Ava Rocha e o marido, o cantor e compositor Negro Leo, fizeram uma viagem para a Colômbia em 2016. Filha do casal de cineastas Paula Gaitán e Glauber Rocha, a artista viveu boa parte de sua adolescência no país. Aquele retorno, entretanto, seria especial: viu com os próprios olhos o firmamento de um tratado de paz entre os rebeldes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e o governo.
Essa tentativa de selar um dos tantos e delicados conflitos armados que o país ainda enfrenta, em uma complexa conjuntura, serviu como inspiração para as canções que compõem o compacto “Sal Gruesa”. Feito em parceria com o grupo bogotano Los Toscos, o projeto chegou às plataformas digitais na última sexta-feira (8).
“Fiz pensando nos nomes dos mortos dessa guerra histórica, nomes que eu queria nomear, que não são números”, conta a artista, por e-mail. Ela menciona ainda a aderência temática que as músicas assumem neste momento delicado em que o Brasil atinge a marca de 10 mil mortos pela Covid-19. “Surpreendentemente toma uma dimensão ainda maior, o mundo todo está mais consciente e sensível dessa tragédia é que enterrar”.
O espanhol permeia toda a sua obra. Em seu primeiro disco, “Diurno” (2011), chegou a musicar um poema do avô, o importante poeta Jorge Gaitán Durán. De lá para cá as tais intervenções se repetiram, até ser convidada para compôr ao lado de Tulipa Ruiz (“Terrorista del Amor”) e Céu. Ficou em suas mãos a missão de traduzir 3 das faixas de “Tropix”.
Com três álbuns de estúdio no currículo, entre eles o elogiado “Ava Patrya Yndia Yracema“, Ava Rocha já foi eleita uma das melhores artistas de sua geração pelo The New York Times. Lírica e musicalmente viscerais, suas novas faixas refletem as várias tranças culturais das quais é fruto. A árvore genealógica de sua família está atrelada à história da arte dos dois países aos quais pertence.
Em entrevista ao Papelpop, ela fala sobre a ligação que possui com a raiz latino-americana de sua família, bem como a importância de se reconhecer enquanto povos irmãos em meio à interferência de outras culturas. Não menos importante, faz uma análise do atual cenário político brasileiro e dá conselhos para quem tem começado a criar em dias turbulentos.
Papelpop: Você viveu por alguns anos na Colômbia… Em que cidade você se estabeleceu? Como foi a sua adolescência?
Ava Rocha: Eu fui morar em Bogotá aos 14 anos e lá vivi até os 20. Mas desde pequena frequentava o país, pois todos os anos íamos com minha mãe, que é nascida em Paris, mas foi criada em Bogotá, pois é filha do poeta colombiano Jorge Gaitán Durán e da brasileira Dina Moscovici, diretora de teatro que fez carreira no país, junto ao movimento de vanguarda teatral. A irmã dela, Silvia Moscovici, também se casou com um colombiano, e lá viveu toda sua vida, então vamos visitar nossos familiares e amigos todos os anos. Mas meu avô é de Pamplona, município de Cúcuta, no departamento de Santander del Norte, fronteira com a Venezuela, onde viviam meus bisavós. Vivi em Bogotá entre os anos 94 e 2000 e posso dizer que foi um dos períodos mais intensos, livres, criativos de minha vida. Fui uma adolescente muito ativa, culturalmente, com muitos amigos, e vivíamos dentro das cinematecas vendo filmes da história do cinema, muitas vezes nos fim de semana 2 ou 3 filmes por dia, o que fez com que muito jovens inventássemos filmes, naquela época sem internet e com um senso de guerrilha muito forte. Também tive uma revista de contra-cultura que unia arte e sabedoria popular chamada Generacción, onde eu atuava principalmente como diagramadora nos primórdios do Photoshop. Realizamos festas que marcaram época na cidade para financiar a revista. Foi lá também que comecei a estudar cinema na universidade. Vivia na rua, agitando-me culturalmente na cidade, passando por vários núcleos de amigos com experiências distintas. Foi onde vivi praticamente as primeiras experiencias da minha vida e onde era também fiquei conhecida como a brasileira que cantava e animava festinhas com seu violão e voz. Enfim, fiz muitos amigos que estão comigo até hoje, além de minha família e dos novos amigos que fui fazendo ao longo dos anos seguintes, mesmo morando no brasil.
“Sal Gruesa” foi gravado no estúdio Matik Matik, que é um espaço independente, importante para a arte de Bogotá pelo que soube. Qual a sua ligação com a cena independente do país?
Quando eu comecei de fato a fazer música aqui no Brasil, comecei a sentir uma grande necessidade de me conectar com a Colômbia e comecei a pesquisar. Descobri então que havia uma cena forte de música contemporânea, de vanguarda a nível internacional e algo novo na música colombiana. que apesar de ter uma música fortíssima e uma diversidade impressionante, diferente do Brasil não viveu momentos como o tropicalismo. Me impressionei com bandas como Meridian Brothers, Romperayo, Los Pirañas e com músicos que eram eruditos e experimentais ao mesmo tempo e fui aos poucos me comunicando com eles. Via que Matik Matik era o que a Audio Rebel, no Rio de Janeiro, tem sido para os cariocas. Um celeiro de encontros e experimentações, pesquisas, shows… um espaço vivo e acolhedor para aquela turma em plena efervescência. Mas só observava e meditava dentro de mim. ‘Quero ir pra Colômbia e fazer um trabalho com eles, quero me enturmar com eles, unir os dois países. Nesse momento eu tinha lançado “Ava Patrya Yndia Yracema”, que é meu segundo disco, e estava sonhando com isso, mas não fiz grandes movimentos. Mas lá o pessoal já começava a me ouvir e um dia pra minha surpresa o Benjamin Calais, proprietário do Matik Matik, me mandou um inbox falando sobre ele, a casa e contando que tinha uma banda chamada Los Toscos, formada ainda por mais dois músicos incríveis chamados Enrique Mendonza (guitarra) e Santiago Botero (baixista). Benjamin, que é francês, atua mais como produtor, engenheiro de som, mixador e também toca sinths, mas queriam nos convidar, a mim e ao Negro Leo, pra trabalhar com eles. Quando eu disse que já os conhecia e os acompanhava, que eu era colombiana também e que já estava sonhando com isso, ele não acreditou! Entende? Foi uma lance muito lindo, espiritual, emocionante mesmo! Então lá fomos nós, eu, Negro Leo e Uma. Para mim era fazer o disco, tudo isso, mas era também apresentar meu outro país, meu outro lado a minha filha e ao meu marido. Foi algo tremendamente especial. Falamos pro Thomas Harres, baterista e percussionista brasileiro, bruxão, parceiro de longa data e fã das sonoridades latinas. Ele, ariano como eu, se empolgou e disse que iria também. Foi com a Letícia Brito, amiga que é a responsável pela produção do lançamento. Também colou um outro baterista colombiano, Camilo Barstelman. Ali no Matik Matik fizemos imersões profundas de convivência, trocas, criações… fizemos shows e gravamos muito mais do que apresento nesse compacto. Temos outras músicas lindas e experiencias incríveis que talvez venhamos a soltar no mundo, inclusive estão as musicas de Negro Leo. Não conseguimos finalizar todo o processo lá e aqui em São Paulo gravamos as vozes na YB e as guitarras do Gabriel Mayall. Lá eles inseriram teclados de Andrés Guadrón. Enfim, desde então minha relação com a cena colombiana é cada vez mais profunda, já retornei varias vezes para fazer shows, já cantei com Frente Cumbiero, Romperayo, Meridian Brothers. Me sinto incorporada a esse espaço de forma natural, sinto que estamos muito fortemente conectados e esse trabalho é uma demonstração disso.
As duas canções que chegam agora foram criadas em 2016, no mesmo período em que as FARC firmaram um acordo de paz com o governo federal. Há faixas do seu trabalho que são mais políticas como “Auto das Bacantes”. Como funciona o seu processo criativo? Você tem composto agora?
Sim, eu componho intensamente. Agora, na quarentena, já compus 10 músicas sozinhas, escrevi uns 30 poemas e fiz músicas com parceiros como Iara Rennó, Ana Frango Elétrico, Negro Leo, Juliana Perdigão, já enviei e recebi músicas de amigos, eu não paro! Pra mim é uma terapia, eu me movimento nesse flow criativo, estou sempre nessa e crio de uma forma muito aberta, intuitiva, sem regras. Sozinha ou com parceiros. Fazendo melodia ou letra. No violão, na voz, no batuque etc. Andando, chorando, dormindo… Não tenho limites. Às vezes meus amigos me mandam um lance, me pedem algo e na mesma hora eu escrevo, devolvo uma ideia. Não tem meia hora comigo (risos). E sobre as faixas mais políticas, “Auto das Bacantes” é de Negro Leo, mas pra mim tudo é político, o que é bem diferente de ser panfletário, temático. Para mim arte não é hashtag. Como compositora ou interprete. Pra mim tudo é político e poético, real e surreal, consciente e inconsciente…
Esse compacto celebra as suas raízes, a nossa cultura, mas acima de tudo a irmandade que existe entre os países latino-americanos. Elke Maravilha disse algumas vezes que nós, brasileiros, nos tornamos uma cópia dos norte-americanos porque ao longo do tempo fomos perdendo parte da nossa essência em detrimento da cultura dos yankees. Isso dialoga muito com o que a gente vive, politicamente, nesse recente alinhamento com os EUA. Qual a importância de se lançar um trabalho como “Sal Gruesa” agora?
Bem, eu acho que esse é um trabalho que tem alma e carrega nossa alma latinoamericana, que expõe memórias, feridas, ancestralidade e nossa profunda diversidade na alegria, na exuberância cultural, na nossa força de superação de tantas opressões, extermínio, violência etc enquanto território violentado desde que foi invadido, né? Eu acho que esse trabalho, com o tamanho que ele tem, que é pequeno, humilde, tem a força desse saber, dessa energia, dessa alma mesmo. “Caminando Sobre Huesos” é uma musica que eu fiz pensando nos nomes dos mortos dessa guerra histórica, nomes que eu queria nomear, que não são números. Surpreendentemente neste momento toma uma dimensão ainda maior, pois o mundo todo está mais consciente e sensível dessa tragédia é que enterrar nomes e não números. Acho que o Brasil ainda fala da América Latina como se estivesse flutuando em outro território. Mas somos América Latina, nossa base é toda indígena e compartilhamos essa historia de sangue e beleza, somada logicamente a importantíssima e crucial presença africana e toda essa trança que se teceu…
Muito já se falou sobre as semelhanças que você tem com seu pai, Glauber [Rocha], e com razão. Mas me interessa muito, principalmente agora com a chegada desse compacto, a sua formação musical e pessoal, tendo em vista as influências da parte materna. O que de mais forte você acredita ter herdado deles?
Sim, eu sou muito meu pai e muitíssimo mais minha mãe. Mas eles também eram trançados. Minha mãe é uma poeta, fotógrafa, pintora, cineasta, uma mulher que me inspira muito fortemente e foi quem na prática me ensinou tudo, me levou para a ilha de edição, para os sets, me fez atuar, produzir, fazer tudo. Ela também é a maior interlocutora sobra as ideias e valores de meu pai. A minha avó, Dina, é brasileira por acaso, sendo filha de eslavos judeus fugidos da guerra. Então tenho uma ancestralidade muito forte por esse lado, eu sou muito ligada às minhas raízes e tenho feito disso a minha trança. Sou muito conectada também, portanto, ao meu pai, ao sertão, ao Brasil, a tudo isso que já conhecemos dele e que vem com ele.
O seu avô, o poeta Jorge Gaitán Durán, teve um papel importantíssimo na cultura latino-americana. Sempre lutou pela cultura e me chama a atenção o fato de que, inclusive, alguns dos primeiros textos de Gabriel García Márquez e Jorge Luís Borges saíram na revista MITO, fundada por ele. Você mesma chegou a musicar um dos poemas de Durán para o seu primeiro disco. Que papel tem a poesia na sua vida?
Você tem lido nesses dias de isolamento social? O que tem feito?
Estou lendo no momento um roteiro de meu pai ate então inédito no brasil chamado “Nascimento dos Deuses”, que foi escrito em italiano e lançado na Itália nos anos 70 pela RAI, com desenhos de minha mãe, Paula Gaitán, e que foi agora publicado no Brasil, junto a outro livro Críticas Esparsas (1957-1965), ambos organizados pelo Mateus Araújo e publicados pela fundação Clóvis Salgado, de Belo Horizonte. E como disse, sigo compondo, criando, preparando meu próximo disco, lançando esse compacto, cuidando intensamente de mim, da minha filha, da casa, e correndo atrás de pensar esses novos tempos. Buscando soluções econômicas, estéticas, sociais…
Vivemos a era das lives e o último show que vi, presencialmente, foi “Trança”, em São Paulo (creio eu, em dezembro). Gostaria de saber como funciona a escolha do seu repertório. É um tanto catártico, noto que você bebe um pouco na fonte da espiritualidade…
Eu acho que a espiritualidade… O espírito é uma fonte em si, e nós somos mais que um corpo físico na terra, eu acredito nas coisas que inventamos, coisas que recebemos e coisas que transmitimos. E minha arte é cada vez mais a minha “religião”, no sentido que une as coisas nas quais acredito, nas quais depósito minha fé e o terreiro no qual incorporo, desincorporo, transmuto, me revelo para o mundo e para mim…
O seu visual também me chama atenção. Lembro de ter visto um show e ficar impressionado ao vê-la surgir com um sombrero vueltiao, que é um acessório muito tradicional… Gostaria que comentasse um pouco sobre as suas referências.
Esse chapéu é colombiano, muito típico e muito pop ao mesmo tempo, latino, vivo, colorido. Inseri os chapéus no meu trabalho por muitas razoes. Eles se desdobram, são cenários, são um elemento popular que está na cabeça do povo, da história, do campo, da cidade e contam histórias. Guardam magias, se desdobram em formas e sentidos e juntos formam uma trança que cabe na cabeça de todos. Pra mim, somos no fim, um só e cada um é um mundo. Enfim somos uma trança e somos a própria natureza…
A classe artística, principalmente o nicho independente, têm enfrentado dificuldades para dialogar com o atual governo. Não existe qualquer apoio à cultura, há uma clara subida no tom autoritário… A secretária especial de Cultura, Regina Duarte, tem recebido duras críticas a respeito das políticas que têm adotado (ou deixado de adotar). Como avalia o atual contexto?
Bem, primeiro eu acho ingenuidade esperar qualquer coisa desse governo e mais ainda da cultura nesse governo. Mais ainda, achar que artistas são necessariamente de esquerda. E mais ainda de Regina Duarte, que durante a ditadura se fez namoradinha do Brasil, de um Brasil que perseguia, torturava, matava, censurava e exilava artistas, estudantes, ativistas etc enquanto o Brasil era campeão do mundo e a Rede Globo dominava. Muita coisa mudou, veio o Lula, mas a essência dessas práticas não mudou, foram adaptadas ao momento, mas continuaram mandando e dominando e alimentando esse pensamento no povo. Esse desejo aí que estamos vendo de retorno dos militares, e o apoio de Regina Duarte ao Bolsonaro tem um nome: saudade daqueles tempos, é algo que evidencia a perversidade dessa gente, um lado terrível, real e obscuro do ser humano que é alimentado pelo capitalismo e sei lá por quais forças que desconhecemos. Mesmo assim, lógico que temos que lutar, exigir e coisa e tal. Regina é namoradinha de que Brasil? Desse Brasil que narrei agora, do Brasil que sempre oprimiu o povo, mas transvestida de artista. Há que olhar muito bem sobre o que é arte, qual o seu papel, sua dimensão. Nada disso me convence e nunca me convenceu. O momento atual é trágico, mas quase obvio e é um tempo limite onde acredito que temos que ser radicais nas palavras e nas ações, reconstruir um novo mundo.
Em contrapartida… Existem artistas muito bons em ascensão, criando. Cito Ana Frango Elétrico, Maria Beraldo… Você vem de uma outra geração da MPB, com mais experiência. O que diria para quem está começando?
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