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“Não existe escapatória pro homem sem a cultura”, diz Lenine em entrevista ao Papelpop
Em abril de 2004, Lenine recebeu um convite para tocar no Cité de La Musique, uma das casas de cultura mais célebres da França. Tempos depois, a repórter Véronique Mortaigne, do jornal Le Monde, descreveria o artista em cena como dono de um “jeito singular de revolucionário rude, cabelos longos e jogos de palavras com umas boas piadas políticas intercaladas”.
Foram duas noites marcadas pela já visceral performance deste célebre brasileiro que, vestido de glória, interpretou um set de canções inéditas. Todas ela, detentoras de uma rareza dual, lírica e sonora. Ao lado de Lenine estavam dois músicos latino-americanos que o ajudaram a impulsionar sua força narrativa: a cubana Yusa e o argentino Ramiro Musotto. Desse encontro, surgiu o disco “In Cité”.
Lançado em janeiro do ano seguinte, o projeto ganha nesta quinta-feira (25) uma edição especial e remasterizada, compartilhada a priori apenas nas plataformas digitais. Além de clássicos como “Do It”, “Caribenha Nação” e “Relampiano”, a dita versão estendida entrega ainda 8 faixas não publicadas até então.
“Foram dias inesquecíveis”, conta Lenine, por telefone. Conectado às minúcias da palavra, as quais diz constituir metade do próprio trabalho, o artista, três vezes vencedor do Prêmio da Música Brasileira, revela conceitos de subversão criativa e rejeição aos moldes da indústria. “Quis agregar um valor maior ao espetáculo e por isso decidi que não sairia em turnê com aquela formação original”.
A entrevista completa, que trata ainda da importância da cultura na formação pessoal, isolamento social e o mau estar que se instalou na sociedade brasileira, você confere abaixo.
Papelpop: A Cité de la Musique é uma das casas de shows mais respeitadas da França. Ter tocado lá nesta ocasião foi um momento importante, especial. Que recordações você tem daquelas duas noites?
Lenine: Ah, são muitas! (risos) Tivemos o convite por parte do Cité, em um projeto anual chamado Carte Blanche, em que eles abrem esse lugar, voltado majoritariamente para trabalhos acadêmicos, para uma ‘carta’ de apresentação da música popular. Feito isso, o único pedido por parte do Cité era que trouxéssemos músicas inéditas. O ano era 2004, mas em 2000 eu tinha feito uma apresentação lá por ocasião do Festival de Cinema da ilha de Cuba, a convite da orquestra do músico Roberto Carcassés. Por ele conheci a Yusa, que era contrabaixista da orquestra. Fiquei apaixonado pela figura, não só pela musicista, mas também pela compositora, arranjadora, criadora. Naquele momento eu já vinha há muitos anos percebendo a importância da língua porque 50% do que eu faço tem a ver com as palavras que uso. Já tinha a certeza de que quando tocava nos lugares de cultura latina eu era infinitamente melhor compreendido. Quando fui ao Cité com um trabalho inédito quis espalhar de alguma forma essa importância latina, essa importância da palavra diante do trabalho que exerço. Um pouco tempo antes o Ramiro [Musotto] tinha lançado um disco belíssimo chamado “Sudaka”, produzido por ele mesmo, imaginei que seria um triângulo interessante. Quis fazer um encontro pan-americano, um argentino, uma cubana e um brasileiro. Tivemos 2 semanas de ensaios no Brasil e desde o início eu quis agregar um valor maior ao espetáculo. Por isso decidi que não sairia em turnê com aquela formação original. Queria que apenas o registro acontecesse e fomos pra França, pra Paris, e lá tivemos dois dias inesquecíveis. E digo inesquecíveis porque houve muito trabalho, muito aprofundamento, eu e minha esposa fomos quem produzimos, houve uma mecânica no fazer muito intensa. Foi bastante trabalhoso (risos) e isso evidentemente fica na memória da gente.
Nós temos visto nomes como Marisa Monte, Radiohead e outros compartilhando com os fãs uma série de discos, registros de shows, materiais inéditos que ficaram guardados por anos. O relançamento de “In Cité” inclui 8 faixas inéditas, é possível dizer que mais conteúdos do gênero chegarão no futuro?
Não… O que acontece no caso do “In Cité” é que existe uma questão um tanto filosófica. Imagino que pra todos ficou evidente que o DVD por ter surgido dentro do universo da indústria do disco, do CD que era o auge naquele momento, era como um subproduto. Ou seja, você faz um disco e o lança, isso gera um show homônimo e depois de um ano de trabalho você captura aquilo e lança como um DVD. Isso foi quase que como uma regra…
… Uma regra que todos os artistas seguiam com regularidade. Algo bastante previsível.
Sim! E isso sempre me incomodou um pouco por perceber que quando você associa imagem e som, essa é uma parceria muito intensa e talvez a junção dessas duas coisas gere um produto infinitamente mais interessante do que meramente um CD, a captação do áudio. Então o “In Cité” teve essa iniciativa de tentar subverter a ordem natural das coisas. Eu já fiz o DVD sabendo que não sairia em turnê, portanto, buscando agregar um valor especial àqueles dois dias que aconteceram e a captura de som e imagem que fizemos… Além do mais pensei ‘Pô, quando você faz o DVD de um disco na verdade trata-se de um show homônimo ao disco’. Selecionamos 10, 12 canções, enquanto o show com certeza tinha o dobro. É o que gera 1h e meia de espetáculo, aproximadamente. O show em DVD de um determinado disco conta também com um seu repertório. Na época do lançamento saiu o disco, mas apenas com as faixas inéditas inseridas no show, por conta do ineditismo embora o espetáculo todo fosse a mola mestra do projeto. Existiu um viés de como usar esse produto, sabe?
Você menciona a conexão existe entre o público de língua hispano-americano. Quem escreve o texto de apresentação do disco é Véronique Mortaigne, jornalista do Le Monde. Como é pra você ver o público francês responder tão bem à música brasileira, ver esse respeito que existe com a nossa cultura?
Que bacana sua pergunta, porque me permite falar independente desse interesse que eles têm pela música brasileira de uma maneira geral. Pra mim a França se transformou em um segundo país. O fato de ter esse ar meio bretão (risos), talvez tenha causado esse tipo de interesse. O fato é que meus discos não saíam em fileiras da música popular brasileira, lá eu frequentei o mercado do rock contemporâneo. Isso diz muito sobre como funciona a indústria da música na França. Passei a frequentar, realmente, uma França profunda. Passei a fazer turnês extensas, por mais de 30 cidades, coisas que eu só fazia no Brasil. Veja você a dimensão que temos enquanto país. Desde o lançamento de “Olho de Peixe” (que estreou no exterior em 1995), naquele momento, eu percebi esse diálogo que havia. Isso fez com que me aproximasse pelo universo da francofonia e da ‘latinofonia‘, em que eu me reconheci muito. Além disso, existe a figura histórica do trovador, que é aquele cara que no século XI saía de vila em vila, de cidade em cidade, só com o seu instrumento rústico, cantando o que via, como um repórter do seu tempo. Essa figura é originária da França, do que chamavam antigamente de Occitània, uma região do país em que surgiram também os primeiros registros que temos da redondilha maior e dos versos desses trovadores que datam do século XI. Houve essa confluência de significados pessoais e esses significados tem muito a ver com esse tipo de interesse que causou a música que faço e o meu trabalho ao longo dos anos na França.
E o que você costuma ouvir de música francesa?
Ah, eu ouço todo tipo de música, cara. Tá aí uma coisa coisa que a linha de trabalho que eu adotei desde o início me deu. Me aproximou de uma música contemporânea, plural, mista, meio predatória (risos) e planetária que acontece no mundo todo. Na década de 1990 a indústria do disco inventou o nome chamado World Music pra definir tudo aquilo que não era cantado em inglês. Mas World Music, como se houvesse Mars Music ou Jupiter Music… tudo é música do mundo. Naquele momento cresciam de uma maneira exponencial os festivais de música do mundo e me adaptei muito a esse universo. Passei a viajar a partir de 1995, tocando em muito países. Isso foi reafirmando cada vez mais essa condição plural que minha música tem, misturada a coisas significativas culturais de minha região e também de coisas que tem a ver com antena e não com a raiz. O mundo ficou mais perto, as coisas não ficaram tão distantes como pareciam. Meus discos sempre foram uma maneira de efetivar e reverberar isso, cada álbum que fiz reuniu pessoas com as quais eu nunca tinha tocado, mas que eu tinha um interesse, um desejo de dividir alguma coisa. Bem, eu conheço muito da música francesa mais clássica, que vai de Édith Piaf, Charles Aznavour, toda essa tradição da chanson française, mas também uma música mais cultural e uma música do mundo que teve seu grande palco em Paris. Pra você ter uma ideia, a Cesária Évora não aconteceu em Portugal, e sim, na França. O jazz na décadas de 1940 e 1950, quando os Estados Unidos ainda não o reconheciam como uma grande expressão, acabou se refugiando lá também. A primeira turnê de um grupo brasileiro, o de Pixinguinha, foi pra França. Já existe esse interesse e de alguma maneira, até antes da II Guerra Mundial, éramos todos franceses. Gosto da música do mundo e a França não é uma exceção, até por ser um polo mundial de música. Lá também pude conhecer música árabe, africana, moura…
Lá existe uma confluência de gêneros e sons vindos de várias partes do mundo. A localização permitiu que isso acontecesse de forma muito fluida, assim como é na Espanha, que também preserva muitas culturas na própria essência…
Sim! Na verdade, na Europa é tudo muito próximo. As principais capitais receberam de alguma maneira todos esses imigrantes e, veja bem, estamos falando de imigração! Essa imigração cultural terminou impregnando cada região em que chegou, sendo causadora de todo um hibridismo. No Brasil já somos fruto disso, já começamos assim e imagino que o francês visualize um futuro, tenha um desejo de ser como somos. Claro, antes da pandemia e do pandemônio. Vivemos agora uma distopia, essa realidade que não é a realidade, embora seja. Estamos numa Idade Média, parece que voltamos a um obscurantismo medieval.
Ao mesmo tempo em que falamos sobre uma apresentação gravada na Europa, temos também a latinidade expressiva. Neste show você tocava com a cubana Yusa e o argentino Ramiro Musotto. Como enxerga essa confluência de músicos hermanos? Noto que nós, brasileiros, volta e meia nos referimos ao outro como “latino”, como se fôssemos diferentes.
O próprio francês é latino, o romeno também… A construção de raciocínio, mesmo no italiano, é igual à nossa. Por isso que eu falo que mesmo cantando na França ou na Itália ou na Romênia, as pessoas capturam, sim, a maneira com que construo as frases. Isso é capaz de fazer qualquer um, pela intuição, entender 50%, 60% do que estou falando. Pude comprovar ao longo dos anos. Evidentemente, quando estou tocando na Ucrânia ou no Japão, eu perco essa porcentagem de compreensão proporcionada pela palavra.
O que não faz com que a experiência perca sua força.
Aí vira o gatilho e o anzol, exclusivamente, da música, do que ela consegue capturar na alma do outro. Quando me veem no palco, executando aquelas canções… eu acho que muito da compreensão da palavra está associada ao corpo, às expressões faciais, ao som das palavras… que por sua vez geram um tipo de compreensão pra quem assiste. Mesmo alguém que não teve a formação latina de raciocínio vai entender alguma coisa, sim. Sempre entende. Lógico, existe um auxílio maravilhoso que é o som, através da música você dá significado a palavras que podem soar estranhas pra alguém que não conhece o idioma, mas quem estuda um pouquinho sabe. A etimologia das palavras se une em algum momento e ali existe uma compreensão. Ela pode ser mais profunda, ou mais rasa, mas sempre uma compreensão a partir da raiz.
Eu diria até que essas pessoas não só entendem, como também experienciam algo.
Sim, e mais! Se isso servir de estímulo pra alguém querer entender um pouco da língua portuguesa, eu tô ganhando de novo (risos)
Você trabalha muito bem com o ao vivo, falamos até sobre essa coisa de subverter formatos pré-estabelecidos pela indústria. Até onde sei, sua agenda tinha shows marcados até maio deste ano. Todos, obviamente, foram adiados pela pandemia. Tem sentido falta dos palcos?
Ah, muito. E me dói perceber e ter a compreensão de que fomos os primeiros a sermos tocados pela pandemia e seremos os últimos a sair dela. O fator aglomeração é fundamental no tipo de trabalho que a gente faz. Tá sendo um momento muito profundo de desconstrução, sabia? Acho até que a gente ainda não tem a dimensão do quão já foi transformada a psique humana por causa desse isolamento forçado. E lógico, que a música, como qualquer outra área de atuação, vai sofrer com isso. Sim, eu sinto muita falta do ritual que existia pra se realizar um show porque isso tinha a ver com uma urgência do agora, do acontecimento naquele exato momento e que reverberava sempre a alma do outro que tava ali na sua frente te assistindo. Era um somatório dessa energia que chegava a uma apoteose, saindo todos satisfeitos daquele momento que partilhamos. Existe um ritual, com expectativa, realização. É como uma cebola que você vai descascando e entendendo, uma música, depois outra, o que se fala, toda essa compreensão que envolve essa grande celebração que é um show. Cada show que fiz, cada projeto, fiz pensando que a cada nova audição podem descobrir uma nova coisa. Meus trabalhos trazem muitas referências e isso eu conto porque as pessoas vão descobrindo. Quando se dá o show, tenho a certeza de que estou ali recebendo essa resposta. É o momento mais importante porque o retorno é muito verdadeiro. Imagine, alguém viciado nesse tipo de troca ser privado dela? É difícil.
Muito tem se falado sobre produzir durante a quarentena, ou não produzir, porque psicologicamente é um período denso. Como tem funcionado pra você, que também é compositor? Como observa a importância de se produzir arte agora, em meio à pandemia?
O importante, talvez, seja você descobrir os estímulos. O ser-humano vive de estímulos. Em momentos como este tem sido difícil descobrir estímulos, mas por outro lado tem uma coisa muito bacana que esse isolamento social obrigatório tem me proporcionado. Ao longo da vida… Sou um cara acumulador, muitos livros, discos, vinis, muita poesia, muito filme… Tudo em demasia. A gente vai levando porque a gente quer ter aquilo por perto. Mas muitas vezes a gente não vê muito. A pandemia me deu essa possibilidade de me reapropriar as coisas, de ser meu, de tornar a me tocar a alma coisas que li há 20 anos. Tem sido um momento muito bacana de me reapropriar do meu passado, de livros, de discos, de minhas canções. Tem faixas que pelo fato de você não tocar, vão ficando ali como num arquivo oculto, que se você não cultiva aquilo ali pra ter a senha sempre, pra na hora que precisar acessar o arquivo, isso se perde. Então também na pandemia pude fazer isso, me reapropriar de minhas canções.
Achei curioso você comentar isso. Me lembrou de uma fala da Rita Lee, que disse nas memórias dela jamais ter escutado os próprios discos após ter finalizado a mixagem. Você tem esse hábito?
É, não posso ouvir não. Sabe por quê? Disco é uma fotografia. Tem um momento de ver uma fotografia velha. Por mais que não seja pra quem tá vendo aquela foto pela primeira vez, pra quem fez a foto, você lembra do dia, da luz, se choveu ou não, com que roupa você tá. Tudo aquilo corrobora. Eu tenho na memória sempre a alma das canções. A maneira com que as vesti não é muito importante (risos). Se é que é muito fácil entender.
Lá atrás você disse que a palavra corresponde a 50% do que você faz. Dentro disso, obviamente, estão composições com um viés político mais aflorado. Agora está em curso um processo de desmonte e demonização da arte, das produções culturais, de tudo que possa se opor ao conservadorismo. Que papel desempenha a palavra, escrita ou cantada, neste momento?
Ah… O papel da palavra escrita ou cantada é muito importante. Mas mais importante do que isso é a cultura. A cultura é um acúmulo de sabedoria, uma ferramenta que você tem pra tocar a alma do outro, sem a necessidade de palavras às vezes. Então o que eu gostaria de reverberar muito com você é que sem cultura não existe futuro. A cultura é o que nos faz, nós somos, o que somos, pelo acúmulo de conhecimento e culturas. Não existe escapatória pro homem sem a cultura. Por isso acho que vivemos uma distopia jamais imaginada. Se você me entrevistasse há 15 anos e me descrevesse os tempos de hoje, eu diria que isso era impossível. Eu ia dizer que a humanidade já tinha exorcizado a idade média. Eu ia dizer pra você que não, que a gente tava num caminho lindo de lucidez e iluminação. Eu ia dizer que pela primeira vez na história da humanidade existia uma turma do bem que tava fazendo pender a balança pra um caminho mais coletivo. No entanto, apesar de toda essa certeza, estou hoje, eu aqui, dizendo que não acredito no que estou vendo. É impossível imaginar tamanho obscurantismo. Impossível imaginar pessoas que ainda defendem esse tipo de política de esfacelamento, de um objetivo em coletivo. Ora, eu me criei pensando no outro, me criei perguntando o que posso fazer pra poder melhorar o que está em volta de mim. Assim meus pais me ensinaram. Isso hoje em dia significa ser comunista. Eu sou comunista, eu penso no coletivo. Se isso significa ser, não tenho medo dessa palavra. O que reverbera pra mim a vida toda é que o planeta é único, que pela primeira vez na história desse planeta um ser super povoou esse planeta, as atitudes desse ser estão mudando o equilíbrio muito tênue e frágil e esses seres não tão nem aí pro que tá acontecendo.
Um pensamento que não é recente…
Sim. A gente tá falando isso há muito tempo, não é de agora. Lembro da [conferência] Eco92, no Brasil. Hoje vemos um negacionismo desenfreado, uma sistemática mecânica de destruir tudo o que é honestamente humanitário, que busca igualdade. Somos melhores do que isso.
Também me surpreende muito a ausência de pensamento crítico, que faz com que se reproduza ideias que na verdade são máscaras, táticas de persuasão pra que se estabeleçam pensamentos obscuros.
Isso, muito mal. E isso é cretino também. Essa palavra, cretino, vem de uma região da França que sofreu uma epidemia de bócio [Aumento anormal da glândula em forma de borboleta abaixo do pomo de Adão] deixou como sequela as pessoas um pouco deficientes. Isso virou uma expressão, “pobre cristão”. Vem de “creton“, aquele que está esfacelado. Essa sensação está muito presente no que estamos vivendo e me preocupa muito o grau de dissimulação que as pessoas estão praticando em tudo. Fala-se algo e faz-se outra coisa. Eu fui criado com o seguinte pensamento: o que você tem é a sua palavra, o que você tem é a sua atitude. Cada pequena atitude, cada pequeno gesto, revela o que você é. É um pouco desesperançoso constatar o tempo que vivemos.
Como ativista, não posso deixar de perguntar. Nós estamos à beira de um colapso ambiental, que diz respeito não só a uma tragédia envolvendo a destruição irreversível da Amazônia, mas também a mortalidade dos povos indígenas por conta do avanço da Covid-19, por falta de políticas públicas que garantam a segurança e o bem-estar dessas pessoas. Como você tem recebido essas notícias?
Muito mal. Até porque a primeira coisa que esse governo inescrupuloso fez ao assumir foi destruir todos os órgãos de fiscalização que tínhamos. Ele fragilizou todo mundo. Ora, isso, sempre imaginei que sempre que está responsável pela preservação do meio ambiente, que assume cargos importantes, é alguém que pensa no ser-humano. Um biólogo é talvez um ser mais humano do que um humano comum (risos) porque tem na sua vida esse grande estímulo de preservar e de tentar deixar o planeta melhor do que o que ele encontrou. Essa turma precisa ser mais visível. Parece que toda a turma que propaga o bem sofre de uma invisibilidade atroz, parece que só é furo o que é o ato de um crápula, só é furo o que é morte, o que é dor, o que é sangramento. Só o que traumatiza é o que dói. É do ser-humano isso e precisamos aprender a reverberar a beleza, os grandes feitos, precisamos ser celebrativos. O fato de estarmos vivendo um tempo efêmero, porque está correndo, tal qual a vida. Não podemos perder tempo com pequenas coisas. Tudo isso é tão impensável, a gente viver e ser bombardeado por tanta hipocrisia e dissimulação que eu tenho impressão de que isso vai ter um acúmulo de frustrações. Não existe uma normalidade pra voltar. Nesse sentido a gente precisa saber quem é quem e é nos pequenos atos que fazemos uma grande transformação. Se boicotarmos cada um dos empresários que sabemos que tem as posições que tem, a gente faz isso no dia a dia. De alguma maneira estamos buscando formas de conscientização, o isolamento também tem forçado as pessoas a pensar um pouco mais sobre as coisas. Ou pelo menos… eu sou um romântico que acredito piamente no ser-humano. (risos) A gente precisa polir e seguir os nossos sonhos.
Na letra de “Vivo” você constrói um jogo de palavras que diz “Precário, provisório, perecível”. Vendo tudo o que acontece nas esferas política e social, você nutre uma esperança, consegue ser otimista?
Eu sou um ser esperançoso, sim. E acho que os esperançosos não mudam assim, podem até ficar algum tempo taciturnos, macambuzios (risos), meio soturnos… mas nunca perdem esse estímulo e essa energia motivadora. Acho que não vai ter volta, vamos enfrentar novas realidades, a cada dia vai ser uma realidade diferente, o ser-humano tem essa capacidade maravilhosa de adaptação. Mas precisamos perseguir o caminho coletivo, tem que ser bom pra todo mundo. Bom pro maior número de pessoas, o que nos leva a rever histórica e politicamente algumas questões. Quem tem que pagar mais imposto? Quem tem mais. A pandemia pode nos servir como ponto de partida pra descoberta de soluções pra realidade que existe. Todo mundo vai ter que ser solidário, imagino eu.
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