredito que pelo fato de ter crescido escutando tanto samba, por ser tão próximo das pessoas que são sambistas e por eu ser um fã incondicional, um pesquisador, um conhecedor de alguma coisa desses sons, digo pra você com 100% de certeza que este é o elemento mais transformador da cultura brasileira. No último século, mais do que qualquer outro momento porque é quando ele surge e se populariza. Mas tudo o que a gente constrói de positivo, de alguma maneira, tá associado a ele.

Em um dos trechos você pergunta a um dos cantores que te acompanharam se ele já tinha estado ali e a resposta foi negativa. O que significou levar pessoas que nunca tinham pisado sequer no saguão do Municipal pro palco, pra um espaço de protagonismo?

Eu penso que a gente, quando entra no Theatro Municipal, entra em uma das edificações mais bonitas de São Paulo. A intenção da construção daquele prédio é mostrar, entre outras coisas, que o Brasil poderia produzir arte e cultura, e poderia ter uma criatividade capaz de ser reverenciada como algo relevante a nível mundial. A nossa cultura continua sendo o nosso melhor cartão postal, afinal. Levar os meus irmãos e irmãs, que nunca tinham estado ali, e ainda mais em uma forma tão doida, que é colocá-los em cima do palco, tá ligado? É uma forma de dizer que esse teatro é de todos, esse teatro que durante muito tempo também foi entendido como um templo de alta cultura. O conceito de alta cultura é uma coisa da qual discordo radicalmente, existe apenas cultura, como o modo de vida de todas as pessoas. Quando entramos num lugar desses e ocupamos com esse movimento que até pouco tempo atrás era estigmatizado, estereotipado de certa maneira, que é a música rap, isso é a nossa forma de dizer que precisamos preencher esse espaço proporcionalmente à grandiosidade da edificação, é a ocupação feita por movimentos grandiosos e que retratam a efervescência da criatividade brasileira. Estamos, sim, promovendo uma quebra de paradigmas ali. Infelizmente, embora o Municipal fique no Centro de São Paulo e em um local de fácil acesso, entre aspas, ainda assim as pessoas não se sentem convidadas a acessá-lo. Durante muito tempo ele se transformou em um templo que dava uma outra noção de cultura. É parte da nossa geração, da nossa responsabilidade, desmontar esse conceito e fazer com que se entenda que o teatro pertence a todos. Quem dá vida ao teatro são as pessoas.

Além de Ruth de Souza, que nos deixou antes de dar a honra de estrelar um dueto com Fernanda Montenegro, você também faz uma homenagem muito bonita ao Wilson das Neves, por quem você tem uma verdadeira devoção. Qual a importância de se celebrar pessoas notáveis ainda em vida?

Esse é um ponto muito importante pra mim. Se a gente observar o crescimento da nossa música a partir dos anos 1980, há mesmo uma popularização. Novos movimentos surgem e tudo isso é maravilhoso, mas a gente também tem que tomar muito cuidado com um caminho no qual a gente entra, guiado pela indústria, que simplesmente tende a nos condicionar a reproduzir o que os norte-americanos fazem. Enquanto brasileiros, temos uma riqueza criativa suficiente pra produzir arte, ainda que beba naquela fonte. Ela pode ser convertida em uma força muito mais intensa, muito mais bonita, vamos dizer. Eu amo o jazz, mas acho fascinante a criação do samba jazz, variação que se deu quando ele veio pra cá. Durante a evolução da nossa indústria ao longo dos últimos 40 anos, alguns elementos foram colocados no esquecimento. A gente vive em um país que não tem o hábito de contar sua própria história, sobretudo a história não oficial, não branca do Brasil. A ausência dessa tradição reverbera em todas as camadas da sociedade e a indústria não agradece quem deveria agradecer. A arte poderia fazer isso mais vezes também. É bonito que a gente consiga exercitar a gratidão e que a gente faça isso de maneira pública, o que acaba sendo didático. É muito bacana que alguém numa posição de reverência, que é como nos encontramos, possa dizer ‘Se não fossem essas pessoas, eu não estaria aqui’. Essas pessoas, que muitas vezes são anônimas, são do ponto de vista da indústria donas de uma relevância menor, mas também foram elas as responsáveis por pavimentar o caminho, por possibilitar a existência de um Emicida. Por isso eu gosto tanto de colocá-las nesse espaço, mas de fazer um movimento semelhante em relação aos artistas mais jovens também porque eu troco e aprendo muito com eles. No ambiente da arte não existe uma hierarquia, isso é mais uma característica da indústria. Sei lá, temos a honra, por exemplo, de viver no mesmo tempo em que uma Fernanda Montenegro. Isso não é pouca coisa.

O filme se divide em três capítulos, “Plantar”, “Regar” e “Colher”, e em uma das cenas você convida a se levantar na plateia membros do Movimento Negro Unificado (MMU), que estavam ali no mesmo Municipal em 1978, em plena ditadura militar, protestando contra o racismo. Não deixo de pensar na quantidade de vezes em que a palavra sonho aparece na sua narração. Observando essa trajetória, as conquistas que o movimento tem alcançado ao longo das últimas quatro décadas, o que você sonha para os próximos 40 anos?

Durante as reuniões de produção do filme a gente falou uma frase muito foda: “Espero que não tenhamos que esperar mais 40 anos pra ter uma comemoração dessas” [risos]. Eu acredito que o que a gente tá fazendo, de verdade, é colocar um tijolinho. Ele é muito bonito, muito sutil. Parece só um filme, mas… não foram os filmes e as músicas que nos deram liberdade pra sermos quem somos, pra nos reconhecermos? Esse tijolinho é levemente diferenciado, meio espelhado, e as pessoas conseguem se ver nele. Essa é a coisa mais bonita que podemos fazer nesse momento porque vaidade e ansiedade, sobretudo por causa das redes sociais, fazem com que a gente acredite que o mundo só se transforma a partir de grandes movimentos. Isso não é uma verdade completa, a verdade é que os grandes movimentos são produzidos por pequenos movimentos, coisas que conseguimos fazer na nossa rotina, no nosso dia a dia. A insatisfação de todas aquelas pessoas em 1978 levou a um encontro na escadaria do Municipal, simplesmente desconsiderando todo o contexto de autoritarismo no qual estávamos vivendo. Eles se levantaram pra dizer ‘Se queremos, de fato, ser um país, precisamos colocar esse assunto no centro da discussão. O que eu faço é manter a chama da provocação acesa, pra mim é importante dizer obrigado a todas as pessoas e é importante que eles saibam que é desse tipo de movimentação que nasce Emicida. Se hoje inspiramos tantas pessoas, pra mim é fundamental que os demais saibam que o MMU, há 40 anos, estava lá lutando pra que eu pudesse sonhar. Mais que isso, saber também que a história de todas essas pessoas incríveis, que se conectam no documentário, foi roubada. Não tratamos da história negra, é a história. Se tivéssemos sido conectados a isso durante a nossa formação enquanto estudantes, cidadãos e seres humanos, nossa perspectiva a respeito do que esse país significa seria completamente diferente.

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“AmarElo – É tudo pra ontem” já está disponível na Netflix.

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