Batemos um papo com Jup do Bairro, por chamada de vídeo, na sexta-feira que antecedeu o lançamento de “Corpo Sem Juízo”, primeiro EP da carreira da artista. De longe um dos discos mais aguardados da cena nacional deste primeiro semestre de 2020, o projeto é resultado de treze anos de experiências e descobertas vividos pela cantora que desde 2015 tem construído uma fiel comunidade de fãs junto a artista Linn da Quebrada, com quem divide os palcos de turnê e a tela da TV.
Com cinco faixas inéditas e produção de Badsista, o material é uma amostra da genialidade de Jup enquanto intérprete e compositora. Não é brilhante só por isso, mas também pela curadoria de participações especiais: há featurings com Deize Tigrona, com os amigos Linn e Rico Dalasam, além de Mulambo, potente rapper paulistano.
“O álbum é como uma grande viagem. É como se você estivesse num jogo de videogame e cada faixa é uma tela diferente”, conta Jup, quando a conversa já beirava a uma hora de duração. Entre outras coisas, além de falar sobre esta nova fase a artista revelou detalhes dos processos crativos, sua visão sobre o mercado da música, pautas de cunho social e as possibilidades que se tem com os próprios corpos.
Confira a entrevista completa:
Papelpop: Como é lançar seu trabalho de estreia neste contexto em que estamos? Sobre pandemia e as questões levantadas sobre diferenças raciais, especialmente… Já era planejado sair por agora, ou foi uma decisão tomada a partir de um senso de urgência também?
Jup do Bairro: Pra este ano, a gente tinha todo um planejamento de recompensas [da campanha de financiamento coletivo] e entrega do disco. A gente tem se adaptado. E tenho um privilégio gigantesco de ter uma equipe maravilhosa e isso tem facilitado muito. Acredito que esses corpos marginalizados, como o meu e das pessoas que colaboram comigo, a gente tem uma espécie de adaptação muito grande, inclusive sobre esse tema. Então tivemos que rearticular tudo. E foi tudo bem megalomaníaco, assim. Porque tudo surgiu da campanha e a equipe foi abraçando, mas também envolve as empresas de fabricação do disco, camisetas e as outras recompensas. Estou muito feliz, porque é um projeto que demorou treze anos pra acontecer. É um disco que almejo há muito tempo. E neste momento é muito significativo. Ele pertence a este momento. Tenho acompanhado muitos artistas dizendo como é perigoso lançar um trabalho neste momento, seja álbum ou single, mas estou indo contra a corrente, por acreditar que ele é pertencente ao agora. Vai ser importante pra mim e pras pessoas que vão ouvir. O álbum passa por três camadas, do ciclo de um corpo, que é nascimento, vida e morte. Não necessariamente nesta ordem também. Tem muito a ver com tudo que a gente tem passado e, pra todo mundo que mostrei, essas pessoas têm se contemplado de alguma maneira.
Recentemente, você foi às redes sociais dizer sobre o apoio que as pessoas poderiam dar ao seu trabalho. Você sente que a forma do público receber seu trabalho sem estado diferente?
Eu acredito que sim. Tenho falado muito sobre a importância da responsabilidade que a gente tem enquanto consumidor, de criar novos imaginários, possibilidades e mercados. Quando entro na música e na arte, foi de uma maneira despretensiosa. Queria tratar das dores que estavam permeando meu corpo. E não tinha ideia de ser uma superstar, uma influenciadora… nada disso. Era uma maneira de eu ser a cura das minhas dores. De um tempo pra cá, as pessoas têm percebido como elas são responsáveis pela criação desse imaginário desse mercado, pra fazer com que esses corpos sejam pertencentes a outras espaços. Acredito que o mainstream e a indústria da música não foram pensados pra mim, pro meu corpo. O que a gente tem criado é uma maneira de hackear, pra que outras como eu sintam-se pertencentes a outros espaços. É importante que pessoas como eu esteja nesses espaços, mas é mais importante ainda criar um novo mercado. Pra que a gente pode ter um novo espaço de circulação de sabedoria, pra gente ter mais sensibilidade a esses corpos. E jogar o papo aberto. Nós somos responsáveis pelo que a gente consome, ouve, veste… então é importante jogar essa responsabilidade pro público. Nessa negociação, tipo “vocês precisam tanto de mim quanto eu preciso de vocês” e vice-versa, sabe? Me colocam nesse lugar de “maravilhosa”, “milituda”, mas não. Sou uma pessoa que também pode errar. Estou aprendendo e criando possibilidades com meu corpo. Não estou levantando exclamações, e sim interrogações. Eu não quero saber de tudo, mas quero aprender o máximo que eu puder. E essa possibilidade eu só poderia encontrar com a arte. Ela me salvou.
“Luta por mim” é uma faixa muito especial e poderia ter sido escrita agora, né? É triste perceber como ela trata do passado mas também de agora?
Total. A gente tem conversado muito sobre isso, de como essa faixa é meio que atemporal. E não digo isso com excitação. Digo com bastante dor e tristeza. Comecei escreve há bastante tempo e é sobre uma certa exaustão e impotência. É uma grande contradição. Acho que esse trabalho diz muito sobre contradição, os momentos que eu vou fraquejar. Quando conheci o Mulambo, foi amor à primeira vista. Pensei “ele sou eu se eu fosse um boy cis”, sabe? A presença de palco dele é estrondosa. Ele toma conta e contamina. Até me arrepia falar. A escrita dele é impecável e extremamente potente. E eu sabia que precisava dele no meu EP. E ele vem num lugar mais do trap, hardcore. A faixa tem um ambiente quase alucinógeno, que Pininga produziu. E uma coisa que respeito muito é o tempo da obra, sabe? O Mulambo me perguntou quantos minutos eu imaginava de duração pra faixa e eu disse “quero que você fale o que tem pra falar”. Passei uma pauta do que eu queria falar, sobre nossos corpos e o entendimento do corpo dele como masculino e preto, mas havia essa liberdade de composição. Quando ele me mostrou, ainda em texto, foi uma enxurrada. Não conseguia parar de chorar. Ele achava que estava muito grande, mas eu disse que era o tempo necessário. Tanto que meu primeiro single, “Corpo Sem Juízo”, a gente pensou muito no que poderia ser. Principalmente quando convidei a Conceição Evaristo [renomada escritora brasileira] pra estar presente. Ela me mandou um áudio, pro qual tive a mesma sensação, tipo “nossa, isso é tão importante e vivo”, principalmente amarrando com os áudios que a Gabe Passarelli me mandou da Matheusa [artista assassinada em 2018]. Tudo se amarrou tão bem… a Conceição me disse que eu poderia fragmentar o áudio, mas eu falei “não, vou lançar assim, porque é o tempo da obra”. Mas eu sabia que era perigoso lançar isso, porque estamos num mercado no qual as músicas são escritas começando pelo refrão, com o objetivo de ter até dois minutos. Pra ela ser chiclete ou melhor comercializada. E eu invento de fazer uma música de sete minutos. Entendendo a importância desses sete minutos como obra. E agora com “Luta Por Mim”, acho que ela ainda vai dizer muita coisa por muito tempo. Porque sinto que a gente está no começo de cada luta. Os nossos avanços são pertinentes e estão caminhando, mas o passado caminha lado a lado. Historicamente é assim. A parte mais conservadora caminha ao lado da parte mais libertária com o medo de perder os privilégios. Principalmente de ver pessoas trans tomando lugares.
“Pelo Amor de Deize” chama a atenção já pelo próprio título. Você sente que faz parte dessa geração diretamente influenciada pela Deize Tigrona? Como foi criar a faixa?
Essa é uma das faixas que mais me pegam, em vários lugares. A Deize sempre foi uma inspiração muito grande pra mim. Quem da minha geração nunca dançou “Injeção” sem saber o que significava de fato, né? (Risos) Acompanhei o trabalho dela e também o momento que ela saiu da música e trabalhou em outras profissões, como gari, e teve problemas com depressão e ansiedade. Tudo isso foi me pegando muito, porque às vezes esses lugares já são até fadados pra corpos pretos. Eu sempre brinquei de substituir Deus por uma figura feminina, então eu falava com minhas amigas “pelo amor de Deize, não faça isso…”, sempre foi uma fala presente quando começo a reconfigurar a masculinidade como um lugar muito sólido pra essas posições endeusadas e de poder. Quando a Deize volta a cantar, a gente acabou fazendo alguns trabalhos juntas, desde shows até o “TransMissão” Quando ela participou do programa, eu conseguia sentir na pele as histórias que ela contava, sentir cheiros… tanto que nesse dia eu tive uma crise de ansiedade muito grande. Era a primeira entrevista do dia e meu corpo ficou muito enérgico. E depois a gente continuou a se falar e eu disse “Deize, quero uma música contigo”. E ela topou. Tanto que dentre as músicas mais novas dela, feitas com a Badsista, a gente chegou a fazer umas brincadeiras na gravação. Na putaria e funk proibidão, que é um lugar que eu queria muito explorar com ela. Mas na amarração do disco, percebi que queria fazer uma outra coisa. Aí comecei a escrever “Pelo Amor de Deize”, logo escutei uma trilha de heavy metal… E a Rafaela [Badsista] também tinha propostas muito parecidas com as minhas, de usar nossas referências mais passadas, o que a gente curtia. Quando mandei a guia pra Deize ela ficou sem me responder. Pensei ‘Putz, não curtiu e agora não faz sentido’… De fato, era uma homenagem mesmo. Mas depois de alguns dias ela me mandou uma mensagem dizendo que estava em São Paulo e que queria se encontrar comigo. Fui buscar ela no metrô e vi que ela estava quietinha e meio sensível, mas não entendi por quê. A gente foi conversando e chegando na casa em que estávamos hospedadas, soltei a música e ela começou a chorar. Chorar e chorar. E ela começou a dizer o quão importante aquela homenagem era. Aquilo de “levantar dessa cama” sempre ecoou naqueles ouvidos. Fui também buscar um áudio, presente na música, que é um áudio real. Seria impossível refazer a voz, aquele tom daquele áudio. A Deize é sempre muito preparada e guerreira. Aquele áudio simbolizou um dos poucos momentos em que a vi tão fragilizada. “Pelo Amor de Deize” pra mim virou um grande despertador de como a gente lida com os problemas na vida, de como a gente precisa se reerguer. E nada melhor do que ter uma rede de apoio pra gente se reerguer juntas e criar um novo imaginário, uma nova proposta, que não seja a depressão e a ansiedade.
Você comentou sobre as trocas com a Badsista durante a feitura do trabalho. Como foi chegar junto a ela nessas texturas e sons do disco?
Veio das duas. A Badsista já era uma DJ que eu admirava muito. Das referências que eu tinha, ela era uma das poucas mulheres produtoras, com uma qualidade de deixar muito bofe no chinelo. Inclusive, antes da gente se conhecer, eu já usava a base dela nas minhas apresentações. A gente começou a se falar quando a Linn chamou ela pra dirigir o “Pajubá”, mas aí olhei e falei “que sapatãozinha invocada, a gente nunca vai ser amiga”. Como sou tímida, acabava rolando um bloqueio de ter uma conversa com ela. E foi acontecendo naturalmente. Sempre que tinha um intervalo da gravação do “Pajubá”, ou antes e depois de show, a gente estava sempre fazendo música. Ela no beatbox e eu no freestyle. Quando a gente foi fazer a imersão pra fechar as composições, a gente sentava e passava horas na frente do computador, trocando sugestões… eu sou um fiasco com tecnologia e produção musical, porque acho que é uma das coisas mais geniais, por envolver matemática e sonoridade. E consigo fazer um tchá-tchu-tchum e ela consegue captar isso. A gente gosta de experimentar. Eu queria que fosse um disco que me desafiasse de alguma forma, então as melodias e os flows são diferentes do que eu vinha apresentando, numa cadeia mais de rap. Esse disco é muito 50 e 50 [porcento]. Foi uma troca muito especial. O álbum é como uma grande viagem. É como se você estivesse num jogo de videogame e cada faixa é uma tela diferente. Mas quando a Badsista fez o instrumental de “All You Need Is Love”, ela não gostou. Eu falei “Rafaela, isso é muito bom! Deixa eu escrever”, aí acordamos no dia seguinte e já tinha a letra pronta, como se eu tivesse sonhado. “O Corre” tem uma pegada mais anos 90, quase uma “fresh princess of Capão Redondo”. A galera fala que é o tragicômico, porque conta história de necessidade e perrengue que muita gente passa, gente que eu conheço. Mas de uma forma mais fun. E é uma música que tenho muito apreço e sou muito feliz com ela. “O que pode um corpo sem juízo” é uma interlude que fica num lugar mais monumental, por texto recitado mesmo. Essas camadas me fazem viajar. E aí vem aquele tweet da Anitta, “acho que estou viciada no meu próprio álbum”.
(Risos) Total! E sobre “All You Need Is Love”… você, Rico e Linn se conhecem há bastante tempo. Como foi finalmente ir pro estúdio juntas? Deve ter sido muito divertido! Conta pra gente mais sobre o tema da letra?
É uma música que fiquei pensando muito em como escrever ela, pra ser divertida e também falasse da solidão do corpo negro, a falta de afeto. E criar novos imaginários, porque não adianta a gente só denunciar que esses corpos não são afetados pelo amor, ou colocados como digno desse amor ocidental branco higienizado… era muito importante criar uma possibilidade do que representa o amor pra mim, mesmo não sabendo o que é amar. Quando escrevi sobre o instrumental da Rafa, percebi que faltava alguma coisa. Porque não era só sobre mim. É sobre corpos, né? Aí mostrei pro Rico, que falou “isso é muito foda, vamos gravar amanhã?”, e era isso que eu precisava. Eu gosto de trabalhar com a liberdade, sem isso de saber antes o que a pessoa escreveu pra eu palpitar. Gosto que tenha as palavras da pessoa. O clipe retrata nossos corpos como estátuas egípcias, de um outro tempo que pode representar o passado ou o futuro, vivendo nesse deserto, que é a solidão dos nossos sentimentos. É a solidão da seca, de não sentir pertencida a esse amor. Quando a gente começa a materializar esse amor, essas estátuas se juntam e protegem algo extremamente sagrado, que é aquela luz vermelha, que é o novo amor criado. É uma música feita pra mais do que estar numa playlist de sexo. É um levantamento de reflexão mesmo. É reverter esse amor a um amor que nos cabe.
E o desejo é algo que faz com que nos sintamos mais humanos, né? Não tendo ele, a gente pode se perder um pouco pra onde estamos indo, de certa forma…
Total! E a gente começa a entender que o desejo é criado. Assim, ele pode ser reconfigurado, sabe? Eu tenho uma sexualidade muito flexível. Hoje me reconheço como pansexual. Justamente por entender que os desejos podem ser mutáveis e remanejados, a partir do momento que a gente precisa ter uma negociação com nossos corpos pra gente se relacionar de fato. É lógico que venho também de um lugar no qual meu desejo era direcionado a homens magros e tudo isso foi criado, mas fui reentendendo isso. “Prepara seu maxilar, porque cê vai morder a fronha” é uma pessoa gorda, um corpo excluído, profetizando uma sexualidade. Porque o que vejo muito sobre o corpo gordo é uma dessexualização, dizendo “maravilhosa”, “gostosa”, mas nunca está num lugar de desejo, de criação de sexualidade.
A faixa “O Que Pode Um Corpo Sem Juízo” é muito sobre como a gente se torna coisas. Você acredita que a gente se torna artista também, ou se nasce?
Não acredito em dom. Acredito em estudo, aprofundamento… e quando falo em estudo, não quero institucionalizar muito essas coisas. É no sentido de entender o que você quer fazer enquanto exercício mesmo. Eu me torno artista pelas dores e delícias que a vida propõe. Artistas que vêm da periferia, artistas marginalizados… esses artistas trabalham a partir das dores causadas pelo sistema, né? Como o rap por exemplo. Acredito que me tornei artista, como tenho me tornado e transtornado. Tenho colocado uma proposta de trabalho artístico de ser uma referência que não tive. Muitas vezes, não é fácil, porque estamos numa era de capitalização a partir da internet. As agressões ficam muito mais intensas. De um lado de aplaudem, mas tem gente querendo te desmoralizar, num lugar de exclusão, literalmente. De não querer ver seu corpo presente nesses protagonismos.
Uma coisa muito marcante na sua arte e presença é a provocação, inclusive dessas novas possibilidades. Especialmente porque muitos artistas maiores não o fazem. O que você sente que falta nesses artistas? Uma vez, a Badsista tweetou sobre o trabalho de algumas pessoas faltar ódio. Você sente isso?
Sinto e, antes de mais nada, eu acho importante estarmos em inúmeros lugares e possibilidades. Acho que algumas pessoas fazem uma maior negociação, sabe? De “não posso falar tal coisa, se não, não vou estar num programa de TV”, ou “tal campanha não vai me contratar”… mas o combustível da minha arte é realmente o ódio. Eu tento canalizar esse ódio de forma artística, criando também a possibilidade de eu ingressar no mercado com esse ódio. Acredito que não podemos criar figuras unas de representatividade, porque algumas podem se ver e entender que aquele lugar também é pra elas, mas outras vão pensar que também podem ficar estáticas, porque “já tem a Jup do Bairro e a Linn da Quebrada”. Faço questão de mostrar os processos da criação da minha arte, porque a galera acha que quando você ganha o “arraste pra cima”, todas as suas contas estão pagas, né? Que você está rica e virou Global… essas características que validam uma artista. O que tento fazer é humanizar o meu trabalho e usar minha carreira pra que outras pessoas também possam surgir. Não quero ter a responsabilidade de ser a representação única, porque eu não vou ter resposta pra tudo, não vou estar em todos os lugares, não vão ser todas as negociações que eu vou topar… a gente precisa de outros corpos também. Pra gente evoluir de fato juntos. Eu não acredito em revolução de uma pessoa só.
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“Corpo Sem Juízo”, o novo EP de Jup do Bairro, está disponível em todas as plataformas de streaming.
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