Em fevereiro deste ano Fiona Apple pegou o telefone e ligou pra um jornalista da Entertainment Weekly. “Ei, sabe que eu tenho um disco pronto, que devo lançar em breve? Vamos bater um papo?”. E assim foi. Nesta sexta-feira (17) chega ao stream “Fetch the Bolt Cutters“, a quinta parte desta que é uma das obras mais geniais do pop alternativo. Vem assim mesmo, sem divulgação, sem lead-single, sem capa divulgada. Tudo numa tacada só.
Estamos em isolamento e essa notícia vem como um afago, principalmente porque gostar de Fiona Apple é também saber que o seu ciclo de criação funciona em uma frequência bem diferente de outras artistas. À exceção de seus dois primeiros trabalhos, “Tidal” (1996) e “When The Pawn…” (1999), seu tempo médio para a entrega de canções inéditas oscila entre 7 e 8 anos. A última vez que isso aconteceu, por exemplo, foi em 2012, quando surgiu o elogiado “The Idler Wheel…”.
Tá, demora, mas vale muito a pena. São discos pra se ouvir observando cada vibrato, cada sacada inteligente nas letras, cada combinação de instrumentos. Você simplesmente não quer pular nenhuma faixa e a crítica soube reconhecer isso na maior parte das vezes. Por exemplo, à exceção de “Extraordinary Machine”, todos os discos de Apple receberam notas superiores a 9.0 em resenhas da Pitchfork, uma das revistas de música mais criteriosas e respeitadas dos Estados Unidos. Suas crias também atraíram olhares da Academia, recebendo boas indicações ao Grammy (mesmo que no fim das contas a vitória só tenha chegado uma vez).
O que esperar de “Fetch the Bolt Cutters”? A gente não faz a menor ideia. Mesmo! Mas a trajetória de Fiona sempre vale a pena ser relembrada e nós fizemos isso a partir deste ranking.
Enquanto hoje os fãs de música pop se cercam pelos lançamentos de Dua Lipa, Tove Lo e Billie Eilish, entre outras, nos anos 1990 o cenário era bem diferente. Muitas dessas artistas sequer eram nascidas e a galera se ligava mesmo em nomes como Tori Amos, Björk, PJ Harvey e a própria Fiona Apple. Em 1999, mais precisamente, já tendo certa fama por ter vencido um Grammy aos 19 anos, ela voltou ao estúdio e gravou 10 canções que desembocariam no bem sucedido “When The Pawn…“.
A crítica foi surpreendida logo de cara, tamanha a maturidade dos novos sons explorados pela artista, que abandonava as baladas adolescentes compostas no piano para se transformar na autora de uma compilação de faixas com densa produção (obrigado, Jon Brion!).
Duas proezas líricas presentes neste disco são “Paper Bag” e “Fast As You Can”. Na primeira, Fiona versa ironicamente sobre uma série de decepções que teve com um cara incapaz de compreendê-la. Já na seguinte, o ponto central é a impossibilidade de manter qualquer tipo de relação romântica quando se está em guerra consigo mesma. Ainda que no fim não saibamos se as letras foram baseadas em algum incidente pessoal específico, existe entrega. É impossível escrever músicas raivosas como “To Your Love” e “A Mistake”, em que ela questiona todos os limites impostos, se permitindo errar (e gostando disso!), sem se colocar no lugar do outro. Ou quem sabe, vivenciar algo parecido.
Mas o mais legal, sem dúvida, é que foi a partir deste trabalho que conhecemos uma característica bastante peculiar de Fiona: dar títulos enormes aos seus discos. A safra de canções lançada em 1999 foi o primeiro exemplo disso, já que o título completo do material vem estampado na capa, cobrindo todo o seu rosto. “When the Pawn” é na verdade um poema:
“When the Pawn Hits the Conflicts He Thinks like a King What He Knows Throws the Blows When He Goes to the Fight and He’ll Win the Whole Thing ‘fore He Enters the Ring There’s No Body to Batter When Your Mind Is Your Might So When You Go Solo, You Hold Your Own Hand and Remember That Depth Is the Greatest of Heights and If You Know Where You Stand, Then You Know Where to Land and If You Fall It Won’t Matter, Cuz You’ll Know That You’re Right.”
Foram 7 anos em reclusão total, aparecendo em público raras vezes, sempre pra divulgar alguma de suas canções ou dividir os vocais com artistas amigos em apresentações esporádicas. Nas redes sociais, interações apenas pelo Facebook, que logo foi abandonado. Enquanto isso acontecia, Apple trabalhava em silêncio em novas canções, fruto de uma pesquisa sonora que faria seu repertório dar um salto. Como acontece com grandes divas como Madonna, que escolhem não tropeçar na comodidade da repetição, ela decidiu beber na fonte do jazz raiz e do pop alternativo para se inspirar. Assim deu à luz “The Idler Wheel…”.
O disco funciona mais ou menos como um segundo debut, visto que agora, após tanto tempo numa espécie de ostracismo, a cantora tinha a missão de conquistar uma nova geração. E ele cumpre isso muito bem ao se mostrar um registro confessional que narra desde sua fúria contra o ex-namorado Jonathan, até a inquietação constante de sua mente em “Every Single Night”, single que nos convida a uma viagem surrealista. A sensação de ouvir essa safra de canções é a mesma de fechar os olhos e se permitir viver um delírio. Um delírio dos bons!
Os destaques aqui estão nos vocais sobrepostos, no uso de tambores e no baixo tocado de forma agressiva. O título é igualmente enorme: “The idler wheel is wiser than the driver of the screw and whipping cords willserve you more than ropes will ever do“. Sua voz, mais madura, entrega interpretações tocantes como “Werewolf” e “Periphery”, que nós apostamos: ficaria ainda mais linda se tocada com a presença de um coral.
O discurso de Fiona Apple no VMA 1997, ao receber o prêmio de Melhor Artista Revelação, é lembrado ainda hoje. À ocasião, citando Maya Angelou, ela disse que sua vida de famosa era na verdade “uma merda” e que tínhamos que “ser nós mesmos”. Franqueza sempre foi um dos seus pontos fortes e em “Tidal”, seu álbum de estreia, esse sentimento já havia sido servido.
Não é exagero dizer que você estará diante de 10 faixas grandiosas (como não ficar em silêncio ouvindo “Sleep to Dream” e Shadowboxer”?), mas se quiser entender mesmo o por que de este ser um de seus discos mais aclamados, preste atenção em “The Child is Gone” e “Sullen Girl”. Existe nesta última uma reflexão sobre traumas e depressão, temas que perpassam boa parte de suas músicas, seja de maneira direta ou não. Nesta letra específica Fiona propõe uma reflexão sobre como a dor pode nos perseguir, confundindo as impressões que todos têm de nós.
Em certo trecho diz o seguinte:
“É por isso que me chamam de menina mal-humorada?
Eles não sabem como eu costumava navegar no mar profundo e tranquilo
Mas ele me empurrou para a terra
E pegou minha pérola
Deixou uma concha vazia de mim”
Madura e honesta, Apple fala sobre o que a incomoda e transforma seus sentimentos em metáforas, como ondas. São seus altos e baixos. “Tidal” é uma grande terapia musical, um relato confessional de coisas que todos nós vamos passar em algum momento da vida. De uma mulher aprisionada em um corpo jovem. É sobre decifrar de forma serena cada questão interna que possuímos e se levantar de um tombo pronta para o ataque. Um ataque em que suas armas principais são o papel e a caneta.
O maior hit da carreira veio com “Criminal”, single que fala sobre se sentir mal por usar o sexo pra facilitar o alcance de um objetivo. Seu clipe, que explora temas como o voyeurismo e a descoberta da própria sexualidade na adolescência, recebeu críticas pesadas – uma delas, aliás, ficou bem famosa. À época a revista The New Yorker disse que a artista parecia “uma modelo da marca Calvin Klein, só que mal-alimentada”. O fato é que a música se tornou um símbolo da faca de dois gumes que é o desejo – algo que tempos depois também seria explorado por outras artistas de sua geração.
Agora corta pra 2005. Estamos diante de uma obra nascida em meio ao caos. Três anos antes, Fiona Apple estava pronta pra lançar seu terceiro álbum de estúdio, o sucessor de “When The Pawn”, mas ao ouvir a nova leva de canções produzida pela artista a gravadora não se mostrou contente com o resultado. Não foi fácil retrabalhar o conteúdo e as coisas ficaram ainda mais difíceis quando teve início o vazamento de algumas das faixas já finalizadas. Apple, imediatamente, interrompeu o processo e levou mais 2 anos pra finalizar a versão da obra que por fim chegaria às lojas.
A parceria com Jon Brion, seu antigo colaborador, foi por água abaixo e ela decidiu investir em um novo talento. Desta vez quem assumiria a mesa de mixagem era Mike Elizondo, um dos responsáveis por “Extraordinay Machine”, um disco sofisticado e essencialmente pop que agradou aos fãs, mas que por outro lado, despertou um certo azedume por parte da crítica.
As músicas que fazem parte deste trabalho são fortes e auto-suficientes, podendo ser enxergadas como pequenos fragmentos de um todo. Elas não necessitam conversar entre si para exaltar sua riqueza sonora e o cuidado de sua intérprete/criadora, depositado nos mínimos detalhes. Dois bons exemplos desse mix de texturas e perspectivas são a própria faixa-título e “Window”.
Mas o piano, sempre o piano, seguiu fazendo as honras. Há momentos lindos embalados pelo instrumento como “Partying Gift”, uma canção que reflete sobre a pureza e a estupidez do amor.
Um momento favorito? Quando a artista mergulhou na produção de músicas com estruturas menos convencionais, que flertam com a bizarrice. É o caso de “Tymps (The Sick In The Head Song)”, “Please Please Please” e “Not About Love” – esta última, diga-se de passagem, uma das melhores da carreira. Logo, as críticas a “Extraordinary Machine” só servem pra torná-lo uma espécie de ovelha negra, que apesar de ser rechaçada pelos amantes do óbvio, acaba se mostrando brilhante.
Não esqueça: “Fetch the Bolt Cutters”, o primeiro álbum de Fiona Apple em 8 anos, chega à 00h desta sexta-feira (17).
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