Chico Felitti dá dicas preciosas de leitura para as férias

Chico Felitti é um contador de histórias. Para além do fato de ser hoje um dos nomes mais expressivos do jornalismo literário brasileiro, o autor dos livros “Ricardo e Vânia” e “A Casa” também empresta a voz para o podcast “Além do Meme”. A produção é daqui de casa, feita pelo podcast Um Milkshake Chamado Wanda e pelo Papelpop, em exclusividade no Spotify. O programa traz a cada episódio o perfil de pessoas que tiveram sua vida completamente transformada após a própria imagem viralizar na internet.

Por essas você já sabe: as apresentações não são mais necessárias. No entanto, o que é sempre bacana de se ouvir de quem escreve, e narra, é o que aparece em sua lista de leitura. Você faz ideia do que passou pelas mãos do autor, seja no Kindle ou em formato físico? Nesta colaboração especial, nós pedimos para Felitti abrir as portas de sua biblioteca e elencar leituras excelentes pra você. É pra ficar em casa e curtir o fim de ano acompanhado por autores e personagens geniais. Abaixo, nas palavras dele.

“Torto Arado”, de Itamar Vieira Junior

É provável que você já tenha ouvido falar desse romance. Muito, Foi um dos livros mais comentados de 2020, e fechou o ano ganhando o prêmio Jabuti de ficção. Mas ainda não falam o suficiente de “Torto Arado”: a história de duas irmãs em um quilombo no interior da Bahia, que também é a história dos seus antepassados, e dos seus sucessores.

A escrita é poética, os personagens são complexos e a história tem algo de hipnotizante, e cria o tipo de livro que continua perseguindo o leitor, mesmo quando suas páginas estão fechadas. É como se Itamar tivesse pego uma peixeira enferrujada e cortado uma fenda que mostra o coração do Brasil: violento, poético, mágico e absolutamente comovente. O livro mais lindo do ano.

“Três Mulheres”, de Lisa Taddeo

O que acontece quando uma repórter decide assumir um lado? Acontece um livro maravilhoso: “Três Mulheres” é a história de vida de três mulheres com quem Lisa Taddeo conviveu por quase dez anos.

Uma é rica e se mete em apuros por causa de um fetiche que cultiva com o marido. Outra é uma dona de casa que se reencontra com o namoradinho de infância, e vê a estrutura sólida da sua vida virar pântano.

A terceira, e mais impactante das histórias, é de uma aluna de ensino médio do cafundó americano que é seduzida pelo professor queridinho da cidade, com quem acaba tendo um caso. Um caso em que a Justiça não acredita, a cidade não acredita, mas que Taddeo comprova, ao contar a história inteira na perspectiva da vítima –uma mulher, gorducha, pobre e caipira, em quem o mundo escolheu não acreditar.

Um dos melhores livros não só deste ano ingrato, mas de muitos anos por vir.

“Próteses de Proteção”, de Maria Lucas

Próteses de Proteção” é um ensaio de 20 páginas, mas vale por um livro de 200 páginas. Neste texto, a artista carioca Maria Lucas escreve sobre como a pandemia já existia para travestis e pessoas transexuais, e como esses grupos sempre precisaram de próteses para tentar sobreviver: além de máscaras, usam cílios, navalhas, perucas.

Maria Lucas apresenta um ponto-de-vista perturbador, em que ela inclusive é quase atropelada por um desconhecido na rua, embrulhado em um texto lindo. Fica uma amostra: “Para além do distanciamento social atual, meu corpo já é distanciado, de distintas formas, do convívio em sociedade, assim como a grande parcela de pessoas trans no Brasil.”

O ensaio tem 20 e poucas páginas, e está de graça neste link aqui.

“As Coisas”, de Tobias Carvalho

“Olha as coisas que a gente faz para gozar, só a quantidade de tempo que o pessoal passa nos aplicativos só para gozar rápido. E não tem ninguém falando disso. Só tão mostrando as historinhas em que o pessoal casa e vive feliz para sempre.” Um conto que tem uma frase dessas não é um conto comum. E todos os contos desse livro do Tobias Carvalho são fora do comum.

São contos protagonizados por homens gays, na maior parte jovens (como o autor, que tinha 24 anos quando o livro saiu), cheios de tesão, de ansiedade e de alguma desesperança. Divertido e doído, porque é tudo verdade.

“Memórias”, Xuxa Meneghel

O livro da Xuxa não é uma biografia. Ou seja, não conta a história completa da vida da maior apresentadora brasileira. Nada de polêmicas ou de Marlene Mattos. Xuxa escolheu trechos da sua vida de que queria falar. Como por exemplo quando era modelo e foi convidada para fazer um trabalho numa cidade americana. Ao chegar lá, tinha um segurança brasileiro na porta do seu quarto de hotel (!), não tinha sessão de foto nenhuma (!!), e ela descobriu que o presidente militar do Brasil (!!!) estava na cidade, e ia passar no seu quarto em algumas horas, e ela só foi salva pela intervenção da secretária de Pelé (!!!!).

Uma leitura curta, fluida e inacreditável.

“Todas as Cartas”, de Clarice Lispector

Não é um livro para ler numa sentada, nem para levar para a praia. Imagino que as quase mil páginas das cartas que Clarice Lispector escreveu da década de 1940 até perto da sua morte, no meio da década de 1970, possam ficar na cabeceira da cama. Para, todo dia de manhã, abrir e ler como se fosse um biscoito da sorte chinês bem escrito –é incrível como tudo o que Clarice escrevia era estranho e lindo, e estranhamente lindo.

Duvida? Aí vão alguns exemplos de frases:

Tenho outros problemas também, Fernando, e por carta não saberia falar. Ia me fazer muito bem abrir afinal o meu coração e mostrar afinal a alguém que fechasse os olhos e não ouvisse, que horror pode se guardar numa pessoa.”

“Sempre tive o dom de irritar e ‘encher’ todo mundo, de um modo ou de outro, mesmo à distância”

“Jantares que me chateiam, não tenho paciência nem interesse, mas fico chateada à ideia de os outros repararem. Enfim, é assim mesmo. Cada vez mais antissocial.”

“Falta bagunça aqui, e não compreendo cidade sem esta certa confusão. Mas, enfim, a cidade não é minha.

“Manual de Sobrevivência dos Tímidos”, do Bruno Maron

“Penso, logo hesito. Penso muito, logo desisto.” Esse é o mote do Manual, um misto de textos com quadrinhos, que Maron fez para lidar com a própria timidez. O que é timidez? “A própria timidez nunca ficou relaxada o suficiente para confessar”, ele escreve.

Cada capítulo é um aspecto da timidez. Um deles, por coincidência, chama Isolamento Social –o livro foi publicado sete anos antes da pandemia. A leitura é divertida e traz dicas de como correr de semiconhecidos sem ser confundido com um psicopata e truques para festas, no capítulo Elo com Animais:“O importante é estabelecer um vínculo emocional com o bicho. Acredite que sempre rolou uma empatia legal entre vocês, chame-o pelo nome, fale coisas estúpidas, faça carinho nele.”

“Tieta”, de Jorge Amado

Sabe quando bate aquela culpa de não ler os clássicos? Mate ela com uma tijolada de “Tieta“. O romance de Jorge Amado tem 656 páginas, mas também tem uma estrutura de folhetim que transforma ele numa série de Netflix que quase nunca tem fim. Capítulos curtos e cheios de ação, protagonizado pelos melhores personagens que o Brasil já escreveu.

Tieta, a protagonista, é expulsa de Santana do Agreste quando é adolescente, po. Volta uma cafetina rica com roupas bafo e com uma sanha de vingança, que alimenta financiando os piores pecados de cada pessoa da cidade. Sua inimiga é também sua irmã, Perpétua, a falsa carola que só veste e preto e vive de fiscalizar o rabo alheio –um personagem comum em 2020, quando parece que o Brasil foi invadido por um exército de Perpétuas.

A vantagem de ter sido um dos livros mais vendidos da história do Brasil é que temTieta em todo e qualquer sebo. Outro dia, achei um por R$ 3. Tieta foi tudo na minha quarentena. Li o livro, vi a novela e assistiria ao musical, caso ele existisse.

“Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de Jesus

Quando Carolina Maria de Jesus conheceu Clarice Lispector, disse: “Nossa, que orgulho conhecer uma escritora como você.” Clarice a olhou fundo nos olhos e respondeu: “A verdadeira escritora é você, Carolina, porque você escreve a realidade.”

Carolina Maria de Jesus havia estreado fazia poucos meses no mercado literário quando as duas se conheceram. Seu primeiro livro, “Quarto de Despejo“, foi publicado depois que um repórter da Folha de S.Paulo fez um perfil da escritora, que anotava seus pensamentos em papéis dispersos no barraco em que morava, na favela do Canindé. As anotações, em forma de diário, viraram um livro, com trechos como:

“15 de julho de 1955

Aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu pretendia comprar um par de sapatos para ela. Mas o custo dos gêneros alimentícios nos impede a realização dos nossos desejos. Atualmente somos escravos do custo de vida. Eu achei um par de sapatos no lixo, lavei e remendei para ela calçar.”

E o livro foi um sucesso. Por muito tempo, a mídia alimentou uma mística de que Carolina havia sido “descoberta” pela imprensa, quando na realidade ela sempre reconheceu o valor dos seus escritos e ia a redações de jornais tentar publicar seus contos. Mas, em um caso raro, uma escritora preta e pobre foi reconhecida em vida e publicada em 46 países. Depois, foi jogada para escanteio, provavelmente teve dinheiro de vendas desviado e morreu

Vamos aproveitar para ler a obra-prima dela nesse fim de ano, que em 2021 uma editora vai lançar escritos inéditos desta autora, que Clarice Lispector reconhecia como maior do que ela.

“Dementia 21”, de Shintaro Kago

O Dantas que perdoe a minha ignorância, mas “Dementia 21” foi o primeiro mangá que eu li na-vi-da. E fez eu me arrepender de não ter começado antes: os 21 capítulos de pura demência são a coisa mais divertida que li em 2020.

Sem dar spoilers, dá para falar que é a história de uma jovem japonesa que trabalha em casas de repouso, e cada vez se pega em situações mais bizarras envolvendo idosos. Tente imaginar as coisas mais malucas do mundo. Depois, multiplique por 20. Ainda assim, você não vai chegar ao surrealismo desse mangá.

“Fun Home”, de Alison Bechdel

As mesmas pessoas que inventaram a expressão graphic novel, para quadrinhos que tinham histórias tão boas que poderiam ser um romance, vão ter que se esforçar para criar um termo para um livro de memórias familiares em quadrinho. Porque o que Alison Bechdel faz com seus desenhos é contar uma das histórias mais singelas e surpreendentes de memória LGBTQIA+ que já foi publicada.

Bechdel narra sua infância em uma família que era conhecida pela vizinhança como os Adams, porque cuidavam de uma funerária (vem daí a “fun home”, que pode ser tanto uma casa divertida quanto uma casa funerária), a descoberta de que era lésbica na adolescência e uma outra descoberta, bem mais doída e surpreendente, envolvendo o pai. Para chorar de rir e chorar de chorar mesmo.

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