música

Mahmundi fala ao Papelpop sobre novo disco: “Quis soar como uma banda”

Em fevereiro deste ano, quando ainda era seguro caminhar pelas ruas de um Brasil livre da pandemia, Mahmundi fazia os últimos ajustes de “Novo Mundo”. O quarto álbum de estúdio da artista chegou às plataformas nesta sexta-feira (29). De lá pra cá se passaram quase 3 meses e o cotidiano apressado de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro foi amplamente alterado.

Não é possível pensar em shows, aparições públicas. Sequer sair com frequência. “Minha rotina aqui em casa tem sido dividida entre fazer comida, ir ao mercado comprar cenoura, batatinha… Pegar um sol. É bem uma desculpa pra sair na rua. É quase uma fuga”, brinca a artista por telefone.

Inventiva, ela mergulha em um novo universo criativo deixando para trás a densidade das texturas de “Para Dias Ruins” (2018). Dá as boas-vindas a uma em nova estética, voltada para a música instrumental. “A única referência que eu quis pra esse disco era uma vibe de banda. Por isso eu voltei a ouvir músicas de Lily Allen, Avril Lavigne, Oasis e Legião Urbana. Fazia mais sentido porque eu não era uma adolescente do pop, que ouvia Britney Spears e Christina Aguilera. Eu era a rockeira”, diz.

Mahmundi, que é autodidata nos instrumentos, contou com a colaboração de músicos vindos de todo o país pra trabalhar nas faixas que agora lança. Entre novas texturas e arranjos que formam uma pesquisa sonora inédita, ela explica. “Esse álbum é diferente de outros que você usa pra ir na praia ou pra viajar. Quis soar como uma banda, que as letras tivessem uma mensagem”. O restante dessa conversa, que também abordou a função do intérprete, resiliência e a versatilidade arte, você lê abaixo:

Papelpop: Existe uma riqueza enorme de arranjos nas suas faixas. Neste novo trabalho eles casam perfeitamente com o conteúdo das letras, mas de uma forma mais suaves… Como funcionou a sua pesquisa sonora?

Mahmundi: Nos outros álbuns existia uma questão muito pessoal minha de estudar o uso do sintetizador, de fazer uma energia. A igreja foi minha grande escola de música, sou autodidata. Estudar isso me contemplava, mas é um desafio o processo mais orgânico de dirigir uma banda e escrever um álbum com outras pessoas, que por sua vez vão te entregar outras musicalidades. É um desafio também entender como isso vai funcionar. As pessoas dizem que a MPB é datada, mas eu quis tentar trazer esse som pro digital. O instrumento vai cantando junto com a música, sabe? Os músicos e eu fomos construindo uma harmonia… Músicos tem fama de querer tocar demais (risos).

Concordo. A Rita Lee disse outro dia que “Atlântida” (faixa do disco ‘Saúde’, de 1981) foi fruto de uma jam de 30 minutos. Deu o maior trabalho pra cortar tudo… imagine os anos 1980, estúdio, fitas (risos). Por falar nisso, o que você tem ouvido agora?

Os jornalistas sempre me perguntam ‘Qual foi a referência pro disco?’ A única referência que eu quis pra esse trabalho foi uma vibe de banda. Por isso eu voltei a ouvir músicas de Lily Allen, Avril Lavigne, Oasis e Legião Urbana. Fazia mais sentido porque eu não era uma adolescente do pop, que ouvia Britney Spears e Christina Aguilera. Eu era bem rockeira.

Você também tem se destacado como produtora e admiro muito isso, não só porque você desempenha a função muito bem, empregando minúcias sonoras, mas também porque inspira outras mulheres a fazer isso. A gente sabe que a música ainda é um ambiente majoritariamente masculino, machista…

Eu acho muito importante, e ao mesmo tempo enxergo como algo que tem que ser natural. Quando as pessoas dizem ‘Ah, vamos chamar uma técnica mulher pra fazer” eu respondo ‘Ótimo, Você conhece alguma mulher que estava no curso de técnico que você fez?’ Se a resposta for ‘Não’, não vai estar aqui. O mercado tem manias e pra mim é muito difícil, eu nunca estudei nada, nunca estudei áudio. Ganhava 70 reais por dia há 11 anos pra montar palco e de repente estou aqui. Nessa trajetória, me lembro da técnica de som da Sandra de Sá, entre outras pessoas muito raras, mulheres que eram muito masculinas, muito duras. Tenho até tratado disso na terapia, acabei conhecendo muito uma forma masculina de falar e de xingar. Eu sou assim porque a favela me deu isso, sou carioca também. Mas muitas vezes existe um confronto, uma imposição. É algo gradativo, no sentido ‘Meu nome é Mahmundi, eu faço isso e quero ser creditada por isso’. Sabe? Têm muitas mulheres no Brasil que desempenham essa função e admiro, cito a Alicia Keys também porque ela foi a minha grande inspiração por ser produtora musical, é uma grande artista. Foi ela a única pessoa possível pra apresentar o Grammy nesse momento e vemos por aí que é um trabalho muito longo. Por isso mesmo precisa estar alinhado coerentemente. Eu não sou a mais fodona delas, mas a gente tem que abrir isso com calma e com tempo. Eu me recuso a fazer uma banda apenas com mulheres só porque o mercado quer. Quero que elas estejam aqui sendo contempladas de verdade, pra gente valorizar a trajetória. Tá acontecendo, fico feliz por fazer parte disso e aprender sempre.

A banda responsável por “Mundo Novo” é composta por músicos instrumentais de vários lugares do Brasil. Como você chegou a essas pessoas?

Eu toco, mas quem toca bem mesmo é quem estudou e sabe fazer tudo. A gente bate num teto do conhecimento humano quando se dá conta disso. A coisa do autodidata é linda, até certo ponto. Fui me conectando com os músicos pelo Instagram. Conheci o Frederico Heliodoro, que é o coprodutor do álbum, fuçando no perfil dele. Logo falei ‘Cara, você mora no Brasil?’… Nisso começamos a fazer uns calls e desde aquele momento já sabia que queria ter uma banda… O Frederico, aliás, é um artista que vem de uma cena instrumental que toca no mundo todo, uma cena muito rica de jovens brasileiros que tocam pelo mundo. Unimos nossas funções. Tô virando essa diretora de projeto, que lida com pessoas, gerencia a humanidade delas e levanta os projetos (risos). Foi um grande desafio, mas deu tudo muito certo.

Há pouco tempo você regravou “Sangue Latino”, d’Os Secos e Molhados. Foi uma versão amplamente elogiada… É uma pergunta retórica (risos). O Ney é uma inspiração pra você? Ele chegou a ouvir a sua interpretação?

Não sei se ele ouviu. O Ney é leonino, né? Fica ali na dele, eu também sou e sei como funciona. Mas eu conheço o Ney de trabalho, é uma pessoa muito generosa, muito trabalhadora, muito sensível. É o primeiro a chegar em estúdio, toma a aguinha dele em silêncio, faz os ensaios de maneira muito generosa. Mesmo que essa letra não seja dele, a forma com que se dá a interpretação, o caminho que isso toma… acontecia com Elis também, com todos os grandes intérpretes do Brasil, acaba se tornando algo muito seu. Eu não tinha essa intenção, tava mais focada na emoção da faixa, o que ela pode ser. Gostei muito do resultado, me emociona muito. Esse verso “Jurei mentiras e sigo sozinho/assumo os pecados” é muito forte eu ouço e fico… É interessante, adorei fazer.

O seu novo disco ficou pronto em fevereiro, antes de o isolamento social propriamente dito começar no Brasil. Mas ele dialoga muito com o que vivemos hoje, ainda que seja um trabalho um tanto solar. Você tava sentindo que essa era a direção que as coisas tomariam? Foi um trabalho concebido de maneira “sensitiva”, por assim dizer?

Foi no meu tempo, eu precisava dessa minha pesquisa. Acabou acontecendo o que estamos vendo, mas “Mundo Novo” é muito sobre mim. Acabou com a gente saindo do estúdio, no meio daquele aquecimento de Carnaval… nunca imaginei. Então acho que as coisas se misturaram. Ele não é um disco ‘da pandemia’, sabe? Eu não tenho controle sobre esses clichês, mas achei legal lançar e manter a estreia pra que a relação com os fones fosse mais pessoal. Tem gente que tá tendo mais tempo aí pra ouvir, acabou dando certo com as agendas. Uma péssima agenda, por sinal (risos).

Falei recentemente com a Raquel Virgínia, de As Bahias, e falamos sobre as pessoas estarem em casa e consequentemente consumirem mais arte, ao mesmo tempo que em a arte é demonizada. Qual é a importância de se mostrar essa necessidade de arte do ser humano nesse momento?

Eu acho fundamental que a gente entenda o nosso caminho, que a gente faça as coisas, que a gente consiga se localizar porque a gente não para de existir, por mais que esse mundo tenha uma ótica a gente tem que ter a criação como objetivo. Tanto você no seu trabalho, quanto eu, se começamos a se estagnar e se sentir censurado mentalmente, é uma merda. Então ou eu vou ficar sendo só a militante que o mercado quer, porque isso já me convém automaticamente sendo artista, veja bem, isso é a militância dos meus amigos e das minhas amigas, ou eu vou criar outras liberdades, visto que a gente vai ser censurado… Converso muito sobre isso com a Raquel, que adora literatura, história… Se expor artisticamente dá pro público algo diferente de “fada sensata” e like. A gente tem que dar outras possibilidades porque a educação no Brasil não oferece isso. O artista acaba sendo comunicador pra além de outras coisas. É importante, temos que mandar bala mesmo.

Muita coisa tem acontecido no mundo para além dessa crise de saúde pública. Os jornais mostram episódios envolvendo violência policial, existe uma guerra ideológica, uma grande desordem social. Como você, Mahmundi, tem enfrentado esses dias? O que você diria pras pessoas?

Eu diria pro Brasil e pro mundo que devemos nos manter firmes, fortes. É preciso chorar quando necessário, mas ao mesmo tempo sempre tentar descobrir quem se é. A gente às vezes põe uma expectativa no outro, nas coisas e aí não dá certo… as pessoas acabam se vendo numa posição de vítima. O mundo não é fácil, não é fácil, difícil ou bom, e como você se posiciona nele é o que faz a diferença. Acho curioso, por exemplo, quando vou pra fora do Brasil. Vejo pessoas em situação de pobreza extrema e que são comunicativas, esperançosas. Você vê também mulheres que apanharam, que foram violentadas e dizem “Isso vai passar”. Não é #vaipassar. Tem que saber que tem algo além do sofrimento. Temos uma situação de muita fragilidade agora, os jovens morrendo, gente se matando, é muito desesperador. E é por isso que temos que estar conectados com a nossa saúde mental. Sou muito a favor de terapias de grupo, de conversas… e não é dizendo isso da boca pra fora. Tem que haver uma busca interior. Ninguém dá conta sozinho. Quando o artista se reinventa, se isola, como a Rihanna que está há um bom tempo sem lançar álbum, é porque cada um tem que ir buscar e saber o que é confortável pra si. É valioso a gente se descobrir, se cuidar como humano a vida é uma só.

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