música

Raquel Virgínia, de As Bahias e a Cozinha Mineira, fala sobre novo EP: “queremos trazer conforto”

Quando este repórter que aqui escreve atendeu à notificação de uma chamada de vídeo, do outro lado da tela estava Raquel Virgínia. Uma das vozes de As Bahias e a Cozinha Mineira, ela me diz que já perdeu as contas de quantos dias está sem pôr os pés na rua por conta da pandemia. “Agora que tô comendo comida congelada e comprando marmitas… não sei, não tenho saído. Tô trabalhando muito mesmo dentro de casa e só vejo o pessoal do prédio”. Por reuniões de vídeo, ela brinca, a realidade é diferente. “Tem sempre um batalhão de gente. Ainda bem”.

É na escrivaninha da sala, disposta diante da janela com vista para parte da metrópole, onde ela passa a maior parte do dia trabalhando. Raquel atendeu a imprensa na tarde da última terça-feira (26) para falar sobre o EP “Enquanto Estamos Distantes”. Este é o trabalho mais recente da banda que tem ao lado dos amigos Assussena Assussena e Rafael Acerbi. Ela gira a tela e me mostra os prédios que ficam à frente do seu.

O projeto se apresenta sob outra ótica quando posto lado a lado ao elogiado (e pop) “Tarântula”(2019). Agora As Bahias apostam em uma curadoria de faixas mais afável, doce, que parece aos poucos abraçar quem dá play. É disso que precisamos, afinal, em tempos difíceis. No embalo do lançamento, a banda entrega ainda o clipe de “Éramos Chuva”. Assim como aconteceu com cada uma das faixas, o registro visual também foi feito em casa. Casas, seria melhor dizer. Afinal, participam nomes como Thelma Assis, Taís Araujo, Débora Nascimento e Lea T.

A nossa conversa completa com Raquel Virgínia, que tratou desde a essência das novas canções d’As Bahias, até a realidade LGBTQ+, você lê abaixo:

“Enquanto Estamos Distantes” chega nesta quarta-feira, todos estamos muito curiosos pelo que vem aí. De quem foi a ideia de produzir um EP no meio da quarentena? Era algo que vocês já vinham pensando?

A gente vinha com outro trabalho, mais megalomaníaco, que vem no futuro. Não podíamos fazê-lo agora, mas tive uma conversa com o nosso empresário e a gente combinou. Não queria ficar sem fazer nada e o que as Bahias e a Cozinha Mineira, o que eu, Rafa e Assussena temos pra propor pras pessoas é música. Não somos do ramo da saúde, nem de nenhuma outra área estratégica neste momento complicado… O Rafa, da nossa banda, é um grande produtor. Esta aliás é a estreia dele na função, trabalhando com a gente. Foi uma relação de produção, muitas reuniões por vídeo, muito trabalho à distância. Dá muito mais trabalho, é muito mais difícil… mas acho que foi a melhor coisa que poderíamos ter feito pra conseguirmos oferecer música, oferecer entretenimento pras pessoas.

Esse é um trabalho vem na contramão do “Tarântula’, que é um álbum bem pop, talvez o mais pop da banda. Agora vemos canções mais introspectivas, fruto de uma relação diferente de produção. Qual foi a maior dificuldade? Quanto tempo vocês levaram nisso tudo?

Fizemos tudo em duas semanas. Foi tudo muito rápido. Esse trabalho, de fato, é mais introspectivo. O momento pede isso, né? Há algo muito importante pra mim… Nós, como artistas, temos que mostrar o mínimo de empatia com tudo o que acontece. Acho estranho fazer algo extremamente sem Se a gente não tentasse ao menos dialogar um pouco com o que as pessoas estão vivendo agora… eu não me sentiria confortável. O que nos permite entregar músicas a um Brasil que bate recordes de morte é a delicadeza, a sutileza das canções. O objetivo desse trabalho é trazer conforto em termos de música. Ao contrário de ‘Tarântula’, que às vezes é até meio agressivo, nosso novo EP é carinhoso. Trouxemos inclusive, estampada na capa, a beleza da obra de arte, que é algo que reflete bem isso.

Ótimo você ter tocado nesse ponto. A capa é uma arte da Patrick Ringon, artista trans talentosíssima…

Sim! Fizemos um projeto há cerca de dois anos chamado ‘A Arte Resiste’. Era um projeto nosso com a Linn da Quebrada, tínhamos aqui em São Paulo nas imediações do Minhocão um grafite com fotos nossas. Era de autoria da Patrick. Conhecemos ela nessa época e fiquei dizendo ‘Em algum momento vou chamá-la’. Quando decidimos fazer esse disco e ele não poderia ter um ensaio fotográfico, logo a convidei. Ela fez 15 ilustrações, todas lindíssimas, fizemos com a intenção de que ela nos desenhasse como se fosse um ensaio fotográfico. Uma delas, por exemplo, traz a gente tomando vinho e comendo pizza… É o clima, sabe? Pra que não fosse algo desconexo. Por que essa pessoa tá tão feliz se vivemos uma catástrofe? Não é uma crítica aos demais artistas, mas pra nós 3 é algo estranho lançar algo que não dialogue com a empatia que se deve ter no momento.

Em janeiro de 2019 eu te entrevistei e nós falamos sobre o papel político-contestador da arte. Mas existem outras funções nesse ofício, entre elas as de trazer identificação, conforto… As faixas do novo EP abordam mensagens de esperança, coragem, amor… Qual a importância de se fazer música pras pessoas nesse momento delicado que estamos vivendo?

A música é tão fundamental pra esse momento, né? Veja você como as pessoas estão buscando isso por meio das lives. Quer dizer, sempre vão buscar, a música é um pilar da sociedade. Eu não sou muito da turma da live, sou muito ruim com isso (risos). Me bate uma tristeza por não ter figurino, não ter a presença do público ali. É óbvio que não trabalhamos só. Pra que um show aconteça, pra que nos sintamos artistas, é preciso uma baita equipe e a importância da música está no confortar, acalmar, tirar da depressão… tem muita gente entrando em depressão nesse momento e eu pensava muito nessas pessoas ao trabalhar no EP. Sobre o quanto essas canções precisavam dialogar com a realidade, principalmente do público LGBT+, que já tem uma tendência por conta do que passamos no nosso dia-a-dia, com a presença da Covid-19 ou sem ela. Igualmente, acontece com a população negra. Ao longo do processo de gravação refleti sobre como podemos salvar as pessoas enquanto artistas. Sem saber posso estar salvando alguém, alguém que talvez nunca fale comigo, mas que tenha acesso ao trabalho de As Bahias e a Cozinha Mineira. Se isso acontece, o nosso lançamento já vai ter cumprido a sua função.

As pessoas tem ficado muito em casa nesses dias de isolamento, consequentemente tem lido mais, ouvido mais música. Ontem mesmo eu fui dormir ouvindo um disco de Antônio Variações, ícone supremo queer de Portugal. Você tem lido algo por agora? Quais sons você tem escutado?

Olha… eu terminei ontem ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’. Li quando eu era adolescente, aos 17 anos? Percebi hoje que não entendi nada (risos). É um livro muito denso, filosoficamente falando. Machado é tão mestre que vai tratando algumas coisas de uma maneira muito simples, mas trazendo uma série de questões fundamentais de vida e morte. Neste momento que falamos de vida e morte, o livro me caiu muito bem. Foi muito importante, em alguns momentos cheguei a transcender, fichas caíram. Existe uma acidez e uma ironia que valem muito, dialogam com a história recente do Brasil. Não sei bem o que começar agora… Para além disso, tenho assistido muita coisa. Uma das últimas produções que vi foi a série “Arremesso Final”, que conta detalhes da carreira de Michael Jordan nos anos 1990. Eu gosto de ver produções que envolvem atletas porque em geral há um lance de superação. Você sabe, quem nasceu travesti e preta no Brasil precisa entender disso. Também gostei muito de “A Vida e a História de Madam C.J. Walker”, com a Octavia Spencer. Maravilhosa.

Acho muito importante que as pessoas conheçam e apoiem coisas boas da literatura e da música LGBTQ, visto que esses autores muitas vezes não tem tanta visibilidade. Indica pra gente três livros ou discos inspiradores?

Ótimo! Vou indicar 2 discos e 1 livro. Procurem saber de uma escritora chamada Amora Moira. É dela o livro “E se eu fosse puta”. É ótimo e narra as vivências de uma garota trans que faz um híbrido de crônicas e contos sobre as vivências. Me vi em todas as histórias (risos), amo essa autora. As demais indicações são… ‘Pajubá’, da Linn da Quebrada, que com certeza é um clássico dos nossos tempos, e ‘Goela Abaixo’, da minha amiga Liniker. Discaço, indicado ao Grammy Latino. Tudo o que ela toca é um clássico.

Pra fechar: são tempos muito duros, temos uma pandemia em curso, uma crise muito grande nas instituições, na sociedade… Que mensagem você deixa pros fãs de As Bahias e a Cozinha Mineira?

Uma vez três pessoas entraram armadas na minha casa. Me amarraram, além da minha mãe e do meu tio. Eu era a única que não chorava entre eles e lembro que os bandidos queriam sair da casa. Tinha uma coisa muito chata no nosso portão, que pra abrir, exigia que se tirasse um parafuso. A minha mãe não conseguia explicar e o bandido não queria deixar que ela falasse. Eu fiz isso com toda a calma do mundo pra que ele conseguisse e fosse embora logo. Obviamente, se isso não acontece, o pior poderia acontecer… Às vezes, em situações assim, a melhor coisa que podemos fazer é manter a tranquilidade. Eu sei que é horrível dizer isso, é óbvio, porque tanto eu, quanto Assussena e Rafa estamos vivendo no melhor dos mundos. Estamos em uma gravadora, continuamos tendo uma equipe e pessoas trabalhando à nossa volta a fim de que nossos projetos se mantenham. Há pessoas que tiveram seus mundos desmantelados, mas temos que seguir tranquilos. Talvez pareça egoísta, mas temos duas opções: ou se debater, ou manter o controle e tentar encontrar uma saída. E acho, sim, que vamos conseguir encontrá-la.

 

“Enquanto Estamos Distantes”, o novo EP de As Bahias e a Cozinha Mineira, está disponível nas plataformas digitais.

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