Gustavo Bertoni transformou um ano inteiro de solidão em autoanálise. Em outras palavras, quando se trata de um artista que não se conforma com as próprias questões, isso pode ser enxergado como um laboratório para a criação de um novo álbum. A ideia era fazer um disco que pudesse sintetizar o produto de suas buscas internas e externas.
“O processo criativo muitas vezes conta com a participação da solidão e da solitude”, diz ele, por videochamada. “Só aí você entende o quanto precisar estar num lugar determinado, trazer experiências pra um laboratório de criação”.
Em casa, isolado, o cantor lança nesta sexta-feira (7) o disco “The Fine Line Between Lounliness and Solitude”, o terceiro da carreira solo, que concilia junto à banda Scalene. Produzido no primeiro trimestre de 2020 entre as cidades de São Paulo e Berlim, consideradas pelo próprio capitais cosmopolitas e que se relacionam por meio de ruídos e energias explosivas, o LP explora as múltiplas formas de se compreender as contínuas narrativas da vida.
Entre o folk e o eletrônico, o clássico e o moderno, ele constrói um som elegante, que torna a experiência do ouvinte um tanto mais imersiva. Bebendo na fonte de ícones como o Fleetwood Mac e artistas relativamente jovens como Haley Heynderickx, ele conversou com o Papelpop por cerca de meia hora. O papo você lê na íntegra abaixo.
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Papelpop: O título, “The Fine Line Between Lounliness and Solitude” (‘A linha tênue entre a solidão e a solitude’, em tradução literal) me chama a atenção logo de cara porque é algo que tenho refletido bastante durante a quarentena. Imagino que batizar um disco seja uma tarefa dispendiosa…
Gustavo Bertoni: Cara, é uma boa pergunta porque nomear coisas, intitular coisas não é uma parada fácil mesmo. Eu acho que trampando com a mesma parada há 10, 11 anos, tem coisas que você sente que é fluido, natural – o que não significa fácil, porque mesmo surgindo de uma forma fluida às vezes o desprendimento emocional é grande. A “facilidade” enquanto termo é relativa. Mas a parada de nomear e intitular é algo que com o tempo fica mais confortável, comigo isso se deu a partir do momento em que me desprendi de fórmulas ou uma preocupação com o olhar de quem recebe, sabe? E também porque intitular lago você tem tantas possibilidades. Você quer sintetizar o que você falou? Agregar uma leitura do que não foi dito ainda? A partir disso comecei a olhar mais pra essas coisas. ‘The Fine Line Between Lounliness and Solitude’ surgiu no fim do ano passado quando fiz um tuíte em português, o que também é uma coisa bem millenial de se dizer, e coloquei uns underlines conectando as palavras. Pensei muito sobre isso naquele dia e me soava muito familiar, natural de se dizer. Pesquisei pra saber se já existia algo, parecia algo que já deveriam ter falado, mas acaba que tem pouca coisa sobre, um texto aqui e ali no medium. Não existe uma obra sobre. Convivi com isso até certeza de que seria este o escolhido e tive a convicção ao perceber que ele permeia todas as músicas do disco, de uma forma ou de outra.
Acabou sendo uma coisa que comunica bem com o momento que vivemos…
Sim! Mas eu não tenho muito essa pretensão de fazer uma conexão com o agora porque eu compus e fiz esse disco sem saber o que aconteceria. A arte tem essa coisa de criar vida própria e de se ressignificar a partir dos momentos em que estamos. Mas se as pessoas quiserem ou acabarem relacionando, tudo bem. Pela primeira vez este foi um disco que realizei num período curto de composição. Às vezes, durante 1 ano e meio, 3 anos… Foram 10 meses, a sensação que dá é a de que ele é um recorte de uma fase, uma época. Além de ser meu primeiro ano sozinho, morando em São Paulo, foi também um ano ‘pós’ dois relacionamentos longos, quase emendados. Teve muito desse processo de aprender a estar na própria companhia. O processo criativo muitas vezes conta com a participação da solidão e da solitude. Aí você entende o quanto precisar estar num lugar determinado, trazer experiências pra um laboratório de criação. Foi um processo. É um título que pra mim é muito natural e é aquela coisa. Nem sempre você consegue traçar e distinguir o que está fazendo sem olhar tudo de fora. Durante o a gravação, lá pelos ‘finalmentes’, na mixagem do álbum, percebi esse tema recorrente das linhas das quintas e da visão turva das coisas. Lembro um pouco também dos expressionistas, das sobreposições de camadas, uma pintura rápida das coisas ao ponto de o objeto ficar um pouco desmaterializado. Comecei a entender sobre o que eu falava, que era um pouco das minhas linhas sendo reestruturadas enquanto certezas e limites.
Pra você, por que é importante que as pessoas entendam a diferença entre os conceitos de solidão e solitude?
Eu acho que a reflexão é a parte mais importante, não necessariamente se cobrar uma conclusão sobre, até porque essas linhas são constantemente renovadas, se cruzam. A solitude tem muito a ver com uma escolha, você estar na companhia de si mesmo, conscientemente e aceitando a sensação que aquilo trás. Quando eu penso em solidão, penso logicamente na falta, na ausência de completude. Não seria num sentido zen, evoluído, ‘vou me isolar e estou pleno’, acho que tem um pouco sobre aceitação de imperfeições, inconstâncias e desenvolver uma boa relação com elas, não tentar reprimi-las ou negá-las. É sobre escolha e autossuficiência. É por aí que tentei levar.
Engraçado porque quando soube que o disco tinha sido gravado parcialmente em Berlim, logo pensei na relação da cidade com a arte. Não conheço Berlim, mas sinto que existe algo mágico pra quem leva suas criações pra lá, os exemplos são vários: desde discos recentes como APKÁ!, da Céu, até a trilogia de Berlim, do próprio David Bowie. Houve algo específico da cidade que te cativou? E em relação a São Paulo?
Boa pergunta, vou começar falando sobre São Paulo. O folk te leva pra um lugar meio rural, até meio bucólico, e isso faz parte do nosso imaginário sobre o gênero, porque de fato muitas referências vem de fora. É um estilo que não é essencialmente brasileiro, tem toda uma coisa dos imigrantes irlandeses indo em direção aos Estados Unidos e levando o próprio som. Busquei fazer uma reflexão, de uma forma natural, pra tentar entender como me encaixo como artista brasileiro no meio dessa coisa globalizada e cosmopolita que existe em ambas as cidades. Levei pra um contexto mais urbano, de natureza versus um contexto urbano, a fim de criar algo mais genuíno. Acho que São Paulo tem uma paisagem sonora muito poluída, menos até do que Berlim. Conforme você grava os áudio notes das músicas há uma porção de ruídos – o que faz sentido, são texturas, é como se fosse um rabisco.
Isso me lembrou de “Fetch the Bolt Cutters”, faixa título do novo disco da Fiona Apple. Além da Cara Delevigne, ela conta com a participação dos próprios cachorros, que irromperam em vários latidos assim que a gravação tava terminando. Ela curtiu e resolveu deixar na mixagem final.
Isso! Isso é ‘daora’! Talvez ajude a ambientar, faça soar como algo mais humano, menos asséptico quando sobrepomos. Particularmente eu adorei esse disco dela, sei que ela fez boa parte em casa… Também tentei incorporar um pouco desses aspectos ruidosos por meio das texturas e do sintetizador. Agora… a parada da vivência de Berlim, São Paulo, por ser uma potência econômica e por ter a densidade populacional que tem, agrega nichos específicos autossustentáveis. São vivencias específicas que são oferecidas pela cidade porque existe espaço pra artes menos pasteurizadas, como é o caso de Brasília, onde isso não tem força. Agora na Alemanha, quando você falou sobre Berlim ter uma certa mágica, gostaria de estudar pra poder dizer com mais embasamento. O que sinto é que a cidade, por ter um contexto de muita repressão e muito autoritarismo, severidade e rigidez, é uma coisa meio humana, natural, que carece da existência de um outro extremo, de um espaço muito libertário, avant-guarde. É sem dúvida um espaço experimental, de coisas que vão contra o status quo, os sistemas… deve ter sido tão intenso lidar com essa coisa rígida, fascista, que agora existem suas repercussões.
Senti que o violão, que parecia conduzir com mais afinco as canções de “Where Light “Pôrs” In”, saiu um pouco de cena e deixou o protagonismo com o piano. Tá mais sofisticado, elegante. Também notei uns vocais que lembram uma vibe meio Devendra Banhart. Queria que você me contasse um pouco sobre o seu processo de pesquisa, essas pinceladas sonoras.
Obrigado por ter levado pra esse lado. Tenho curtido muito um compositor islandês chamado Ólafur Arnalds, que compõe trilhas muito minimalistas. Gosto desses aspectos um pouco mais orquestrados de paisagens sonoras e isso influenciou muito o disco. Foi muito legal mergulhar no folk anos 1970, de Fleetwood Mac a algumas coisas dos Beatles e pensar no agora a partir de descobertas como a artista Haley Heynderickx, que tem um disco chamado “I Need To Start a Garden”. Indico. A minha tentativa aqui, logo, foi meio que juntar essas duas coisas, o clássico e o contemporâneo. Usar pianos minimalistas, trilhas, somadas à música eletrônica, a sons ambiente. Como você bem observou, são texturas, pinceladas acontecendo. Existe uma estrutura de canção, que se mostra uma música fácil, mas os elementos criam momentos ali dentro. Rola uma linearidade que se deixa ser entrecruzada por um lugar mais onírico. São dois lugares de absorção.
Este é um trabalho que vai contar com uma parte visual forte, expressa por uma instalação da artista Dani Federighi, projeções de Graziela Paes, todas criadas exclusivamente pra ocasião. Isso me lembrou que o penúltimo trabalho da Scalene, “Fôlego”, explorou essa ligação da música com a arte contemporânea nos visuais, ficou mais evidente. Qual a importância disso neste momento em que as pessoas estão isoladas, consumindo cada vez mais arte, buscando conhecer?
Tá sendo muito curioso, a gente tá fazendo e aprendendo enquanto faz. O projeto tomou forma enquanto fomos nos encontrando, trocando e entendendo os limites e possibilidades das linhas. Tomou vida própria, a Dani não tinha experiência com roteiro e nos vimos de repente ambos sentados e fazendo a ‘minutagem’ do disco dentro do contexto de instalação. Esse projeto tá sendo mais sobre o processo, sobre o laboratóriozinho, do que o resultado. A YMA, minha parceira no projeto, que canta no disco, adora expressões corporais e dança… daí decidimos ensaiar um número. É muito sobre colaborar, lidar com as tensões de se fazer o que ainda não foi feito e fazer uma parada multilinguagem, é muito do hoje, do que se busca em termos de experiência, além do que queremos enquanto artistas, que buscam se sentir desafiados pelo processo. É muito bom pensar na ideia, em ter interesse de transportar o público pra um espaço físico.
O lançamento aconteceu em uma live, um pouco diferente das demais, quase uma festa de audição. Ao longo da pandemia venho conversando com os artistas a respeito das mudanças que a gente tem observado nesse meio tempo, em como tudo ainda é muito incerto. Fala-se muito em estratégias, em mudança. Que marcas você acredita que esse período vai deixar pra vocês, que tão do outro lado, criando?
Eu tenho tentado não falar coisas muito conclusivas porque estamos em um momento muito transitório, estamos dentro do processo. Uma coisa que senti foi essa parada de se ferramentar pra diferentes situações. Veja você: eu gravei um EP com o Scalene, cada um na sua casa, e isso nos forçou a ficar mais fluido nos softwares de gravação, confiar mutuamente no outro… fazíamos poucos calls, era tudo muito presencial… No eletrônico, no funk e no pop isso já existe. Talvez por vir de uma escola no rock, de querer sentir energias próprias do estúdio, isso tenha chegado apenas agora. Não abriria mão, a não ser em circunstâncias específicas como agora. Mas existe um desafio de tentar tornar conexões virtuais mais humanas e estou disposto a ver onde isso vai dar.
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O novo disco de Gustavo Bertoni já está disponível no streaming. Você também consegue assistir à live de estreia do álbum clicando aqui.
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