Foi no fim dos anos 1950 que o pai da jovem Elis Regina Carvalho Costa decidiu fazer as malas da filha e levá-la da fria Porto Alegre. Seu destino era o Rio de Janeiro. Àquela altura já passava por sua cabeça a dimensão do talento da garota, mas era preciso expandi-lo, compartilhá-lo. Talvez a única coisa que ambos não soubessem é que uma vez projetada, ela seria considerada décadas adentro a maior cantora do Brasil.
Tendo Ângela Maria, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Billie Holliday como suas grandes influenciadoras, Elis cantou o Brasil de cabo a rabo e fez com que sua voz imponente, afinadíssima, se transformasse em sinônimo de sensibilidade. Em suas interpretações, nada rebuscado: cantava para as massas, tanto para o trabalhador que conta lorotas ao fim do dia na mesa de bar, quanto para a dama apaixonada que sofre com um band-aid apertado na pista de dança.
Vivendo sua glória máxima nos anos 1970, interrompida por um trágico acidente, ela também narrou os horrores do exílio e o temor das ruas, penitências impostas pela ditadura militar. Entre a bossa, o samba, o rock e o jazz, essa piscina intensa, conhecida também pelos mais próximos como “pimentinha”, fez parte da nossa história. Se estivesse viva completaria 75 anos nesta terça-feira (17).
A fim de honrar alguns de seus melhores trabalhos, nós listamos seis álbuns essenciais para conhecer ou mesmo celebrar a obra desta lenda. Serve para todos os dias, sejam eles de quarentena ou não.
O último LP de inéditas lançado por Elis, “Essa Mulher”, chegou às lojas em 1979. O título é autoexplicativo. Trata-se de um disco maduro, em que sua narradora, embevecida em amor, mostra sua fragilidade por meio de letras que exaltam majoritariamente o sofrimento, mas que jamais abandonam a elegância. Elis conduz sambas alegres na mesma frequência em que expõe feridas, como acontece em “O Bêbado e a Equilibrista”.
Sobre esta faixa é preciso contar uma história: obrigada a cantar em um evento da ditadura militar, a artista foi alvo de críticas bastante duras do cartunista Henfil, que a acusou de ter se aliado aos militares. Em uma charge publicada poucos dias após o evento, ele desenhou a lápide da cantora dando a entender que para ele e todos aqueles que se opunham à truculência do regime, ela havia morrido.
Tempos mais tarde Elis venceria o medo da repressão, que a acuou principalmente por conta dos filhos pequenos, e passaria a lutar no front de batalha. Tanto que entrou em estúdio para gravar o single assim que a lei da Anistia foi proclamada, transformando-o em um de seus hinos. O trecho “Brasil que sonha com a volta do irmão do Henfil”, que faz referência ao exilado Herbert José de Sousa, seu irmão, veio como um pedido de desculpas.
O clipe, como era de costume àquela época, estreou no Fantástico e trazia a artista no centro de um picadeiro circense.
Nos anos 1990 Björk veio ao Brasil e teve a oportunidade de se encontrar com o filho mais velho de Elis Regina, João Marcello Bôscoli. Questionado sobre esta ocasião, Bôscoli contou à rádio Jovem Pan que viu a cantora abraçá-lo e cair no choro enquanto dizia que sua mãe mostrava ao cantar “uma coragem emocional para ir a lugares que ela não conseguia”. A paixão pelo trabalho da musa foi tamanha que naquela mesma época a islandesa entrou em estúdio para regravar o clássico “Travessia”, contido no disco “Elis” (1974).
Vamos endossar a afirmação de Björk. Abrindo os trabalhos deste álbum, sua intérprete original constrói uma história de resiliência, mas não sem antes rasgar o próprio peito. O pranto e a vontade de morrer após um término vão pouco a pouco dando lugar a um senso de reconstrução que só o amor pode proporcionar. De “Elis” (1974), que está disponível na Deezer, Spotify e Apple Music, vale destacar ainda “Conversando no Bar”, O Mestre Sala dos Mares” e “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, esta última um bolero delicioso.
Provavelmente um de seus melhores álbuns, “Elis” (1972) foi produzido pelo pianista e compositor César Camargo, que à época era seu companheiro. Colocando voz em composições de Tom Jobim, Chico Buarque e Milton Nascimento, três dos mais brilhantes autores da chanson brasileira, a artista criou aqui uma das sequências mais matadoras de toda a MPB. “20 Anos Blue”, “Bala com Bala”, “Nada Será como Antes”, “Águas de Março” e “Casa no Campo” são faixas que entraram para a história. Uma curiosidade sobre este disco está na afinação vocal de Elis, que não requereu nenhum tipo de corretor. Todas a sua tracklist foi gravadas no primeiro take.
De fato, 1974 foi um ano brilhante na carreira da pimentinha. Entre os meses de fevereiro e março ela fez as malas e foi para Los Angeles, nos Estados Unidos, onde gravaria um projeto ambicioso. Na ocasião, Elis ganhou da gravadora Philips um presente por seus dez anos de contrato: a oportunidade de colocar vocais seus em um álbum colaborativo com Tom Jobim. “Elis & Tom” reúne vários clássicos da bossa nova, trabalhados com instrumentos elétricos até então inéditos, como o piano e a bateria. Suave e delicado, este projeto entrega canções canônicas como “Águas de Março”, que dispensa apresentações. Sucesso de venda e crítica, até hoje este é um dos trabalhos mais aclamados da música nacional.
Em 1975 Elis Regina estreou um espetáculo em São Paulo chamado “Falso Brilhante”. Com o intuito de contar sua história pessoal e artística, o show também trazia duras críticas à ditadura militar, que vivia seu auge, mescladas a uma estrutura circense. Com direção cênica de Myriam Muniz e direção musical de César Camargo, foram dois anos em cartaz e mais de 250 apresentações apenas na capital paulista. Embora seu título tenha vindo do bolero “Dois Pra Lá, Dois Pra Cá”, o show teve um repertório inédito e incluiu desde canções como “Gracias a La Vida”, da chilena Violeta Parra, até “Como Nossos Pais”, de Belchior.
Tornou-se uma febre e teve parte de seu set registrado em estúdio. Mais uma vez certeiro, “Falso Brilhante”, o disco, foi gravado em dois dias. Forte e direto.
Apesar de “Falso Brilhante” ter sido considerado o show mais elogiado da carreira de Elis, o espetáculo que faria na sequência também marcaria sua trajetória. “Transversal do Tempo”, gravado no Teatro Ginástico do Rio de Janeiro entre os dias 6 e 9 de abril de 1978, é sem sombra de dúvida seu disco mais político e inclinado para o rock. Disponível na Deezer, Spotify e Apple Music, ele nos conta entre outras histórias a dos sofridos boias-fria (“O Rancho da Goiabada”), a dos que menosprezam a cultura nacional em meio à cafonice (“Querelas do Brasil”) e, mais uma vez, dos que resistem ao autoritarismo (“Deus Lhe Pague” e “Cartomante”). “Transversal do Tempo” é um recado de Elis que se estende até o presente. “Nos dias de hoje é bom que se proteja“.
Ficou curioso a respeito de mais detalhes sobre a carreira de Elis? Há duas ótimas biografias lançadas sobre a artista. A primeira, “Nada Será Como Antes”, chegou às lojas em 2016 e percorre toda a trajetória da musa por meio da pesquisa apurada do jornalista Julio Mesquita, que já passou por alguns dos mais tradicionais veículos do país. Já em 2019 foi a vez de as livrarias receberem “Elis e eu”, série de relatos assinados por João Marcelo Bôscoli. Em suas páginas, o filho da cantora revela detalhes íntimos, com uma sensibilidade ímpar, dos 9 anos que passou ao seu lado. Você pode encontrar ambos nas livrarias mais próximas.
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