O que mais se pode esperar de Emicida? Além de ser autor do respeitado disco “AmarElo”, duas vezes indicado ao Latin Grammy e vencedor da categoria Álbum do Ano, no Prêmio Multishow, o cantor também é co-criador do coletivo LAB Fantasma. Nas noites de quarta, comanda na Twitch o programa “Vai Ser Rimando”. Longe dos palcos e mais próximo da família, Leandro Roque de Oliveira, como foi batizado, também ataca como desenhista e escritor. Hoje vai se firmando como um dos grandes pensadores contemporâneos do Brasil.
Dividido entre tantas atividades, fica difícil responder à pergunta inicial. Mas as chaves para o enigma talvez se concentrem em um desejo de ampliar seu campo de comunicação. E para isso, não basta falar somente aos adultos, é preciso enxergar o futuro através dos pequenos. Aos 35 anos, o pai de Estela (10) e Teresa (2) lança o livro “E Foi Assim Que Eu e a Escuridão Ficamos Amigas”.
Publicada pela Companhia das Letrinhas e ilustrada por Aldo Fabrini, a narrativa é voltada para o público infantil. Criada ao longo de uma madrugada insone, durante uma viagem ao Vietnam, ela reafirma a vontade do autor em abordar pautas essenciais da vida com crianças, cumprindo os objetivos de transformar sua percepção de mundo e oferecer reforço no enfrentamento às adversidades. “É uma forma de dizer que elas precisam compreender e se relacionar com os próprios medos, se quiserem superá-los”, diz.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, o cantor reflete sobre sua relação com a literatura, inquietações e os dilemas da escuridão que angustia o Brasil.
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Papelpop: Sei que você adora contar histórias. Qual foi o ponto de partida da sua reflexão sobre a escuridão?
Emicida: Ninar minhas filhas sempre me fez ficar pensando na escuridão. Eu, quando criança, tinha bastante medo de quando as luzes se apagavam, foi assim até muito tarde. Uma vez, já depois de adulto, terminei um relacionamento difícil e fiquei com uns calafrios parecidos quando ficava no escuro sozinho. Às vezes, passamos por situações difíceis que trazem de volta velhos medos da gente. Mas minhas filhas me dão muita coragem e pela paz do sono delas eu enfrento o que for, mesmo que sejam os meus piores medos. Falar sobre isso é uma forma de dizer a elas que elas precisam compreender e se relacionar com os medos delas também, se quiserem superá-los.
É inquestionável o fato de que a paternidade é transformadora e em você ela acabou se manifestando também na parte criativa. Você costuma ler, contar histórias pras suas filhas? Elas têm alguma favorita?
Eu sempre falei disso, as pessoas é que não prestavam atenção. 2020 deixou todo mundo mais sensível e refletindo sobre o que realmente importa, então nasce uma sensação de que “uau o Emicida está falando sobre paternidade agora”, mas a verdade é que lá em 2011 já havia esse tema nas mixtapes, depois nos discos, “Novo Nego Véio” e “Sol de Giz de Cera”, pra citar alguns exemplos mais diretos. Eu leio sim, mas eu gosto de inventar histórias junto com elas à noite, mas lemos juntos, em vários momentos do dia aliás, não só na hora de dormir. A mais nova ama um conto africano que explica por que é que os mosquitos ficam zunindo no ouvido das pessoas, a mais velha está agora encantada com “A Terra dos Meninos Pelados” e com o “Auto da Compadecida”.
As suas filhas têm lidado bem com a quarentena? Para além do medo, tema central do novo livro, quais outros assuntos acredita que possuam uma certa urgência de abordagem com as crianças agora, dentro desse contexto?
É difícil pra gente, que consegue encontrar algum sentido depois de se informar, pras crianças é mais difícil ainda. Quis falar sobre medo em 2020, também porque as crianças estão muito abandonadas e não estou falando só das que não têm família. As demandas da vida adulta têm feito as pessoas ficarem 9 horas num celular durante o dia sem perceberem; as crianças têm se sentido muito sozinhas e angustiadas e migrado pros celulares mais cedo, porque ele acaba virando uma chupeta moderna agora. Acho triste demais. As consequências disso serão assustadoras na saúde mental de todo mundo, acho isso uma urgência.
Na sua carreira, já deixou de fazer por causa por conta desse temor ao desconhecido? Quais lições esse sentimento trouxe pra você ao longo do tempo?
Eu sou ponderado e calculista, até meio frio às vezes. Entendo minha carreira como uma construção grandiosa e vou avançando com cuidado pra não cometer nenhum deslize que a transforme em um castelo de cartas. Distante dos holofotes e perto do que faz a arte viver mais, sempre. Esses passinhos de formiga são coisas que aprendi vendo catástrofes geradas por pessoas que se iludiram ao longo do tempo com fama, likes, etc, essa é a lição maior.
Você teve uma origem humilde e eu entendo bem como as barreiras de acesso à leitura se estabelecem nesse contexto porque também tive (ainda que com privilégios, por ser um homem branco). Como se deu o seu interesse pela literatura? Que reflexão devemos fazer em relação ao acesso à cultura por crianças e adolescentes no Brasil?
Eu comecei a ler pra fugir do mundo. Eu não queria de forma alguma estar onde eu estava, tudo me agredia e eu queria ser outra coisa que não aquilo. Durante muito tempo, eu fui me fundindo àquela realidade e sentindo meu senso de humanidade escorrer pelos dedos, porque é isso que a pobreza faz, te desumaniza. Ao descobrir os livros, eu achei um portal que partiu minha cabeça, então eu passei a viver em dois mundos: um era esse, com o qual não lido bem até hoje; o outro é esse onde eu sou amigo do Mandume e do Albert Einstein e fico conversando com eles por horas, com esse segundo eu lido melhor.
Em 2016 chegou às lojas o livro “Hip Hop Genealogia”, uma coleção de HQs que tem um prefácio escrito por você. Eu sinto uma queda por gibis e HQs… Não deixo de pensar que um projeto do tipo, te envolvendo, pode acontecer no futuro. Já pensou a respeito?
Eu voltei a desenhar, preciso só ter mais tempo, mas já estou rabiscando, qualquer hora aparece alguma coisa do nada, porque eu gosto de ir fazendo e quando ninguém menos espera, sai um negócio inusitado desses.
Se me permite dizer, achei demais o seu ensaio pra revista QuatroCincoUm [na capa, Emicida está vestido como Gepeto, clássico personagem de Pinocchio]. Quando vi, me lembrei imediatamente de uma outra capa, desta vez com Fernanda Montenegro vestida de bruxa. Não por acaso, você e eu a tietamos em outra ocasião, em 2019, ao falar sobre “Ismália”. Como foi se vestir de carpinteiro? Há um significado especial por trás da escolha do personagem?
Foi uma ideia da revista e eu adorei. Eu nunca tinha pensado muito sobre o Gepeto, sempre ficava centrado no Pinocchio, mas olhar pra ele em 2020 me fez me ver muito nele, na solidão, no sonho de um amigo, eu fui muito solitário durante uma parte muito grande da minha vida. Eu conversava com os pregadores de roupa, pra você ter uma ideia, então ser o Gepeto me emocionou, porque todo mundo adoraria ter um amigo e ele fez o dele com uma madeira mágica que não saiu como ele esperava inicialmente, algo que pode acontecer e acontece muito com a gente e nossas expectativas, né?
“E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas” foi lançado pela LAB, que tem desenvolvido um trabalho muito interessante, em parceria com a Companhia das Letras, por sua vez uma das editoras mais respeitadas do País. Essa nova história também chega com certa expectativa após a estreia de “Amoras”… Como tem sido a experiência, a responsabilidade de exercitar a escrita, profissionalmente? Você já teve isso de cultivar uma rotina, hábitos específicos na hora de escrever/compor?
Nesse ano, eu tô focado nas coisas de casa, vou adequando a criação a isso. Entre um banheiro, uma louça, uma fralda e uma explicação de um dever de casa, eu escrevo um rap, um poema, um texto e depois fico viajando nele dentro da minha cabeça. Minha cabeça está sempre fervilhando, 24 horas por dia. Eu não fico viajando muito na expectativa dos outros, minha bússola são meus critérios artísticos e os meus valores humanos. A relação com a Cia das Letras é maravilhosa, porque é também uma aula poder ter o auxílio luxuoso da equipe editorial deles, aliás, assim fica fácil demais pra mim.
Ano passado eu fui a São Paulo pra assistir a um show e dias antes tinha rolado um grande encontro de leitores com a Angela Davis (no teatro, jovens eram a maioria). Também tenho notado um interesse maior pelo legado e pelas obras de Conceição Evaristo, da própria Carolina Maria de Jesus, que terá seus livros reeditados em breve. Ao mesmo tempo, ainda existe uma escassez de livros pra crianças com personagens negros, o que é muito importante no sentido de representatividade na primeira infância. Agora você planta uma semente… Pra garotada, o que significa se ver representado desde cedo, ter a oportunidade de crescer com esses autores?
Significa que eles vão olhar no espelho e ter menos insegurança do que eu tive. Que eles e elas vão acreditar mais em si e na beleza de suas histórias e assim vão querer combater um mundo que produz tantas tragédias. Ainda estamos longe do ideal, mas já é possível ver consequências das canetas que contaram nossas histórias, eu sou uma delas.
Em determinado momento da obra você diz Se pra todo sim existe um não/também pra todo problema existe uma solução. O que falta pra vencermos a escuridão que nos abraça neste momento?
A pergunta certa é: enquanto sociedade, queremos vencer essa escuridão ou queremos empurrar essa escuridão para um lugar onde ela deixe outras pessoas aflitas, longe dos nossos olhos? Tudo é uma questão de vontade e de olhar pro mundo com a capacidade de percebê-lo. As soluções estão gritando todo dia, mas a gente tá ocupado demais nos celulares contando likes.
E do que Emicida tem medo? O que é preciso ser/fazer pra ser seu amigo?
Eu morro de medo da ausência de sentido, isso é um terror pra mim. E ser meu amigo é a coisa mais fácil do mundo, é só não ser chato, indicar uns livros e conduzir as conversas fazendo associações fora da curva, tipo um camarada meu que me ligou pra falar da cena de skate da Mongólia agora a pouco. Se comportou desse jeito, já mora no meu coração.
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“E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas” está disponível em todas as livrarias. Você também pode ouvir “AmarElo” no streaming, em sua plataforma preferida.
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