Não é difícil entender porque Xuxa Meneghel segue sendo um dos maiores ícones da cultura pop latino-americana. Basta dizer o nome dela e sua memória será tomada por lembranças de infância em que você, talvez com o café em mãos, corria para a frente da TV a fim de vê-la. O Xou da Xuxa, exibido na Rede Globo nas manhãs de segunda a sábado, foi mais do que líder em audiência: era quase um ritual sagrado para crianças de todo o Brasil.
Tudo bem também se você não viveu os anos 1980 e 1990, se ainda é jovem. É possível que tenha ouvido as canções da série “Xuxa Só Para Baixinhos”. Faça o exercício também e pergunte à sua mãe. Ela vai saber dimensionar o que isso significou, na certa vai te dizer que desejou algum item de merchandising com o nome ou o rosto da artista. Quem sabe a bota, a maletuxa, uma boneca…
Não é exagero dizer, todo mundo tem uma história com a apresentadora. O impacto que teve na formação de seus milhões de “baixinhos”, bem como sua longa e bem-sucedida trajetória atravessaram gerações e estão impressos em “Memórias” (Globo Livros). A autobiografia chega às prateleiras em setembro, mesmo mês em que a televisão brasileira completa 70 anos de existência. Assim como esse veículo exerce verdadeira fascinação nas pessoas, Xuxa desce da posição de ídolo para olhar nos olhos de cada fã, apresentando-se como confidente.
De fato, não há revelações bombásticas ou declarações demasiado dramáticas nas 272 páginas. Não é essa a intenção da autora. Mas é bonito e bem-vindo seu interesse em se conectar com o público, afinal não é sempre que se tem um ídolo disposto a abrir o baú de recordações.
Na obra, Xuxa conta sobre a infância, marcada por cruéis e repetidos abusos sexuais, e dedica um espaço importante àquela que recebeu toda sua devoção: a mãe, Dona Alda. A autora também resgata os amores que viveu com Pelé e Airton Senna, mas sem se prender ao passado. Sutilmente, vai mostrando que está sempre de olho no futuro – é aí que entra Junno Andrade, com quem tem uma relação desde 2012. “Ele é o meu hoje, o meu agora, e tenho certeza de que o meu amanhã e sempre”.
Em vários trechos da obra aparece como pano de fundo a palavra transformação, seja ela relacionada ao seu pensamento enquanto ativista das causas animal e ambiental, ou ao reboliço provocado pela chegada da filha Sasha, em 1998. Xuxa não tem medo de nada, nem mesmo de envelhecer. Impondo-se diante da caretice, revela como espera que seja o amanhã. “Me imagino careca, enrugada, mimando os netos e muito feliz com meu velho ao lado.”
Na entrevista a seguir, feita por e-mail, ela fala mais sobre o que viveu.
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Papelpop: “Memórias” chega às livrarias no mês de setembro e existe uma expectativa enorme. Me conta: o quão libertador é terminar de escrever a última página de um livro como esse?
XUXA: Quando você termina a última página, volta para a primeira (risos). Imagina a paginação, a fonte, a capa… Quando termina tudo, você pensa: Será que errei alguma coisa? Será que falei demais? Será que vai agradar? Será que vai vender bem e eu vou poder ajudar muita gente – quem ler e com os royalties?
Rita Lee é quem escreve o texto da orelha de ‘Memórias’ e faz uma declaração linda em que menciona, entre outras coisas, a sua coragem de raspar a cabeça e o carinho que os 3 filhos sentiam pelo seu trabalho, na infância. Que legado Rita deixou pra você, o que de mais bonito ela te ensinou?
Pra mim? Não, pro mundo! Cada letra, cada música, cada roupa a frente do seu tempo, cada palavra de carinho que sempre teve com seu público, cada demonstração de amor pela natureza, pelos bichos… A Rita é um ícone. Está à frente zilhões de anos. Sasha a chama carinhosamente de vovó Rita. Você sabe o que é isso? Você estar viva na mesma época dessa pessoa que é o que é e ainda escrever sobre meu livro? Eita!
Um período muito marcante e que também ganha destaque no livro é aquele em que você trabalhou como modelo em Nova York. O que de mais especial você guarda dessa época?
Nossa… Eu tive que escolher TV ou modelagem… Pois é… Sei que fiz a escolha certa, mas… Poderia ter aproveitado um pouco mais lá também. Ou não, sei lá!
Esta é uma obra que perpassa os principais momentos da sua vida, que assim como qualquer grande estrela contou com altos e baixos. Qual foi o capítulo foi o mais difícil de escrever?
Falar dos meus ex não foi muito fácil. Digo isso porque a história não é só minha, mas só isso que me custou. Mas, também, se eu não falasse sobre isso, ia parecer que eu queria negar minha história com eles.
Há na obra um trecho muito bonito sobre o Junno, em que você diz que ele é a pessoa com a qual você pretende passar o resto da vida. Ao mesmo tempo temos também um trecho muito forte sobre o Senna. Junno não sente ciúmes do lugar que ele ainda assume, como funciona a relação de vocês nesse aspecto?
Uma vez, o Ju disse uma frase que nunca vou me esquecer: “Ele tem um lugar na sua vida e no seu coração e ninguém vai tirar. O que eu quero é o TUDO que sobrou pra mim, pra nós”. E assim é. Ju é o meu hoje, o meu agora, e tenho certeza de que o meu amanhã e sempre.
Nosso público leitor é majoritariamente jovem e cresceu ouvindo os discos da série “Xuxa Só Para Baixinhos” (eu confesso, me incluo nessa). Como foi fazer um projeto que alcançou tanto sucesso, mas ao mesmo tempo com poucas acreditando?
Como tudo na minha vida… Quando eu comecei na Rede Globo, disseram que eu duraria só um ano. Fiz o disco ‘Xou da Xuxa’ e disseram que não ia vender nem disco de ouro. Fiz o filme ‘Lua de Cristal’ e riram, disseram que ia ser mais um fracasso… O ‘XSPB’ é meu sonho, como ‘O Mundo da Imaginação’. Pena que tem gente fala mal sem antes ouvir ou ver, mas te digo, valeu a pena cada coisa ruim que já passei e ouvi. Tudo vale a pena quando vejo uma criança se deliciando com a música ‘Estátua’, ou quando vejo que ‘Soco soco, bate bate’ virou febre na Europa, ao saber que dois Grammys chegaram nas minhas mãos – e poderíamos ter ganhado mais se não fosse a má vontade e o medo de algumas pessoas acharem que com isso me davam mais poder… Mal sabem elas que o poder eu já tinha e tenho: MEUS ETERNOS BAIXINHOS.
Você sempre se posicionou a favor de pautas em defesa das crianças e dos adolescentes, dos animais e da natureza. No seu livro existe um capítulo inteiro dedicado à sua relação com o veganismo. Qual a importância de se falar sobre a pauta com as crianças, com os jovens que te acompanham?
Sabe quando você descobre que o mundo seria melhor se fosse assim? Aí, você quer que todos saibam, mas se depara com a ganância, com a ignorância das pessoas e tira o pé do freio. Na verdade, eu vou lançar um livro inteiro para as crianças falando de veganismo. Vai chegar ao coração delas? Espero que sim. Espero que o “atirei o pau no gato” perca força dia após dia. Espero que as crianças saibam que o nuggets que elas estão comendo podia ser a Galinha Pintadinha. Espero que elas saibam que quando comem um cachorro quente é a Peppa Pig ali. Na verdade, contar mentira para criança nunca foi o meu forte, nunca consegui. E espero que os pais tenham bons argumentos: pois dizer para eles que a proteína vem da vaca, dos bichos, não dá mais. Será que eles falam que a pandemia veio de gente que come bichos? Será que eu precisaria escrever um livro sobre isso se só falassem a verdade para as crianças? Acho que não, né? Tem gente que vai me odiar. A agropecuária e a indústria farmacêutica com certeza vão dizer que estou velha pra falar com crianças. Mas eu sempre falo a verdade para elas. E elas me entendem.
Tem sido muito difícil abrir os jornais e ler o que acontece na Amazônia, no Pantanal. Estamos em um momento muito delicado não apenas em relação à floresta, à beira de um nível de destruição irreversível, mas também em se tratando dos povos indígenas, cada dia mais ameaçados. Como você tem recebido essas notícias?
Com tristeza. Não me sai da cabeça aquela cena que a TV mostrou do ministro falando ‘Temos que passar a boiada’. É isso. Fecham os olhos pra tanta coisa errada pra ganhar dinheiro. Como podem colocar alguém pra defender os índios, a natureza, se a pessoa não gosta deles?! Constatar tudo o que está acontecendo com o Cerrado, com a Amazônia, é confirmar que eles deixaram passar a boiada.
Ainda em 2020 chega pelas suas mãos uma obra infantil protagonizada por uma criança que tem 2 mães e você diz que a única linguagem que deus entende é a do amor… O lançamento dessa obra era um desejo antigo? Por que trabalhar esse tema agora?
Por que não? Nós estamos vivendo um momento de muita discriminação, racismo, homofobia, gordofobia, machismo, preconceito em geral. Falar sobre amor deveria aliviar, mas os mal-amados e os mal informados nem leram o livro e já saíram falando suas besteiras em nome Deus. Tentando responder sua pergunta, não tem momento melhor que esse para se falar de amor.
Você tem um público gay enorme, formado inclusive por muitos jovens e adolescentes. Que recado manda pra eles?
Eu tenho um grande público que me respeita, para ele, eu digo: SEJA FELIZ! Sorria sempre, pois quem te odeia ficará infeliz com sua alegria. E quem te ama se alegrará com sua felicidade. SEJA FELIZ!
Sendo uma mulher livre de preconceitos, que não compactua com comportamentos de cunho racista, fundamentalista… Quais ensinamentos a Sasha, enquanto filha, trouxe pra você?
Sasha está sempre me ensinando coisas… Até mesmo quando ela não estava presente, ali ao meu lado. Eu já tive pensamentos machistas, já tive medo e prejulguei algumas pessoas… Tentei me melhorar pra ela, como mãe e como ser humano. Sei que sou uma pessoa melhor hoje, pra ela e por ela.
O livro termina com uma espécie de profecia em que você descreve o sonho de ter netos. Como você imagina que será a Xuxa avó?
Careca, enrugada, mimando os netos e muito feliz com meu velho ao lado.
Você é ariana, como eu, e completou 57 anos em 2020. Tá linda, radiante, mas vejo também que existe uma cobrança enorme em termos de imagem. Isso acontece com outras mulheres importantes da cultura pop como Debbie Harry, Madonna, Cher, a própria Rita Lee. No livro você escreve que as pessoas até hoje cobram o uso da xuquinha… É saudosismo? Enxerga como um problema envelhecer na frente do público?
Sim, machuca a memória afetiva delas. Me vendo velha, essas pessoas têm que assumir que também estão envelhecendo. Minhas rugas afirmam que eles cresceram e, em alguns casos, não conseguiram realizar seus sonhos. Me ver velha é dizer: corre que o seu tempo está passando. Desculpa, mas não é que eu esteja ficando velha, eu sou velha e o Ju me ama do jeitinho que sou. Seria tão bom se todos se enxergassem assim, além da aparência…
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“Memórias”, o novo livro de Xuxa, já está disponível nas principais livrarias.
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