Apesar de intimistas, as lives feitas por Fernanda Abreu durante a pandemia fizeram muita gente dançar. Com os pés descalços na sala e uma taça de vinho em mãos, houve quem engatasse audições non-stop do LP “Sla Radical Dance Disco Club”.
Em 2020, ele completa trinta anos e se firma como um marco da música pop, esquivando-se da nostalgia feroz. Nessa atmosfera de inferninhos e luzes piscantes, distinta do isolamento de agora, a ordem é cair na pista, se aglomerar e barbarizar.
Em outras palavras, expande sua curiosidade em estúdio, além da atenção conquistada junto à Blitz, grupo em que atuou como backing vocal entre 1982 e 1986.
Libertária ao cantar mistérios da noite, viagens em alta velocidade e paixões fulminantes, Fernanda se firmou como a primeira grande popstar do Brasil. Foi da disco music aos grooves de música preta, que completam sua formação, sem deixar de brincar com os samples de Madonna.
“Não senti medo de usar porque não havia uma legislação até então. O sample pra mim tem um significado da reinvenção do que já existe, mas hoje me cansei. É muita burocracia”, brinca nesta entrevista.
A seguir, ela relembra bastidores, sua relação com a dança e faz planos para um retorno triunfal.
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Papelpop: “Sla Radical Dance Disco Club” é um trabalho que reafirma a noite carioca, a agitação do Rio de Janeiro. Trinta anos depois, o que mudou nessa cena?
Fernanda Abreu: É engraçado você dizer isso porque quando eu lancei esse disco, no dia 30 de junho de 1990, ele foi muito mais abraçado pela cena de São Paulo. Eu passei a ir frequentemente pra lá logo em seguida porque os DJs e quem frequentava a pista, os bailes, me procuravam muito. Senti que funcionou muito mais lá do que aqui no Rio e só depois a gente se espalhou pelo Brasil, claro, com o lançamento dos singles e com a força das aparições em programas de TV. Esse é um trabalho que fala muito com a cena dançante que surgia naquele momento, por isso se diz que é um trabalho pioneiro. Mas nossa. A gente tinha no fim dos anos 1980 uma cena muito pautada pelo pop-rock. Não tinha muito essa figura do artista da música pop dançante brasileira. Em 1960 você ouvia muito mais Jorge Ben Jor, Tim Maia, Hyldon e Cassiano, que eram artistas que traziam um som com groove, com suingue, mas que não tinham tanto a ver com as pistas. Nos anos 1970 vivemos a febre da disco music, mas aqui no Brasil a gente tinha uma ditadura em curso e essa história não vingou. Mas em 1990, quando lancei “Sla Radical”, foi super legal. Esse projeto, entretanto, já vinha sendo pensado há algum tempo. Em 1989, depois de sair da Blitz, eu tava dirigindo um show do Fausto Fawcett lá em São Paulo e, passando o som, o técnico me pediu pra cantar. Me falou sobre uma proposta de fazer um show interpretando canções alheias, que não tivessem nada a ver com o meu repertório, e quis fazer logo de cara um especial de disco music. Eu cantava Chic, A Taste of Honey, Silvester, Donna Summer… Aos 10 anos eu imitava Toni Tornado, The Jackson 5, no espelho. Sempre curti muito dançar, mas não foi uma proposta comprada logo de cara. Me lembro de quando assinei o contrato com a EMI pro primeiro disco e o próprio diretor artístico disse: “A gente não tem uma cena pop ainda, não podemos te prometer nada como prometíamos pra Blitz, que era uma banda de sucesso imenso”. Fico muito feliz que deu certo. Acho que muita água rolou daquele primeiro disco até hoje.
Em que contexto isso tudo acontece?
Não tinha MC cantando em português, o baile inteiro dançava os sons que os DJs botavam e eu acho que isso foi fundamental pro estabelecimento da música eletrônica brasileira, do funk carioca. As coisas mudaram bastante, pensando no lado do DJ. É ele o cara que apresenta os sons novos, mas hoje tem muito DJ produzindo seu próprio material, como é o caso do Vintage Culture. Eu agora, por exemplo, tô fechando um disco de 13 remixes inéditos chamado “Fernanda Abreu: 30 anos de Baile”, que é pra comemorar os 30 anos de carreira solo e agradecer por ter sido a primeira figura da música pop dançante brasileira que eles abraçaram. Vejo também que hoje os DJs produzem muito mais o material que tocam, enquanto antigamente era mais uma atividade ligada à pesquisa. Você ia pro exterior, comprava seus LPs, trazia e experimentava. A galera do funk hoje virou pop. Anitta, Ludmilla, Luísa Sonza… todos os jovens que fazem música dançante apostam em uma pegada do funk.
Apesar de o disco ter aberto seus trabalhos naquela década, você viveu plenamente os anos 1980 com a Blitz. A banda teve um papel relevante na sua carreira, na consolidação da sua formação. Quais lembranças tem do período?
A Blitz foi super importante pra mim porque eu aprendi tudo lá. Eu aprendi sobre gravação, mixagem, masterização, equipamentos, colocação de voz. Eu tava lá em todos os momentos. Gravávamos em fitas de rolo de 24 canais, como editava numa fita, como cortar e colar, até hoje é muito mais fácil gravar, editar e afinar a voz. Aprendi em estúdio, aprendi na estrada a montar shows e escolher repertório, criar uma equipe de produção, de cenografia, figurino, coreografia, iluminação, fazíamos apresentações muito elaboradas. Eu era novinha e muito antenada, saí da Blitz aprendendo a montar um show de verdade. Fora a relação que se tinha com a mídia, com as rádios, com as TVs, com os impressos, os executivos e as gravadoras. Foi um super supletivo [risos]. Em 4 anos, como a Blitz fez MUITO sucesso, éramos como uma espécie de Justin Bieber no auge, à época. Chegávamos nos lugares e havia multidões gritando nossos nomes, tocávamos em estádios de futebol, rapidamente tivemos que aprender a lidar com as pressões. E ao mesmo tempo aprender como fazer porque não havia muita estrutura de luz, palco, som. Vi o surgimento de equipes, de empresas. A Blitz foi uma puta escola e foi uma experiência muito divertida porque eu não era a líder da banda, não tinha o peso que o Evandro tinha, apesar da certa relevância. Eu e Márcia [Bulcão] imprimimos uma estética que ajudou a equilibrar o peso dos integrantes. Recomendo o documentário [Blitz – O Filme] que saiu, acho que ele corrobora que as lembranças que tenho são sempre muito positivas. Muito trabalho, muitos shows, muito Chacrinha!
A Blitz, inclusive, foi galgando espaços cada vez maiores: o Circo Voador, a Praça da Apoteose, o Rock In Rio… Muito prestígio.
Exato, e nós estávamos no auge… imagine um Rock In Rio com 250 mil pessoas. Foi muito louco. Foi legal Evandro ter a ideia de colocar aquela bola gigante que chutou pra plateia. Foi um show apoteótico. Tocamos na noite do Queen e do Rod Stewart e me lembro que as bandas gringas vieram perguntar ‘Quem são esses caras, que a galera incendeia?’. Abrimos as portas do mercado, o primeiro single jovem daquele momento foi ‘Você Não Soube Me Amar’ e, logo que viram que dava certo, começou a se formar uma cena consolidada de música jovem brasileira nos anos 1980, com Paralamas, Kid Abelha, etc.
Você é virginiana, ficou um tempo estudando após o fim do grupo e chegou a negar um contrato para fazer um disco de rock. Por que recusou?
Sim. Quando a formação original da banda se desfez em 1986, todos os executivos de gravadora vieram falar comigo pra me contratar, especialmente o diretor artístico da EMI. A questão é que eu não tava me sentindo tão segura, queria ter liberdade, não queria fazer ‘o que o cara da gravadora iria me propor’. Precisava compor minhas próprias canções, ver qual era o tipo de repertório que eu queria. Levando em conta que isso aconteceu em 1986, certamente iriam me colocar pra cantar o que rolava à época, que era um som pop rock. A minha praia era outra… funk, soul, música black. Eu queria começar com um trabalho pessoal, autoral e que fosse interessante. Como resposta me disseram: ‘Toma cuidado pras pessoas não te esquecerem, tem que aproveitar e não perder as oportunidades’. Preferi arriscar. Estudei guitarra, canto e comecei a pensar no som que eu queria fazer, partindo de perguntas muito básicas como quem sou eu, o que gosto, o que quero comunicar, o que acho que sou boa. Aí encontrei a veia da dança! Ganhei uma bateria eletrônica, comecei a trabalhar o meu som, que era uma mistura de música com tecnologia, sequências e programação e como resultado compus 4 músicas. Gravamos e voltei depois de 4 anos até a sala do mesmo executivo. Lembro que ele disse: ‘Esse som é muito diferente do que a gente tá acostumado, não sei que mercado é esse. Faz aí e seja o que deus quiser’. Foi ótimo porque não sofri interferências.
Com o LP nas lojas, acompanhou o que saiu na mídia? Lembra como foi a repercussão? Tem artista que não curte muito essa coisa de fazer egosearch.
[Risos] Eu lembro e foi genial. Quando ele saiu, a gravadora se mostrou super insegura em relação ao que era aquele som, questionavam o que as pessoas iam achar, como ia bater no público. A primeira pessoa que deu aquele avalzão, aquela carimbada, foi Zeca Camargo, que era repórter da Folha de S. Paulo. Na ocasião, meu disco foi capa do caderno Ilustrada. Acho que naquela época muitos outros jornais do Brasil meio que copiavam a Folha e começou a pipocar em todos os locais. Eram resenhas feitas meio que em cima daquela parada assinada pelo Zeca. Jornais de Manaus, Maceió, Fortaleza me procuravam… Logo na sequência, montei o show e fiz a estreia no Morro da Urca, com apresentações em 2 fins de semana. Eu tava sempre na TV, especialmente com “A Noite”, que é uma faixa mais agitada. Tinha umas backings, os shows enchiam. Consegui botar no palco aquilo que eu tinha feito no disco. Lembro que comprei um AKAI, que era um sampler tradicional da época, e tinha um musico só pra tocar isso. Também rolava um cenário de projeções que fazíamos com slides por meio de um carrossel. Não era do seu tempo [risos]. Eu colocava Bruce Lee na tela pra cantar “Kung Fu Fighting”…
Por ter bancado isso, você é uma pioneira. Como recebe esse título?
Cara, isso foi acontecendo com o tempo. Quando me lancei em carreira solo todo mundo falava que era inovador, etc, mas quando veio o trabalho seguinte, “Sla 2: Be Sample” (1992) as pessoas começaram a questionar se eu não era um talento de um disco só, se passaria pelo que chamavam de “prova de fogo”. Com a estreia de “Jorge de Capadócia” e “Rio 40 Graus”, que são musicas fortes, e os discos “Da Lata” e “Raio X”, eu me consolidei. Levou um tempo pra eu ser chamada de ‘Mãe do pop’, acho que só aconteceu mesmo porque realmente se passaram 30 anos. Em 2016, quando lancei “Amor Geral”, todas as matérias faziam referência a mim dessa forma. Acho que foi a longevidade da carreira que eu tive, sinto que a mídia precisa que a pessoa fique um tempo ali mostrando um serviço pra poder dar um título como esse.
Você sempre cita duas pessoas fundamentais na concepção da sua obra, que são Fausto Fawcett e DJ Marlboro. Que lugar eles tiveram na criação de “Sla Radical”?
O Fausto é um gênio, meu parceiro mais constante. Eu diria que o acho o melhor escritor da minha geração, sem a menor sombra de dúvida. Nós dois fazemos música à moda antiga, é uma verborragia que vamos filtrando até chegar em algo que curtimos. Já Marlboro é uma parceria incrível, fiquei muito amiga a partir do meu interesse no funk carioca. Não sou funkeira porque eu nasci na classe média, no asfalto, no Jardim Botânico, mas eu sempre estudei em escola pública, circulei por ambientes muito misturados. Quando eu o conheci em 1989 passei a ir a todos os bailes que ele estava e acabei acompanhando de perto todo o processo dos 30 anos do funk raiz. Depois vi o funk sensual de Tati Quebra Barraco e Deize Tigrona, o bonde do vinho, o funk melody, os proibidões, o funk putaria. E só então o funk ostentação. Marlboro tá comigo sempre. É a figura mais importante do movimento hoje.
Suas composições chamam a atenção porque são extensas, narrativas, carregadas de referências. É um reflexo dessa alma multifacetada que o Rio tem?
Sim. Faz super sentido o que você diz porque veja, um dos clássicos que a gente compôs, “Rio 40 Graus”, é uma faixa que acabou saindo do nosso domínio na seara musical e indo parar no jornalismo, no cinema. Uma viagem, uma crônica da cidade, separada em 3 approachs. O primeiro é uma espécie de apresentação da síntese da cidade. Uma cidade maravilha mutante, com um DNA que contém o melhor e o pior do Brasil. Um espaço misturado, camuflado e cheio de comandos e comandos, com muita contravenção, algo que existe desde a corte portuguesa. A segunda parte fala de um sentimento de pertencimento, sobre a necessidade de o carioca se ligar em quem está votando, no próprio nível de gentileza. E o terceiro mote, que fiz muita questão de colocarmos, demorou um pouco mais pra acertar. É o que cito a novidade cultural, da garotada favelada, da informática que metralha. Ali em 1992 estávamos vendo um armamento pesado subindo nos morros cariocas. As facções criminosas estavam investindo em AK-47, AR-15, fuzis… era um negócio impressionante, e ao mesmo tempo o funk despontava com uma força onde era o reduto do samba. Brincamos com essa história, que era a história do rio metralhando um funk, uma música eletrônica, no que antes era um reduto só da música orgânica. Não deixa de ser o hoje, ainda temos favelas com muito armamento, ainda temos o funk dominando a música eletrônica, junto ao samba, os bicheiros, o caos… Rio de Janeiro né?
Brasil, eu diria.
Exato! Percebemos que o Rio era de uma certa maneira uma síntese do Brasil em termos de desigualdade, contradição, maluquices. Agora sinto que o carioca tá um pouco diferente, a gente apanhou muito nos últimos anos, a parada tá mais densa. Quando eu era mais jovem, o Circo Voador, o Arpoador e a praia era um negócio mais paz e amor… Hoje tem uma coisa mais raivosa, um discurso fascista, coisa que nunca se podia imaginar. A mesma cidade libertária onde caminhava Leila Diniz de topless… É impressionante.
Seus primeiros discos mergulharem de cabeça na música eletrônica e contribuíram com a popularização do uso de samples como ferramenta de criação. Como ele chegou até você? Deu medo de se meter em encrenca por conta dos direitos autorais?
[Risos] Quando eu tava com o [produtor] Liminha mixando meu primeiro álbum, “Sla Radical Dance Disco Club”, chegou até nós um sequencer, equipamento em que você podia gravar até 10 segundos de qualquer coisa, usando qualquer sample. Fomos pro estúdio da EMI e começamos a samplear tudo, tudo tudo. Lançamos tranquilamente e eu não senti medo porque não havia uma legislação até então, era uma super novidade. Mas no segundo disco usei isso de uma forma mais suave. O sample pra mim tem um significado da reinvenção do que já existe. A Yoko Ono certa vez falou sobre isso, mencionando a reinvenção de materiais que já estão ali, a realocação e a criação de algo novo. O Brasil, acredito, faz isso muito bem com a antropofagia de coisas do mundo, ao engolir e vomitar conteúdos de outra maneira. Bem, a partir do Da Lata eu fiz tudo by the book, fiz alguns samples, mandei a carta, paguei. Mas me cansei porque é muita burocracia. Agora eu acho que hoje já ficou meio definido. Veja, por exemplo, o hip hop. É seguir o trâmite, dar autoria e tá tudo certo.
“Sla Radical” saiu no mesmo ano em que “Blond Ambition Tour”, espetáculo mais famoso da Madonna, um show revolucionário. Vocês têm muito em comum, uma vez que ela também é filha das boates, da noite. Artisticamente, o que ela simboliza pra você?
Adoro a Madonna. Pra mim existe uma tríade, ela, Prince e Michael Jackson. Eles são minhas referências de palco, música, dança, mas acho a Madonna dona de uma vibe mais musical da Broadway, ela bota essa parada no show com muitos bailarinos. Não existe mais julgamento pra ela, já provou tudo que tinha que provar. É uma artista que sempre trouxe muitas novidades, trouxe o voguing de volta. Pegava o que tava no undergound, jogava uma luz e dava voz aos marginalizados. Admiro também enquanto pessoa política por ter sido sempre muito libertária, feminista, a favor das minorias. Mas sabe de algo curioso? Uma história pra você: eu lancei uma música chamada “Baile da Pesada”, do CD “Entidade Urbana” (2000), que falava “Hey Mr. DJ, quero nitroglicerina”. Semanas depois ouço o novo single da Madonna, “Music”, em que ela abre dizendo “Hey Mr. DJ, put a record on”. Eu lembro de ter virado e dado graças por ter saído antes, todo mundo teria me acusado de plágio. Eu estaria ferrada até hoje (risos).
Madonna, Prince e Michael Jackson ganharam uma projeção ainda maior por conta de sua relação com a dança. Você é bailarina profissional, fez parte de duas companhias antes de investir na carreira de cantora. Qual é o seu vínculo com o balé ainda hoje?
A dança entrou na minha vida aos 9 anos de idade porque eu tinha um joelho pra dentro. Tive que usar botinha ortopédica, até que alguém sugeriu que me colocassem no ballet. Fui me descobrindo, minha mãe nem tinha grana pra me colocar na academia da [coreógrafa] Tatiana Leskova, mas soubemos que ela dava aula num espaço solidário e foi lá que comecei. Fiquei fazendo ballet, foi paixão à primeira vista e depois de anos me dedicando existia uma possibilidade real de ser uma bailarina clássica. Mas aos 15 anos… surgiu aquela coisa de adolescente. Eu era bem magrinha e via todas as minhas amigas bonitas, gostosas, com peito. Eu sempre era a menorzinha, que segurava a bandeira à frente das garotas já formadas no colégio. Mas fui fazendo fitas K7 e levando pras festas, rodopiava no salão… assim consegui meu primeiro namorado. Em resumo, a dança me salvou em vários aspectos, foi um aprendizado inclusive de disciplina. Sendo tudo muito rígido, exige aprimoramento, humildade. Você está pra ser genial, mas nunca será.
Você conseguiu não só criar um novo jeito de fazer música, mas também abriu portas pra muita gente. No “Roda Viva”, em 1995, você disse que o Brasil não valorizava muito bem sua identidade nacional. Reavalaria essa fala hoje?
Eu me lembro que naquela época a juventude dos anos 1980 tinha uma cabeça muito ligada a Londres e Estados Unidos. Aqui Legião Urbana era tratado como o The Smiths brasileiro, os Paralamas eram considerados o The Police brasileiro. Os Titãs, por sua vez, eram relacionados aos Ramones. Tinha que comparar pra legitimar. Já nos anos 1990, eu acho que a minha geração, que conta também com Lenine, Chico Science e Carlinhos Brown, conseguiu imprimir um pouco mais da identidade brasileira por meio do uso de instrumentos como cuíca e tamborim, e de movimentos como o maracatu e a embolada. Trouxemos um molho mais brazuca pra composição do groove e do beat. Depois isso continuou com Planet Hemp, com O Rapp. Hoje a música pop tem um lado bem brasileiro que está centrado no funk, algo essencialmente nacional. Hoje a gente tem uma mistura, o funk tá bombando como nunca, vc tem funk no sertanejo, no pagode, no pop. Claro, ainda existe um preconceito estrutural, que é algo típico do racismo, porque o gênero ainda é feito por pessoas pobres, de periferia, muitas vezes pretas.
Muito se fala sobre a marginalização do funk enquanto movimento artístico. Você, enquanto artista pop, contribuiu pra que esse som rompesse uma série de barreiras. No ano passado, recebeu o convite para se apresentar no Rock in Rio ao lado de Buchecha e Ludmilla em um tributo ao gênero…
Foi incrível! Passa um filme na cabeça porque acompanhei muito de perto esses 30 anos. Vi cada acontecimento em que o funk foi criminalizado, como as pessoas sofreram, como muitas perderam a carreira e a vontade de continuar fazendo. Esse é um som altamente vigoroso, potente, uma expressão genuína de gente. Eu sempre defendi muito, até me coloquei em situações delicadas em alguns momentos. O ‘Proibidão’, por exemplo, dizia-se que era apologia ao tráfico de drogas e eu retrucava. ‘O funk não tá ali a serviço do tráfico de drogas. O funk é a expressão dos morros cariocas’. O tráfico também tá lá nesses espaços e as pessoas tão compondo a própria realidade. Quer mudar o funk? Então temos que mudar o Brasil. Acho que o principal é aceitar e ser tolerante. Pensar que estamos em 2020 e aprender, evoluindo sempre. Se formos contra isso, estamos nos colocando em quadrados. Temos que lutar contra a caretice.
O seu interesse pela black music é outra coisa que chama a atenção. Como foi a descoberta da cultura black pra você, sendo uma menina branca que viveu na Zona Sul?
Isso é tão orgânico pra mim… Meus pais sempre gostaram de música preta, iam ao samba regularmente. Meu pai era um português que tocava cuíca e minha mãe, carioca, tocava ganzá, carioca, amava o samba. Com a minha primeira mesada, aos 10 anos, comprei um compacto de “ABC”, do The Jackson 5. Nem imagino minha formação musical sendo dissociada da música negra. A minha influência sempre foi música negra, que é muito linkada com a dança, desde o surgimento do jazz americano, o rhythm and blues… Um dos meus primeiros ídolos foi Tim Maia. Não entro nesse papo limitante, que quer colocar as pessoas em caixas.
Estamos todos fazendo planos pro futuro pós-pandemia, e você planeja dar início a uma grande celebração dos 30 anos de carreira. Como vão ser as comemorações com o público? Vamos dançar e barbarizar?
Cheguei a fazer cerca de sete ensaios pra um show de 30 anos, que colocarei na estrada assim que for possível, mas também há um disco com remixes de faixas minhas dançantes chamado “Fernanda Abreu: 30 anos de Baile”. Tô fechando, é um agradecimento aos DJs por ser a primeira figura da música pop dançante brasileira que eles abraçaram. Também lanço ainda agora na quarentena uma coletânea de baladas chamada ‘Slow Dance’. Deve sair provavelmente final de agosto, início de setembro. A ideia é aproveitar esse momento em casa e reunir todas as baladas do catálogo em algo mais intimista. O material traz ainda uma inédita, que vai puxar o restante, gravei ‘Dance Dance’, que fez parte do show ‘MTV Ao Vivo’. Acho que os fãs vão curtir.
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“Sla Radical Dance Disco Club” está disponível em todas as plataformas de streaming.
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