Uma máquina do tempo te leva direto para a cidade de São Paulo, em 1985. A caminho da Galeria do Rock você sente que está sendo seguido. Na porta, tenta se esquivar e desvia o caminho à esquerda, rumo ao Viaduto do Chá.
Encostado no parapeito, sente a força do vento e, com ela, uma vontade incontrolável de pular, tal qual Gloria F. Com certeza, é melhor mudar de ideia e seguir rumo ao Parque do Ibirapuera. Ao redor, o mundo se desfaz em excessos, crueldades e caretice.
Este é basicamente o enredo do tour musical promovido por Rita Lee e Roberto de Carvalho que, há 35 anos, estreavam o mais denso LP de uma frutífera união romântica que se estendeu aos estúdios. Batizado simplesmente como “Rita e Roberto”, o material apresenta nove faixas que, a despeito de sua natureza descontente e das efusivas comemorações dos 40 anos de “Lança Perfume”, também merecem ser celebradas.
Àquela altura houve um consenso entre público e crítica. Ninguém esperava a quebra da hegemonia de uma feliz trinca de sucessos iniciada na virada da década. Longe do objetivo de emplacar mais um disco nas paradas e manter seu posto no high-society da música pop, o casal entregou uma espécie de resposta aos descontentamentos e inquietações que nutriam.
Da aura rockarnaval, que transbordava em hits dos discos “Mania de Você” (1979), “Saúde” (1981) e “Flagra” (1982), restou apenas a boa e velha ironia. De saco cheio das broxantes críticas que recebia da imprensa, mexida por traumas pessoais como a morte do pai e desgostosa com parte da cena cultural brasileira, Rita deixou fluir o que havia de melhor em sua criatividade. Ácida na medida certa, expurgou o que incomodava ao unir devaneios e convicções às sempre precisas composições musicais do parceiro.
“Críticos adoravam me crucificar, não importava o que eu fazia ou deixava de fazer, um ranço que durou por todos os meus cinquenta anos de estrada”, escreveu em sua autobiografia a hoje cantora e escritora ao resgatar o episódio.
“Os caras não escondiam que eram membros do bocejante time ‘pra fazer rock tem que ter culhão’, tal implicância acabou chegando em Rob, ‘o marido oportunista, músico-parasita’. A melhor resposta aos haters era um disco novo e dessa vez fizemos questão de colocar o nome ‘Rita & Roberto’”.
“Esse é um trabalho muito especial porque foi feito de uma maneira especial”, relembra Roberto, por e-mail. Após muitas viagens ao Rio e a Los Angeles, onde foram realizadas longas sessões de gravação, o casal recebeu de presente da gravadora Som Livre, em 1981, um novo espaço criativo. Era o ambiente perfeito para o nascimento do quinto “filho” dessa uma simbiose musical.
São Paulo, como uma figura onipresente, assume do início ao fim um papel de protagonismo. “Durante 6 meses ficamos com o estúdio fechado, sem limite nenhum de tempo, nenhuma pressão, com o melhor engenheiro de som do planeta, Moogie Canazio, que também fazia as programações de bateria”, diz o músico.
“Tudo foi feito exatamente do jeito e no timing em que queríamos. Todas as músicas partiam de ‘demos’, gravadas no próprio estúdio. Algumas eram compostas lá mesmo e tudo ia evoluindo organicamente, até chegar no ponto exato, passando por todo tipo de experimentação. Às vezes, as músicas eram inteiramente regravadas, refeitas.”
Faixas como “Bwana”, lançada apenas em 1987, surgiram nesta safra, mas nada entrou por acaso na seleção final de repertório. Adjetivos como “irreverente” e “burlesco”, usados à exaustão para classificar o trabalho de Rita até ali, deram lugar a palavras mais sombrias. Pautado em uma estética demasiado elegante, “R&R 85” chegou entregando arranjos bem executados e uma linguagem cinematográfica.
Uma das canções mais densas da leva, por exemplo, é “Vítima”, inspirada no filme “Janela Indiscreta” (1954). À la Alfred Hitchcock, a narrativa é fria e calculista ao desenrolar um romance policial sem testemunhas, tendo como cenário um dos milhares de arranha-céus da cidade.
“Do meu esconderijo no milésimo andar
Espio noite e dia sua vida secreta
O frio de São Paulo me faz transpirar
Sou vítima
Vítima
Vítima da sua janela indiscreta”
Em “Molambo Souvenir”, mais versos sobre dias cinzentos, desta vez pela boca de uma figura mezzo Maysa, mezzo Dolores Duran. Aqui, finca os pés de vez na penumbra deprê. “Olha eu aqui sem viver/e essa chuva lá fora/chora com pena de mim/meu reino por um beijo teu”, diz uma das estrofes.
O dito “choque cultural” se derramava ainda na capa, que trazia uma fotografia dos autores em posições milimetricamente geométricas na Estação Parí, no Centro de São Paulo. Enquanto Rita, que veste um sobretudo, parece distraída à frente, Rob aparece logo atrás, colocando-a no centro de um foco de luz.
Ainda nessa pegada atmosféricas e nada comercial surgiu “Ye Ye Ye”, um rock genuinamente brasileiro, engraçadinho, que esboça uma caricatura dos ditos “neoroqueiros”. Entre as parcerias estão Paula Toller, Sergio Dias (Os Mutantes) e Herbert Viana, que entram na ficha técnica como colaboradores em vocais e guitarras. Na composição, apenas “Nave Maria” não é do casal. Escrita por Roberto e Caetano Veloso, a música-oração passeia pela espiritualidade feminina sob uma perspectiva universal.
Apesar da “baixa” vendagem (foram 500 mil exemplares, metade do que atingiram lançamentos anteriores como “Flagra”, com seus gloriosos 3 milhões de cópias), era perceptível que a sedução contida no projeto não seria capaz de restringir a própria essência aos moldes tradicionais da indústria. Com os especiais de TV em alta, os artistas seriam convidados para apresentar as novas faixas em mais um fim de ano da TV Globo. Hora de reunir o time e mostrar que até mesmo empreitadas mais temperamentais eram capazes de abafar.
Muito antes de celebrar álbuns audiovisuais como “Lemonade”, de Beyoncé, e “Endless”, de Frank Ocean, considerando-os sinônimo de inventividade no pop do século 21, o Brasil já produzia especiais televisivos em moldes semelhantes. “Hoje a viagem tá ficando cada vez mais aprimorada tecnicamente, a mi me gusta mucho“, brinca Rita.
Em geral, o auge da consagração audiovisual consistia em interpretações exclusivas para o Fantástico, programa pico de audiência na década de 1980. Nomes como Elis Regina, Vanusa e Jorge Ben eram presença frequente. Nas redes Globo e Manchete também havia um complexo esquema de especiais de fim de ano em que os artistas mais badalados do momento recebiam convites para atuar em uma espécie de musical média-metragem.
Em 1981, quando a MTV gringa ainda engatinhava, o videoclipe em formato cinematográfico, com narrativa, promoveu uma espécie de reforma na indústria. Pioneira no gênero, Rita Lee aprimorou o que já tinha tentado fazer anos antes com o especial do disco “Saúde” e firmou parcerias que renderam clipes para todas as faixas do novo álbum.
Em 13 de dezembro de 1985, pontualmente às 21h20, a TV aberta exibia nove ambiciosos clipes, gravados na ponte-aérea sob o comando de nomes como Roberto Talma, Nelson Motta, Tisuka Yamasaki, Herbert Richers Jr. e Jorge Fernando, que também atacou como diretor-geral.
Com figurinos dos celebrados estilistas Patrício Bisso e Luiz Lacerda, a artista criou uma narrativa sagaz e imaginativa em que dava vida a personagens tragicômicos como “Gloria Frankenstein”. A jovem suicida, tímida a princípio, analisa a própria destruição em um monólogo digno dos livros de Mary Shelley.
“Na sexta-feira eu cruzava calmamente o Viaduto do Chá
Por um segundo me bateu uma vontade doida de pular, e pulei…
A Kombi que passava eu achatei
Meu corpo ensanguentado se esfacelou pelo asfalto
E eu saquei ‘Dessa vez exagerei’”
O que mais chama a atenção no especial de 1985, entretanto, é uma filmagem feita no Parque do Ibirapuera, outro ponto turístico da capital paulista. Cercada por flores brancas e caminhando no que parece ser um labirinto, construído no interior de uma redoma de vidro, Rita canta uma balada bobinha, acompanhada por Rob ao piano.
Logo se percebe ser a versão demo de “Vírus do Amor”, reaproveitada anos depois no LP “Zona Zen” (1988). No refrão, explode um instrumental grandioso, dramático na medida exata da composição.
“Fiquei um tempo tentando descobrir qual que seria a música daquela letra, até que um dia veio a sequência harmônica que é o riff da música, todo em tons menores, quando na balada isso aparecia em tons maiores”, explica Roberto. “O riff deu a alma, foi o santo baixando na música. E a melodia foi se modificando, se adaptando”.
Se em 2020 o foco é a Covid-19, há 40 anos a ameaça desconhecida possuía outro nome. Do alto de um balão, como se falassem aos céus, R&R se encarregaram de prestar uma homenagem aos vários amigos e amigas que se foram vítimas do vírus HIV. “Me lembro que o mundo estava apavorado com o surgimento da doença. No começo culpavam os homossexuais, depois a ciência provou que o vírus não era ‘homofóbico’ e que poderia contagiar qualquer um”, conta Rita.
“Eram pessoas muito alegres, muito festeiras, muito pra cima. Vi muitos morrerem e a gente resolveu fazer essa música com os nossos egos participando. Foi psicografada, combinamos o que iríamos escrever. Este verso é pra fulano, este é pra você”.
O sobrevoo aos altos prédios que recebiam os primeiros pacientes, submetidos a tratamentos que mais se assemelhavam a doses de placebo, transformou “Vírus do Amor” em uma espécie de elegia. A nave mãe poética aterrissava como se anunciasse um augúrio agridoce da sonhada liberdade, abruptamente interrompida. Ao menos por enquanto.
No mesmo programa, um grupo de jornalistas cerca o conversível que traz os artistas aos Estúdios Globo. Entre eles, destaca-se uma atrevida repórter interpretada por Dercy Gonçalves. Para honrar sua rápida participação, ela bombardeia as estrelas com perguntas como “Você dá ou desce, Rita Lee?”. “Não acha que tá muito velhinha pra fazer rock n’ roll?”. “É verdade que você tá com leucemia?”.
A última questão foi a deixa perfeita para o primeiro número do especial, “Não Titia”. Era uma resposta de Rita Lee ao jornalista Ezequiel das Neves, suposto disseminador de uma fake news que afirmava com todas as letras um diagnóstico de leucemia. Foi graças à notícia que a Mãe do Rock decidiu se apresentar na primeira edição do Rock In Rio – mas não sem antes colocar lenha na fogueira. No dia da assinatura do contrato, Rita decidiu usar uma peruca preta, o que deu a entender que seus cabelos estariam mesmo caindo. No auge da inocência, acabou endossando o boato.
Ainda no embalo de ânimos chistosos, um episódio nos bastidores de um outro especial de TV gravado no Teatro Fênix, no bairro do Bixiga, serviria como combustível. Na ocasião, Elis Regina desfilou críticas hilárias às novas cantoras do momento, chamando-as todas de “noviças do vício”. Referia-se àquelas artistas que se metiam a cantar mais pelos dotes físicos no chamado “teste do sofá” do que pelo talento vocal. Pode-se dizer que era uma meia-irmã de “Ye Ye Ye”, mas com adendos de sarcasmo.
“Eram piadas que ela contava enquanto fofocava sobre cantoras que de repente apareciam. Ou seja, eram fortes candidatas ao anonimato”, brinca Rita. A conversa ficou guardada na manga por um tempo até que 3 anos após a morte da amiga, acabou sendo musicada. Para o número, um ballet de sapateado foi convocado até a Gafieira Elite, no Rio de Janeiro.
“As noviças do vício
Não medem sacrifícios
Fazem altas baixarias
Por um resto de sucesso!
Ratazanas da publicidade
Pérolas da vulgaridade
Elas pecam pelo excesso
E morrem pela falta!”
Outros discos geniais viriam nas décadas seguintes, mas nenhum tão sombrio quanto aquele feito em 85. Como um kamikaze, ídolos também precisam ter ciência de que suas respectivas vida e obra serão transpassadas por altos e baixos. R&R, em sua glória, souberam como tirar os seus de letra.
***
“Rita & Roberto” está disponível no streaming.
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